O
curta-metragem, com apenas seis minutos de duração, “On Your
Way”, dirigido por Thomas Sali, trás a cena
de duas pessoas caindo do céu, em queda livre, atraídas,
inexoravelmente, pela gravidade da Terra.
Entendo
que trata-se de uma metáfora sobre a condição do ser humano,
enquanto ser mortal, e sua forma original de lidar com esse saber
sobre si.
O
filme trás a gravidade como representação da morte; a queda em si
representando a trajetória da vida e suas lutas vãs ou seja, o
caminho; os corpos caindo, somos nós, viventes caminhando em direção
à morte.
Esse
curta metragem, inteligente e impactante, me inspirou a escrever este
texto reflexivo sobre a vida, o caminho e a morte.
Qual
é o seu caminho? Existe uma definição possível que descreva o que
é a vida? O que fizemos com a morte?
A
cena do filme, onde o casal em queda livre, prende-se à pedaços da
nave, que também está em queda livre, nos mostra como o ser humano
agarra-se a objetos efêmeros na vã tentativa de iludir-se sobre a
sua condição. Aparentemente, nascemos para a vida, mas o destino da
vida é a morte e o caminho, entre um e outro, se resume, no final
das contas, em passar o tempo criando subterfúgios, fórmulas
capazes de nos enganar, sobre o real de que não há, sequer, um
único caminho capaz de dar fuga ao encontro final…
Associei
essa cena à tragédia de Édipo, onde ao tentar fugir de seu
destino, marcado pelo oráculo, ele vai direto a seu encontro e o
realiza, independente de sua vontade.
O
ser humano luta contra essa ideia, contra a sua verdade, utilizando
todos os recursos possíveis, dentro da sua condição de seres da
linguagem, seres falantes, faltantes, criativos e imaginariamente
curativos. Às vezes fantasiando a possibilidade de uma vida eterna,
juventude eterna, beleza eterna, outras vezes apenas acreditando,
esperando, lendo uma poesia, assistindo um filme, amando, bebendo e
falando com um amigo, saboreando os pratos favoritos, curtindo um
momento, olhando a lua, o mar, o sorriso de alguém ou uma lágrima,
rindo ou chorando, sabotando seus sucessos ou deixando que eles
aconteçam; vencendo, perdendo, pagando com dinheiro, pagando com o
corpo, comprando, vendendo, tentando dominar o tempo, o feio e o
belo.
Enfim,
ter o falo, objeto da completude, que levaria, se fosse possível de
ser conquistado, à morte do sujeito do desejo, mas com sorte, ele
sempre escapa, contemplando apenas a eterna insatisfação do sujeito
mortal. Tudo isso é o caminho, é a vida e também a morte. Por mais
rotas de fuga que possamos criar, a morte é nosso destino inexorável
e haveremos de cumpri-lo.
Então,
o que é mesmo a vida? A vida é a morte? Sim! Mas não é só isso!
Existe também um espaço de tempo, o tempo de uma queda livre do
céu, um caminho, o seu caminho.
O
significante “morte”, nos ensina Lacan, não existe no
inconsciente, afinal, a morte é sempre do outro, só experimentamos
a morte quando morremos e não voltamos para formular seu
significado, junto ao nosso analista. Ainda bem! Assim, ninguém sabe
o significado da morte, possivelmente, o que a torna um tabu. Tabu
quase sempre assusta.
Poderia
a morte, se não fosse expulsa da consciência, ser objeto de desejo
às avessas, igual a tantos objetos que criamos/compramos no dia a
dia e que custam tão caro, pois pagamos com nosso corpo, com nosso
tempo de vida, o tempo da queda, a fim de seguirmos desejantes e
usufruirmos do caminho? Quem sabe, percorrer o caminho sem fugir da
morte e usá-la como combustível, um norte, na melhor forma, como
dizia Lacan, em conformidade com o seu desejo!
Afirmo:
isso não é fácil! A parte "em conformidade com o seu desejo"
é a mais difícil, afinal somos sujeitos divididos.
O
que você faz no seu tempo de queda? Se agarra a algo que também
está em queda livre, como você? Existe algo entre o céu e a
gravidade que não esteja em queda livre? O tempo é curto, mas é o
que temos.
Assisti
este fim de semana "8 em Istambul", série da Netflix
bastante sugerida nestas últimas semanas. Das tantas leituras
possíveis, vejo na série a presença recorrente de um estado muito
confuso, inquietante e especialmente expressivo: o "calar"
no lugar do "falar". Não são antônimos, calar-se não é
o avesso de falar, como mostra a série. Ao menos não no sentido
mecânico das palavras ditas versus retidas.
A
série apresenta estes estados nos quais alguém se cala na
encruzilhada entre uma violência feroz e uma espera tolerante. Quem
nunca passou por isso? Calar-se, nestes casos, culmina em sustentar a
indecidibilidade: se a palavra não é dita, fica suspensa a decisão
sobre quem é o autor do mal estar, quem é que provoca, quem é o
motivo da dor. Sou eu, que abafo meu dizer, ou é o outro, que não é
digno ou capaz de escutar minhas palavras guardadas? Quando me calo,
poupo o outro de uma boa verdade ou me poupo de atestar minha própria
ignorância? É neste silêncio incômodo que a série desenrola sua
trama.
