domingo, 24 de fevereiro de 2013

Madagascar, um ensaio sobre o desejo

de Isloany Machado
Outro dia uma pessoa riu quando eu disse que adorava filmes infantis. Digo de novo: adoro filmes infantis! Aprendo muito com eles, inclusive sobre psicanálise. Esses dias, assisti o último da trilogia Madagascar: Os procurados. Para quem não assistiu nenhum dos três, vou fazer um breve resumo. As personagens principais moram num zoológico, nada mais, nada menos que o Central Park, em Nova York/EUA, e são: Melman (uma girafa macho, hipocondríaca), Alex (um leão vaidoso, estrela mor do zoológico), Glória (o hipopótamo, fêmea e graciosa, mais corajosa do que os machos) e Marty (uma zebra macho, cujo maior desejo é sair do zoológico e conhecer a natureza).

            Toda a história começa com o aniversário de Marty que, na hora de fazer o pedido ao cortar o bolo, pede para sair do zoológico e conhecer a natureza. Na primeira oportunidade, literalmente cavada pelos pinguins moradores do zoológico também, Marty, movido por seu desejo, foge. Seus amigos temem por sua segurança e vão atrás dele. São apreendidos pela guarda local e, devidamente acomodados em caixotes, são mandados de volta para o zoológico. Algo dá errado no caminho e eles caem no mar. Todos sobrevivem, mas vão parar na ilha de Madagascar.

            Acontece que nenhum dos quatro conhecia a natureza antes e agora precisam lutar para sobreviver na selva, arranjar o próprio alimento e essas coisas que os animais selvagens fazem. De todos, o único que está feliz, muito feliz, é Marty, afinal seu desejo estava se realizando. Os outros três estão apavorados. Alex, o único carnívoro, tem sua civilidade/animalidade colocada em xeque. No zoológico comia bifes que eram lançados para ele diariamente, mas agora, até seus melhores amigos são possibilidades de comida fresca. Alex enfrenta um conflito ético em relação à sua dieta alimentar. Ele não é um assassino, mas por outro lado, precisa comer carne. Seus amigos tentam remediar a situação oferecendo-lhe peixes. Depois de enfrentar muitas dificuldades na ilha, percebem que não é isso o que querem. O desejo evanesce quando se alcança o objeto desejado. Saem da ilha de Madagascar com um avião trazido pelos pinguins.  

 No segundo, os bravos animais retornam às suas origens. Eles “caem” de avião na África, onde encontram seus pares. Mais do que isso, retornam literalmente às origens, conseguem ter recordações da infância e de suas histórias familiares. Alex, por exemplo, consegue recordar-se de como foi raptado por caçadores que o venderam e assim, descobre como se separou de seu pai e foi parar no zoológico. No encontro com seus pares, cada um deles deveria agora estar feliz, pois ficariam identificados com outros iguais a eles, mas não é o que acontece.

Eles acabam ficando mimetizados entre os outros, que são muito diferentes deles. Alex é o que mais sente a perda da posição de destaque que ocupava no zoológico, lá ele era Rei. O que havia se tornado? Mais um entre outros e, para piorar a situação, era um leão com excesso de conflitos éticos que não sabia caçar, rugir para assustar de verdade. Ele não passava de um leão dançarino, um bobo. Além de tudo, Alex precisa se confrontar com a queda de sua posição narcísica. De Rei, ele é reduzido a um resto, um nada. Seus amigos, sem saber como consolá-lo, fazem na areia uma escultura reproduzindo o zoológico Central Park, mas não é a mesma coisa. O objeto está perdido desde sempre e todo o resto será mera representação satisfatória. Mais uma vez a decepção, pois não é isso o que querem.

            No terceiro estão tentando a todo custo retornar para o Central Park, pois acreditam que lá é o lugar deles, alucinam o objeto perdido. No caminho de volta pra “casa”, passam pela França, pegam carona com o trem de um circo que só tem animais, não tem humanos. Estão todos – os quatro mais os animais do circo – à mercê do próprio fracasso. Este circo já foi bastante famoso, mas uma fatalidade ocorreu com o tigre (o grande astro do circo). Vejam que os felinos são os maiores astros da trilogia.