"8
em Istambul", uma série de televisão turca lançada pela
Netflix no fim de 2020, apresenta um emaranhado de histórias cujas
proximidades e tensões de amor e ódio geram um incessante suspense
no espectador, que anseia pelo momento em que todos os personagens
descobrirão o delicado fio que os liga. Leva-nos à ideia de que "o
mundo é um ovo" e que este ovo pode se espatifar a qualquer
momento com golpes de intolerância e angústia. Meryem, faxineira,
muçulmana, com uma doçura ímpar, vai se consultar com Peri, uma
psiquiatra e psicoterapeuta na qual o preconceito em relação à
tradição muçulmana vive candente e calado. Peri, por sua vez, vai
supervisionar seu atendimento clínico com Gülbin, uma supervisora
capaz de acolher e tolerar o preconceito de Peri, mas que também
cala o ódio resultante destes encontros.
De
Meryem para Peri, de Peri para Gülbin, há um processo oculto de
assimilação e digestão dos afetos entre as personagens, bastante
conhecido pela psicologia clínica: afetos oriundos da paciente são
processados na mente da terapeuta, afetos da terapeuta, por sua vez,
são pensados pela mente da supervisora. Peri evita revelar seu ódio
para Meryem, sua paciente; Gülbin evita falar do ódio que sente
diante de Peri, sua supervisionanda. Em um tipo de cadeia de evitação
do dito, dada sua alta carga de destrutividade, nasce uma rede de
cuidados. Entre tantas nuances, a série mostra este caminho em que o
ódio abafado por uma obediência ética, o tal ódio que deve ser
"mantido num lugar à parte para ser utilizado numa futura
interpretação" de acordo com o psicanalista D. W. Winnicott em
"Ódio na Contratransferência" (1947), fica borrado entre
a singularidade de um encontro, por um lado, e uma trama cultural e
histórica de preconceitos intrusivos, por outro.
O
nome da série traduzido para o inglês talvez caiba melhor: "Ethos",
origem etimológica de ética, é um termo com múltiplos
sentidos ao longo da filosofia, desde a Grécia Antiga, resguardando
uma sutil diferença entre éthos e êthos. Éthos pode ser traduzido
para as línguas latinas como os hábitos comuns transmitidos por uma
via de ancestralidade, ao passo que êthos pode ser visto como o bom
hábito cotidiano. Em termos gerais, ambos termos (com a sutil
diferença de acentuação e extensas considerações a respeito de
traduções e usos), surgem diante da ampla e antiga problemática
acerca das tensões entre respeito à ancestralidade e a convivência
cotidiana.
O
resultado desta tensão é a série, cuja trama nos leva a encontrar
os esboços de sentido por trás do estridente falar e do abafado
calar. Ganha valor a palavra que percorre tortuosos caminhos para
chegar até a boca. Por trás desta lógica de ditos e não-ditos
correm trilhas de ódios e amores, de angústia gritada e cuidado
silencioso.
Ultimamente
discute-se muito o "falar" como um lugar de expressão e o
silêncio como um lugar de omissão, algo sempre válido e
pertinente: calar-se é comumente resultado de opressão, vergonha,
medo, culpa. A série neste sentido contribui para o debate e o
complexifica: cala-se também por ódio, cala-se também por cuidado,
colocando-nos entre o vinho tinto de sangue do Cálice de Chico
Buarque e o calar da personagem Peri, por exemplo, alguém que tem
muito a dizer e não sabe como, nem se deve, e ainda mais
angustiante, mal sabe de onde vem alguns de seus pensamentos.
Aqui
calar-se é encontrar um tempo para escolher boas palavras, para
sobreviver aos ruídos do agudo grito e do grave silêncio, do éthos
e do êthos, de forças que não ambicionam surgir nem em gritos
violentos, nem em um silêncio amortizante, mas na palavra justa.
A
série mostra o quanto o ancestral grita internamente até que uma
palavra corriqueira possa conceder-lhe o que lhe é de direito,
e que de nada adianta brigar, exigir aos berros que algo fale,
arrancar alguém de seu retido silêncio: os véus e o velado só
caem quando e se houver um sentido para isto.
Davi Berciano Flores é psicólogo e psicanalista pela PUC-SP e pelo Instituto Sedes Sapientiae, mestrando em Psicologia Clínica pelo IP-USP, professor do Centro de Estudos Psicanalíticos (CEP) e membro do Laboratório Interinstitucional de Estudos da Intersubjetividade e Psicanálise Contemporânea (LIPSIC).
É
preciso, antes de tudo, começar com honestidade. Se o presente
trabalho toma como objeto - de estudo - um filme (a saber, A
pele que habito,
Almodóvar), a dimensão pulsional de minha escritura o toma mais
como alvo ou destino da pulsão que como objeto. Trata-se de um
pedaço de contorno através do qual a pulsão em mim se dobra em
torno do objeto que lhe/me interessa. E nenhum objeto poderia
encarnar mais propriamente o pequeno a,
perdido junto do Real, que a mulher - talvez, mais propriamente, o
feminino. Trocando em miúdos, sirvo-me das mulheres que habitam as
peles de Almodóvar para nomear, a partir de sua montagem enquanto
personagens e de suas relações com os homens do filme, aquilo elas
denunciam da mulher: ora submetida às lógicas fálicas, como mãe
ou como castrada, ora as desafiando no vazio do significante fálico
que estrutura o simbólico.
Vale,
então, questionar: quem são as mulheres em A
pele que habito? É um
espetáculo psicanalítico que a primeira a aparecer no filme é a
mãe – Marilia –, embora ainda não saibamos deste parentesco,
qual um de seus filhos, o cirurgião Robert, não saberá até o fim.
A ela, no entanto, retornarei mais adiante, no momento em que importe
tratar do lugar em que os homens – ambos seus filhos – têm as
mulheres. Além de Marilia, há Gal e Norma, mãe e filha um tanto
indistintas por entre o enredo. São, as duas, o grande objeto e a
grande sina de Robert. Se o são, porém, como veremos, é sobretudo
porque são também seu grande enigma. Como pano de fundo às três
gerações que rodeiam Robert, há Vera? Afirmo sob um ponto de
interrogação não só por não sabermos o quanto de fato Vera se
torna mulher, mas sobretudo porque é ela mesma esta incógnita –
provavelmente para o próprio Robert – que se espalha pelo filme
sem poder ser precisada exatamente no tempo e no espaço.
Antes
de todas estas, no entanto, há outra insígnia (feminina?), outra
literalidade psicanalítica atuante não sobre Vera, mas sobre
Vicente. Entre todo o mistério com que a personagem de Vera é
apresentada, algo começa a se amarrar pela primeira vez depois de
1h15 de filme: Vicente desperta na mesa de cirurgia (com um olhar
quase apaixonado para Robert?) para descobrir que sofreu uma
vaginoplastia, punição pelo suposto estupro de Norma. Aqui a
angústia de castração sequer precisa do órgão feminino no corpo
da outra para se atualizar: estão realizadas, no próprio corpo, “as
ameaças que provocou contra si, ao brincar com este órgão”
(FREUD, 1996 [1933], p. 125). Se tanto se pode dizer, numa
perspectiva feminista, contra a inveja do pênis, Almodóvar, já em
2011, denuncia, o mais literalmente possível, o quanto nossa
imaginarização do falo no pênis ainda é operante.
É
bem verdade que por enquanto não se trata propriamente da questão
da mulher – Vicente ainda não é Vera –, mas tão somente do
estatuto da vagina tomada enquanto ausência de pênis frente à
subjetivação fálica de um homem e ao corpo social que insiste em
dar a um órgão imaginário o estatuto que deveria ser próprio de
um significante. Que acontece então a Vicente a partir daí? Quando
chega, se é que chega, a se tornar Vera?
De
fato, um giro estonteante acontece a partir da vaginoplastia. Na
primeira hora de filme, Vicente é um homem cativo, acorrentado num
porão, punição do crime que supostamente cometeu – supostamente
na medida em que o próprio não se lembra se efetuou o ato ou não,
e a cena é cortada no momento preciso: se um estupro é o ato sexual
que se segue a uma negativa, Almodóvar nos faz saltar direto da
negativa para o momento em que o rapaz se retira. Da castração em
diante, a figura cada vez mais indefinível Vicente/Vera passa a
habitar um quarto, no andar superior, e não só ter satisfeitas suas
necessidades básicas, mas mesmo suas demandas mais humanas: do café
da manhã aos livros de yoga. É
curioso que por um lado Robert leva a cabo seu ato castrador no
próprio dia da morte de Norma, mas de outro lado é justamente a
partir deste ato que destitui Vicente de seu posto de homem que lhe
roubou a filha, para incluí-lo na série das mulheres-objeto a serem
desejadas e cuidadas.
Qual
é este novo posto? Sob o olhar de Robert, podemos dizer que se trata
da mulher que se reveste de significado fálico – e isso menos por
ser objeto de sua criação do que por ser significante de seu
desejo. Trata-se desta que, dada a impossibilidade do pequeno a,
encarna o significante fálico que permite desejar sobre esta falta –
refiro-me aqui à feminilidade enquanto semblante (RODRIGUES, 2008).
E temos outra vez uma ambiguidade: de um lado, Vera é criatura de
Robert, sua própria obra, signo de seu poder; de outro, a partir
deste mesmo lugar, ela se torna objeto último de seu desejo,
sobrepondo-se na série Marilia/Gal/Norma, apontada por Dombronsky
(2013) inclusive em suas semelhanças físicas. Mais do que se
sobrepondo, talvez encerrando a série. Afinal, eis em carne sua
idealização última. Pergunta Vera:
— Ainda
tem algo que você queira mudar? — quase ‘ainda falta?’
— Não.
— Então
acabou?
Eis
o grande problema: acabou. A criação está feita, o objeto está
pronto. Como desejar se nada mais falta? Algo acontece: logo em
seguida Vera se faz sedutora, num jogo histérico de produzir desejo,
a princípio jogo frustrado. Frustrado? Ainda que por enquanto nada
se efetue em ato, ela não deixa passar: “eu sei que você me
observa”. Aliás, parece que sempre sabe quando é observada, mas
talvez incapaz de distinguir por quem: aos 27 minutos de filme,
responde a Zeca pela câmera, indagando-o com os olhos. Pensava ser
Robert?
De
fato, em meio às seduções, se produz, neste primeiro nível, uma
complementariedade no jogo dos sexos: ele a toma como objeto de/para
desejo, ela se faz histérica e produz desejo. Trata-se mesmo do jogo
dos papéis de gênero com que se desenrola o amor moderno: ele
desejante, ela desejada. Aliás, daí em diante, pouco a pouco ela
passa a se fazer desejável: entre seduções, roupas, maquiagem (que
só surge no final do filme!), focos da câmera num decote e jogos de
idas e vindas, os signos sociais da mulher-objeto se fazem cada vez
mais presentes, talvez alcançando seu ápice quando Vera sai às
compras.