O Tigre atravessava argolas incandescentes com mestria. No espetáculo, as argolas começavam grandes e iam diminuindo até não passarem de um pequeno anel, pelo qual o tigre passava com o louvor do público. Mas como sua ambição era grande, um dia colocou uma argola muito pequena e besuntou-se de azeite para poder escorregar pela argolinha com mais facilidade. Pelo excesso de azeite e por causa da argola incandescente, o tigre teve o corpo queimado e nunca mais conseguiu superar o fracasso diante do público. Há um conflito narcísico também com este pobre felino. Depois deste episódio, o circo começou a perder público até quase falir.

No encontro com os quatro viajantes, algo reacende nos circenses, talvez desejo pelo desejo do outro, não sei, mas conseguem reerguer o circo. Todos participam dos espetáculos e o tigre volta a fazer seu número, substituindo azeite por condicionador de cabelo. Agora estarão os quatro satisfeitos? Não. Eles querem retornar ao zoológico, a casa deles. Querem retornar àquele paraíso de gozo, perdido com a partida para a natureza. Atravessam a Europa e, não me perguntem como, chegam ao Central Park. Tudo está escuro e o lugar lhes parece bem menor do que se lembravam. Enfim, estão em casa, felizes e satisfeitos? Não. Mais uma vez, não é isso. Eles entram em apuros e são resgatados por seus amigos circenses, passam a viver com eles, viajando por vários lugares. Uma vez ouvi dizer que um sujeito desejante é um sujeito viajante, que está sempre com as malas prontas para uma nova partida. Assim foi que aprendi com esta trilogia infantil que sempre seremos estrangeiros em qualquer morada. É melhor que sejamos viajantes, sempre em busca de desejar, e não de realizar o desejo, pois este, ah, este não se realiza nunca!
Isloany Machado, 13 de outubro de 2012.
Isloany Machado é Psicóloga, Psicanalista, membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano – MS. Especialista em Direitos Humanos pela UFGD e em Avessos Humanos pelo Ágora Instituto Lacaniano. Mestranda em Psicologia pela UFMS. Despensadora da ciência e costuradora de palavras por opção, é autora do livro “Costurando Palavras” (ed. Life, 2012) e fundadora do blog  www.costurandopalavras.com.br

domingo, 17 de fevereiro de 2013

Freud: The Secret Passion - parte III: O filme deixa marcas na equipe de produção

de Nilson Perissé
Embora tenha sido concebido pelo diretor norte-americano John Huston como um filme popular de suspense psicológico, “Freud, Além da Alma” (Freud: the Secret Passion), de 1962, tinha representações diferentes para os demais responsáveis por sua realização: Sartre, roteirista original, idealizou uma obra de arte voltada para um público erudito; Montgomery Clift via no papel de Freud um resgate de sua carreira; os estúdios da Universal esperavam um misto de sucesso comercial com prestígio de crítica. Submetida às fantasias de cada um, depositária de desejos divergentes e lidando com os temas polêmicos da psicanálise, a produção americana de “Freud” foi como que tomada pela “peste” anunciada pelo biografado ao visitar os Estados Unidos, trazendo consequências inesperadas para aqueles que dela participaram.
Com base em depoimentos deixados pelos principais envolvidos na produção do filme, esta resenha em três partes propõe-se a refletir sobre os desafios da proposta psicanalítica e a forma como é apropriada por aqueles que dela se aproximam. 

Freud, além da alma- parte 1: procurar neste blog pela data 12 de janeiro de 2013 
Freud, além da alma- parte 2: procurar pela data 27 de janeiro de 2013