Corto.
É preciso questionar: trata-se tão somente disso? Parece que até
aqui, no modo como descrevo, incluo Vera-objeto como suprassumo da
série Marilia/Gal/Norma. Acontece que já deixei meu prenúncio: há
outro aspecto de Vera, aquele que não se insere na continuidade da
cadeia de mulheres, mas que se faz seu próprio pano de fundo:
Vera-enigma, este feminino insondável que se aguenta em suspenso por
todo o filme, sobretudo na sua primeira metade. Há algo aqui que se
soma à mulher-objeto e faz dela não só objeto, mas sina. Sina de
Robert, anunciada por sua insabida mãe já ao fim do filme: “parece
uma criança, sempre te aconteceu igual com as mulheres”.
Mas,
para tocar esta sina, é preciso uma pequena digressão que percorra
a maternidade de Marilia, seu jogo incestuoso com Zeca, seu segredo
quanto a Robert, a perversão de Zeca-Tigre e a (perversão?) de
Robert. Quando a bizarra figura de Zeca fantasiado de tigre aparece,
o incesto se encarna já de início num quase-beijo. No entanto,
muito pouco se nota de uma atitude incestuosa ativa por parte de
Marilia. Muito pelo contrário: a mãe nos dá a impressão de que
nada pode contra o Tigre, pelo amor ou pelo ódio, pelo incesto ou
pela castração. Suas tentativas quase inertes de pará-lo, quando
este se determina a ir atrás de Vera, são literalmente amarradas na
perversão do filho e caladas por um guardanapo – que “antes te
cabía entera”, assim como dois minutos depois, estuprando Vera,
que pensava ser Gal, lhe diz (num paralelismo sintático no original
espanhol) que “antes te volvía loca”: sobreposição de
oralidade e genitalidade, jogando com tamanhos e encaixes?
Se
o perverso mantém o incesto ou o incesto produz o perverso é
impossível responder pelo próprio filme,
a não ser pela hipótese de Marilia: “são de pais diferentes, mas
ambos nasceram loucos. São minhas entranhas, a loucura está em
minhas entranhas.” De fato, também a Robert, algo da perversão
foi transmitido. Ainda assim, se vem das entranhas de Marilia, o
segredo sobre sua maternidade parece ter lhe garantido algo, talvez
justamente algo da ordem do segredo, do enigma. Se tomarmos a série
das mulheres-objeto cronologicamente, Marilia é quem a inaugura, e o
faz em segredo. Entre seu desejo e seus lutos, a mulher para Robert
se tornou, ela mesma insígnia do enigma, o qual abre a série com
Marilia e a encerra com Vera. Não à toa, quando Robert reclama que
todas as mulheres que opera fazem Marilia se lembrar de alguém, ela
já sabe: não esta, ela é diferente. Profecia?
De
todo modo, é esta recorrente denúncia de Marilia que é preciso
acentuar, pois se refere precisamente ao cerne do argumento do filme:
Vera-enigma. Repetidamente, comentaristas e analistas afirmam Robert
como perverso (LA PIEL, 2013; ESTRADA, 2012; CAZALLA, 2014). É
certamente inegável que seu grande experimento e sua grande vingança
movimentam um gozo absolutamente perverso, e Cazalla demonstra de
modo bastante interessante a crítica à própria perversão do
discurso científico e técnico tecida por Almodóvar. Mas ao escutar
o Tigre, este que é plenamente filho de sua mãe, o contraste com
seu meio-irmão faz gritar uma diferença implacável. O Tigre rouba,
invade e estupra. O Tigre não tem Outro, ele é
a própria Lei desfrutando de seus objetos. Também Robert faz sua
própria lei, desafia a bioética, transforma Vicente em “brinquedo”
(na descrição do próprio Vicente) e não hesita em matar o Tigre.
Mas tomá-lo como perverso é deixar passar em completa ignorância o
fato de que, se não hesita em matar o Tigre, hesita sim em matar
Vera. Aliás, a certa altura – depois que a obra perversa está
acabada e a sedução histérica entra em cena – ele está de novo
submetido a seus jogos. É sua sina, é a profecia de Marilia. Logo
no início, e sem qualquer explicação no enredo, o leitreiro²
“maternidade” ganha enorme foco logo antes da palestra do Dr.
Ledgard. De fato, parece que o segredo de sua maternidade criou sua
sina, mas também sua salvação: garantiu este ponto de enigma, este
mistério Real que a perversão contornará, mas não submeterá.
Assim
é que os dois homens apresentam, no filme, duas articulações
possíveis do feminino. De um lado, Vera-objeto ora é boneca sexual
da perversão de Zeca, ora é, sim, desejante, mas sob o modo
histérico de um se fazer mulher para ser desejada por Robert,
selando a série Marilia/Gal/Norma/Vera-objeto. De outro lado,
Vera-enigma denuncia algo do feminino que transcende o desejo fálico.
Trata-se deste pano de fundo, que mal se sabe quem é ao longo de
toda a primeira hora de filme, desta personagem ao mesmo tempo
destituída de subjetividade, mas também articuladora de toda
subjetivação pensável no enredo (para homens e mulheres!). É a
mulher enquanto indefinido. Indefinição esta que alcança seu ápice
não em Vicente submetido, nem em Vera de maquiagem e salto alto, mas
no ponto em que não se pode nomear nenhum dos dois. 1h22:
Vicente/Vera, não à toa vestida em sua segunda pele e sua máscara,
foge de Robert pela casa, e não escapa. Interessa menos a
perseguição em si do que esta figura impensável, que não pode
mais ser Vicente, mas ainda não é Vera. Até mesmo sua voz é mais
infantil do que masculina ou feminina. É a figura que invoca a
indagação que Almodóvar nos impõe acerca de Vera desde o início:
quem é ela?
Esta
articulação do feminino enquanto enigma parece falar de algo que
antecede a própria proposição freudiana de que, a princípio, “a
menininha é um homenzinho” (FREUD, 1996 [1933], p. 118) que
posteriormente terá de inverter sua relação com o falo para se
fazer mulher-desejada já na ordem fálica. Não caberia aqui
adentrar as minúcias de um feminino que escapa à própria inscrição
do falo, tal como Lacan o desenvolve, mas vale sim notar que, se do
lado masculino o desejo se inscreve ao modo fálico, do lado feminino
ele sempre pode também se submeter a tal dinâmica, sob a égide da
sedução histérica, mas algo restará. Irigaray (2017) nos ajuda
com uma distinção fecunda: se a feminista pós-lacaniana busca um
modo de falar deste resto como um falar-mulher,
também não deixará que este falar-mulher se confunda com um falar
histérico. Afinal, a
histeria é já o feminino submetido ao fálico, é já Vera-enigma
transformada em Vera-objeto, que não fala-mulher. Ao contrário, no
falar histérico, “isso fala como sintomas de um ‘isso não pode
falar a si nem sobre si’” (IRIGARAY, 2017, p. 156).
Este,
sim, é o grande enigma de Robert – provavelmente de todos homens,
e da maior parte das mulheres. Enigma que se atualiza e se refaz na
série das mulheres-objeto Marilia/Gal/Norma, tal como o falo se faz
significante de uma falta, se assenta sobre a perda do objeto a.
Mas Vera está além do aprisionamento fálico do gozo, e até o fim
deixa sua questão: o assassinato de Robert estabelece a perdição
final do médico no feminino ou, ao contrário, a efetuação radical
de sua sina e resposta de seu enigma? E, quanto a Vicente/Vera, de
fato se tornou Vera? E, se sim, se tornou histérica ou se fez num
constante devir-mulher indefinível? E a falicidade de Vera assassina
é resto do masculino Vicente ou é apropriação feminina de uma
femme fatale,
que não seria nova em Almodóvar (Rodrigues, 2008)? O fim reedita
este mistério insondável. Dombronsky (2013) vê uma androginia em
Vicente já de início, que honestamente não pude encontrar, a não
ser quando aparece debaixo da cama para dar fim em Marilia (e
encerrar a série de mulheres-objeto). E toda a composição a partir
daí será ambígua: ainda que andrógina, mata maquiada. Veste sua
jaqueta de couro vermelho, sobre o vestido que desejara para Cristina
– chega em casa e se apresenta no masculino: “Sou Vicente, fui
raptado”.
E
é certo que não se poderia encerrar nem o filme, nem este trabalho
a não ser com interrogações:
Lacan
dirá que a mulher rejeita uma parte essencial de sua feminilidade na
mascarada, já que ela não estaria totalmente assujeitada à função
fálica. Em última análise, poderíamos chamar de semblante aquilo
que tem função de velar o nada. Nesse sentido, o véu é o primeiro
semblante. Temos como testemunho as artes, a história, a
antropologia, que revelam uma preocupação de velar, cobrir a
mulher. Por que não se pode descobrir a mulher? Ela representa a
castração, ou seja, a mulher é velada porque, ao se retirar o véu,
encontra-se o nada. (Rodrigues, 2008, p. 95)
Pode
ser que se trate realmente deste impasse. Seria mesmo possível
libertar a mulher do fálico, seja o fálico da femme
fatale, seja o fálico
a que está submetida a sedução histérica? Aquilo, amulher
(termo de Irigaray, 2017), que não se inscreve no fálico é,
propriamente, algo? Ou arrancando qualquer referência falogocêntrica
da mulher, encontraríamos simplesmente o nada?
Eis
o questionamento que move minha escrita, e provavelmente ainda a
moverá por algum tempo. Irigaray (2017) demonstra que definir a
mulher como indizível ainda reproduz uma linguagem falogocêntrica
(o neologismo é da autora), por mais que a liberte do sintoma
histérico. Afinal, quem não pode falar d’amulher,
não pode justamente porque fala a partir de uma referência fálica,
à qual amulher
sempre escapa. Será, então, possível inventar uma linguagem, um
modo de simbolizar, que fale-mulher? Irigaray tenta, e nos deixa um
vislumbre de que – para além do falo e para além do nada – algo
pode nascer Quando
nossos lábios se falam³.
¹
Trabalho apresentado como requisito semestral no curso Semiótica
psicanalítica: clínica da culutra,
COGEAE/PUC-SP.
²
Logo na primeira escrita do trabalho, um inconsciente leiteiro se
impôs sobre meu letreiro. Faço questão de não o corrigir.
³
Título do último texto publicado em Ce
sexe qui n’en est pas un
– Este sexo que não
é só um sexo, na
pobre tradução para o português (IRIGARAY, 2017, p. 231-246).
Quando nossos lábios
se falam é, no fundo,
sua grande abertura feminina e consumação de seu falar-mulher.
Referências
bibliográficas
CAZALLA,
Camilo. Comentario sobre La
piel que habito.
Conclusiones
Analíticas,
La Plata, v. 1, n. 1, p. 273-277, 02 set. 2014. Disponível em:
http://sedici.unlp.edu.ar/handle/10915/39392.
Acesso em: 14 jun. 2020.
RODRIGUES,
Ana Lucilia. Pedro
Almodóvar e a feminilidade.
São Paulo: Escuta, 2008.
Pedro
H. Mendonça é
graduado
em Psicologia pela PUC-SP, especializando em Semiótica Psicanálitica
pela COGEAE (PUC-SP), com formação teórico-prática em
Acompanhamento Terapêutico. Colaborador em Instituto Dasein e membro
da Oficina Clínica de Psicanálise.
Como
seria criar duas branquelas com capas de revista negras, modelos
negras, bonecas negras?
Já
faz 20 anos que eu crio duas branquelas. Nada mal quando se vive num
país de brancos. Circulamos entre espelhos o tempo todo. Os âncoras
de jornais são brancos, as capas de revista são brancas, as top
models são brancas, a gigantesca parede de brinquedos é de bonecas
brancas, os colegas da escola e os professores são brancos,
políticos, atores e atrizes também. É claro que temos a cota
racial. Um negro (servindo), um oriental (um tanto deslocado) —e,
talvez, um índio?— aqui e acolá.
E
eis que minha filha chega do cinema radiante, depois de assistir
"Pantera Negra" —filme que está dando margem a um
movimento político de autoafirmação dos negros estadunidenses.
Independentemente da história mirabolante e quase sempre patética
dos "blockbusters" do gênero, o filme é um marco:
consegue, sem falar de escravidão ou da condição racial, colocar o
negro como protagonista de uma história de super-heróis. Questão
política de quem vem ocupar seu lugar sem ter que pedir licença.
Dentro disso, a estética faz sua marca: os cabelos, os tons de pele,
a derme grossa sem defeitos (a celulite tão conhecida da mulher
branca), as roupas, lábios, músculos. A beleza é negra! Só faltou
dizer, maldito DNA de branco!
Crio,
já faz 20 anos, duas branquelas e antes disso fui eu mesma criada
entre brancos —num país majoritariamente negro (pode apedrejar)--
onde um filme como esse não era pensável e nem as cotas existiam.
Invertamos
a fita. Como seria tê-las criado com âncoras de jornais negros,
capas de revista negras, top models negras, a gigantesca parede de
brinquedos de bonecas negras, colegas da escola e os professores
negros, políticos, atores e atrizes também? Sim, a beleza seria
negra. E sairíamos correndo a encrespar os cabelos, colocar
turbantes, torrar no sol (não para parecer que temos acesso a férias
num iate, mas em busca da cor certa), aumentaríamos os beiços e
alargaríamos o nariz com cirurgias plásticas. Desde que o mundo é
mundo, virtudes e vícios são associadas à raça, à condição
social e ao gênero —associação repetida à exaustão a cada
oportunidade que apareça. Em "Pantera Negra" a virtude, a
paixão, o sexo, o poder, a inteligência, a força, a ética, a
maternidade, a honra é negra, invertendo o lugar recorrentemente
associado às pessoas brancas.
Também
fica evidente no filme o lugar da mulher na fictícia e idílica
Wakanda, onde se passa a história: a guarda real é feminina e as
protagonistas femininas não são secundárias. Bingo outra vez.
Lembramos
que o filme não é brasileiro. Porque para realizar tal aposta, há
que se ter mais do que uma forte indústria cinematográfica. Há que
se admitir que a questão racial está encoberta pela cordialidade e
pelo mito da miscigenação espontânea brasileira. Povo mestiço e
feliz que estaria sendo envenenado pela ideia de racismo. Teremos que
ser super-heróis para encarar e lidar com nossos problemas
históricos e sociais?
Quando
vemos jovens negros brasileiros paulatinamente assumindo sua beleza,
seus cabelos, traços, história e costumes, estamos apenas
presenciando uma moda entre outras ou estamos vendo mudar o eixo de
nosso velho mundo em nova direção? Façam suas apostas.
(*postagem autorizada pela autora)
Vera
Iaconelli é Psicanalista,
Mestre e Doutora em Psicologia pela USP, Membro do Departamento de
Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, membro de Fórum do Campo
Lacaniano SP, coautora do livro: “Histeria e gênero: o sexo como
desencontro” (Editora nVersos, 2014), autora do livro: “Mal-estar
na maternidade: do infanticídio à função” (Annablume, 2015) e
“Criar filhos no século XXI” (Contexto, 2020), Diretora do
Instituto Gerar, colunista da Folha de São Paulo.
Em
sessão, um jovem cruelmente torturado por
seu
padrasto,
mostra-se aprisionado em uma ficção muito semelhanteàquela
apresentada em um filme que ele diz adorar. Trata-se de um filme
chamado Premature
(2014),
cujo título foi traduzido para o português
como “Precoce”.
Nele, o protagonista também adolescente, está pronto para entrar
para a faculdade e prestes a sair com a garota mais bonita da escola.
Em outras palavras,
está
prestes a enfrentar a entrada no mundo adulto que coloca em xeque
suas próprias insígnias
fálicas.
O
filme inicia com um sonho do rapaz, no qual ele transa com uma jovem
de três seios. No momento do ápice sexual com aquela que para ele
era uma mulher perfeita, o jovem desperta do sonho em pleno orgasmo e
se depara com sua cueca molhada de sêmen. Neste exato momento sua
mãe adentra ao quarto e flagra desconcertada o seu filho
completamente “gozado”.
A única
coisa que ela pode dizer a ele é:
Just
put those sheets in the laundry, honey
(“só
coloque
esses lençóis
para lavar, querido”).
A
cena que inicialmente parece
banal,passa
a fazer sentido a
posteriori,
sobretudo
quando acompanhamos o desenrolar do dia do jovem. Enfrentando os
desafios de alguém marcado por uma sexualidade masculina típica
daquilo que no lunfardo argentino chama-se pollerudo1,
o
rapaz, além de humilhado pelos valentões,
é
também
intimidado pelas belas garotas da escola.
No
entanto, uma bela jovem que transpira sexualidade convida-o
para ir à
sua casa com o pretexto de estudar. A
moça
deseja transar com o garoto.Contudo,
este encontro seria no mesmo dia em que o jovem combina com sua
melhor amiga de assistirem juntos a um tradicional concurso de
soletração. O garoto se vê diante de um dilema: sair com a garota
de reputação duvidosa, aquela que realizaria seus mais íntimos
desejos carnais; ou encontrar uma amiga pela qual ele nutre um
sentimento especial, uma amizade que se transformará,
posteriormente, em amor.
O
jovem decide escolher a “garota pra transar” e não a “garota
pra amar”. Ele vai até a casa dela e, sentado na cama de seu
quarto, sofre investidas da moça. O ponto que aqui nos chama atenção
é que o encontro com essa mulher, na verdade o encontro com o toque
desta mulher, produz uma ejaculação precoce no garoto. Um simples
toque em seu pênis leva-o imediatamente para a cena inicial do
filme, na qual o garoto “gozado” na própria cama, desperta deste
que agora descobrimos ser um sonho “realizado”. Novamente vemos a
mãe entrar no quarto e dizer a frase do início: “só coloque
esses lençóis para lavar, querido”.
A
cena será repetida infinitamente durante todo o filme. A vergonha
diante do olhar materno - este outro que o vê “gozado” - revela
que o sentido daquilo que será repetido intermitentemente apresenta
o caráter de uma cena traumática, na qual o encontro com o sexo
inicia e termina, prematuramente (eis o nome do filme), nos olhos do
Outro que o flagra.
Estamos
diante, portanto, de um desses filmes em que o personagem fica preso
no tempo, no qual a repetição do dia se dá em função de um
instante marcado pelo encontro com determinado acontecimento. Toda a
vez que o sujeito encontra com tal acontecimento, ele é lançado
automaticamente à um momento anterior, no qual o sentido é
ressignificado e, ao mesmo tempo, também colocado em questão devido
aos excessos provocados pela repetição.
Há
uma tradição de filmes que apresentam este tipo de narrativa:
“Feitiço do Tempo” (1993), “Meia-noite e um” (1993),
“Inferno na Estrada” (1997), “Efeito Borboleta” (2004),
“Contra o tempo” (2011) e até o blockbuster
“No limite do amanhã” (2014). Tais filmes são exemplos de
histórias em que seus protagonistas ficam presos em uma espécie de
looping
temporal. Todos os roteiros de tais filmes trazem consigo a marca da
dubiedade da experiência de repetição, na qual reconhece-se a
malignidade do aprisionamento em um tempo infinito, mas que também
produz intervenções cujos efeitos modificam a própria experiência
repetida.
Os
personagens em um primeiro momento vivenciam uma estranheza, na qual
não se reconhecem ou se reconhecem como loucos. Mais ainda, pensam
que estão em um sonho. Primeiro tempo marcado pela experiência de
ilusão e pela pergunta “o que está acontecendo comigo”? O
não-reconhecimento da própria experiência é seguido por um
momento de cálculo, no qual se percebe o instante que se repete.
Este segundo tempo promove um tipo de aprendizado - não sem
sofrimento - que permite ao sujeito realizar pequenas modificações
nas cenas que se repetem, já que descobre por tentativa e erro que
os objetos dispostos nestas cenas estão lá quase como se fossem
autômatos - objetos da ficção.
A
satisfação inicial causada por essas pequenas mudanças acionam no
sujeito uma sensação de liberdade que logo prescreve, pois
rapidamente ele descobre que tais modificações não impedem o
reencontro com aquilo que dispara o looping
temporal. Dá-se início a um momento de extrema angústia na qual a
inevitabilidade do encontro com o “acontecimento-gatilho” lança
o sujeito em uma passividade quase absoluta, na qual ele se vê
aprisionado.
Aqui
o
filme torna-se
mais interessante,
pois neste momento nos deparamos com a
estratégia
que
o
garoto utiliza
para“sair
de cena” e voltar ao início da história.
Qual estratégia será essa? Produzir um reencontro com o
“acontecimento gatilho”,
que no
filme
está
associado ao ato de gozar. Comportamentos inadequados e bizarros como
o de masturbar-se na frente do diretor da escola, ou ser agredido na
região
genital de forma tão
intensa a ponto de lhe produzir um orgasmo - ambos realizados
intencionalmente com o objetivo de dar um reset
na história
–
apresentar-se-ão, ao mesmo tempo, como causa e efeito de suas
repetição
infernal.
Ao
colocarmos uma lupa sobre este
instante traumático
marcado por uma repetição
perpétua,
notamos que setrata
de um paradoxo provocado por um excesso extremo de tensão.
Aprendemos com Freud que esse excesso produz formas de repetição.
Quantas vezes não presenciamos nas análises
que conduzimos a reiteração incessante de um tema que, além
de ter função
de elaboração
(recordar, repetir e elaborar), também
cumpre a função de escoar a tensão acumulada pelo impacto de
determinado estímulo
perceptivo (fonte de excitação).
Tal constatação
recupera a ideia de Zilberberg (2011) de que a repetição
é
a
confirmação
do esperado.
Nesses
casos, a repetição parece surgir como uma forma de proteção
contra a subtaneidade desta “alguma
coisa a advir”.
Se, para Freud, o princípio
de prazer é
uma
tendência
que opera para reduzir as excitações no aparelho psíquico,
a compulsão
à repetição
serve para dominar retroativamente as excitações que, na ocasião
de um trauma, fizeram efração no aparelho psíquico:
Quaisquer
excitações
provindas de fora que sejam suficientemente poderosas para atravessar
o escudo protetor. Parece-me que o conceito de trauma implica
necessariamente uma conexão desse tipo com uma ruptura numa barreira
sob outros aspectos eficazes contra os estímulos.
Um acontecimento como um trauma externo está
destinado
a provocar um distúrbio
em grande escala no funcionamento do organismo e a colocar em
movimento todas as medidas defensivas possíveis.
(FREUD, 1920/1976, p. 45)
Constatamos,
portanto, que a
repetição
cria um efeito de parada na progressão
da
narrativa do filme.
A entrada de algo novo dentro das próprias repetições do
personagem vão transformando
o sentido da repetição, que passa a ser a preparação para a
mudança,
o caminho sem surpresas para uma virada de impacto. Eis o ponto em
que um certo real da repetição pode ser sobreporà
realidade através do trabalho ativo do trauma (DUNKER, 2006).
Será
neste ponto fértil da repetição que o analista poderá operar
importantes transformações, permitindo que o sujeito traumatizado
possa repetir de maneira diferente.
1
“Filhinhos da mamãe”, um registro da sexualidade masculina
maravilhosamente descrito por Ricardo Estacolchic e Serio Rodríguez
em “Pollerudos
– Destinos en la Sexualidade Masculina” (2011).
Referências
Bibliográficas
Contra
o tempo (SOURCE
CODE).
Direção: Duncan Jones. Produção: Mark Gordon; Jordan Wynn;
Phillippe Rousselet. Estados Unidos, França e Canadá. Summit
Entertainment, 2011.
DUNKER,
C. I. L. A função terapêutica do real: trauma, ato e fantasia.
Pulsional.
Revista de psicanálise,
ano XIX, n. 186, junho/2006.
Efeito
Borboleta (The Butterfly Effect).
Direção: Eric Bress; J. Mackye Gruber. Produção: Anthony Rhulen;
Chris Bender; Ashton Kutcher; J.C. Spink; A. J. Dix. Estados Unidos,
New Line Cinema, 2004.
ESTACOLCHIC,
R & RODRÍGUEZ,
S. (2011) “Pollerudos
– Destinos
en la Sexualidade Masculina”
Buenos
Aires: Ed. de la Flor.
Feitiço
do Tempo (Groundhog
Day).
Direção: Harold Ramis. Produção de Trevor Albert e Harold Ramis.
Estados Unidos, Columbia Pictures, 1993.
FREUD,
S.
(1920). Além
do princípio
de prazer. In. Edição
Standard Brasileira das Obras Psicológicas
Completas de Sigmund Freud. Tradução
J. Salomão
vol. XVIII. Rio de Janeiro: Imago, 1976.
Inferno
na Estrada (Retroactive).
Direção: Louis Morneau. Produção: David Bixler; Brad Krevoy;
Michael Nadeau; Steven Stabler. Estados Unidos, Orion Pictures
Entertainment, 1997.
Meia-noite
e um (12:01).
Direção: Jack Sholder. Produção: Bob Degus; Jonathan Heap; Cindy
Hornickel. Estados Unidos, New Line Home Video, 1993.
No
limite do amanhã (Edge of Tomorrow).
Direção: Doug Liman. Produção: Erwin Stoff; Tom Lassaly et al.
Estados Unidos, Warner Bros, 2014.
PREMATURE.
Direção: Dan Beers. Produção: Aaron Ryder; Karen Lunder. Estados
Unidos, IFC Films, 2014.
ZILBERBERG,
C. Elementos
de semiótica tensiva. Tradução
de Ivã Lopes, Luiz Tatit e Waldir Beividas. São Paulo: Ateliê
Editorial, 2011.
Tiago
Sanches Nogueira é
Psicólogo,
Psicanalista, Doutor em Psicologia Clínica pela USP, Mestre em
Psicologia Clínica pela PUC-SP. Autor do livro "Ensaio sobre um
Infinito: Música e Psicanálise"; Músico-criador, autor do
Álbum Musical ESGRITOS: ROMANCE DE FORMAÇÃO e de trilhas sonoras
para teatro. Membro do Laboratório de Psicanálise, Sociedade e
Política USP. tiagosanchesnogueira@gmail.com