Freud no cinema americano: a peste que insiste em incomodar 
Capítulo Final: Freud, além da alma deixa marcas na equipe de produção. Repercussões do filme e reflexões finais.
Clift caracterizado de Freud
Na biografia que Robert LaGuardia escreveu sobre Montgomery Clift, um capítulo inteiro é dedicado a Freud. Embora grande parte do texto esteja focada nos conflitos intermináveis entre John Huston e o ator – e LaGuardia pareça carregar com tintas fortes e amargas esse embate – o biógrafo admite que Huston nutria grande ambição pelo filme. “Ele tinha entrado no projeto com a intenção de fazer um filme importante, um extraordinário filme. Percorreu um longo caminho para contratar psiquiatras, hipnólogos, pacientes; insistiu em filmar de forma cronológica, para que os atores pudessem sentir a intensidade da construção mental de Freud; planejou as cenas meticulosamente em longas tomadas, de forma que o público pudesse entrar na mente dos personagens sem distrair-se com cortes”(2). Huston foi além: para garantir realismo na cena em que Charcot apresenta seus pacientes para os alunos, contratou e trouxe para as locações na Alemanha o Dr. Steven Black, especialista em hipnose de Londres, e alguns de seus pacientes reais. O Dr. Black condicionou seus pacientes, através da hipnose, para que, ao contato com a voz do ator que interpretava Charcot, entrassem em transe hipnótico e agissem conforme ele comandasse durante as gravações.
Freud trata Cecily
As filmagens dessa cena duraram dias, foram exaustivas, exigiram troca de “pacientes” que não funcionaram como o esperado, gastaram uma boa parte do orçamento do filme. Por outro lado, foram responsáveis pelo que é considerado por muitos como uma das cenas mais impressionantes do filme - e ao mesmo tempo evidenciam as altas expectativas de Huston com a produção. Entretanto, ao longo do desastroso processo de materialização da saga freudiana, Huston perderia completamente seu entusiasmo e seu gosto pelo trabalho. “Prefiro mil vezes refilmar As Raízes do Céu [um dos fracassos de sua carreira], com tudo o que teria que enfrentar de novo. (...) Se o filme foi um inferno para Monty, para mim também se constituiu numa experiência medonha”, admitiu (3).  

A verdade é que Freud teve repercussões – em variados graus de importância - na vida de quem participou de sua produção. A começar por Sartre. Roudinesco observa com bom humor a saia justa em que o filósofo francês havia se metido: “Ele, que havia desde sempre negado a existência do inconsciente, estava agora lidando intimamente com seu inventor – uma situação sartreana por excelência” (4). Ela pondera que esse relacionamento não o deixou sair ileso do desafio: “Pode-se colocar as questões dessa forma: através de um Freud mais freudiano que o original, Sartre em parte renuncia à sua posição filosófica anti-freudiana de sua obra inicial” (5). Pontalis também identifica uma mudança de Sartre em relação a Freud: “A ideia que Sartre fizera de Freud anteriormente – a de um chefe de escola doutrinário e meio limitado, de um filósofo medíocre, nenhum de cujos conceitos resistia a um exame (...), essa ideia já não se sustentava. (...) A intransigência de Freud, o que havia nele de intratável quando a questão era ceder quanto ao exigido pela verdade, sua oposição tenaz à medicina e à psiquiatria reinantes, no que elas só faziam ostentar seus títulos, o anti-semitismo dissimulado de que ele foi alvo, sua solidão, ou melhor, o que ele teve que viver como solidão, e ainda sua pobreza e seu longo desdém pelas honrarias: é muito pouco dizer que todos esses traços seduziram Sartre. Por um lado, ele se reconheceu neles. (...) Sem querer exagerar, pode-se também elaborar a hipótese de que o roteiro sobre Freud foi também para Sartre um roteiro de Freud em que ele representou um papel; de que, no começo encarado como um divertimento em relação ao trabalho a que iria se consagrar inteiramente, o roteiro o fez divertir-se com o seu próprio programa. Talvez, por um tempo, ele tenha consentido, mas rindo às escondidas, em aceitar-se, como todos nós, filho de Freud” (6).
Breuer e Cecily
Pontalis argumenta que o tema do filme também teve seu efeito na equipe de produção, “mais ainda durante a filmagem, a julgar pela descrição detalhada que dela faz Robert LaGuardia em sua biografia de Montgomery Clift”(7). LaGuardia, que teve o mérito de entrevistar testemunhas da produção de Freud, incluindo o roteirista Wolfgang Reinhardt e a atriz Susannah York, reconstituiu os contratempos da filmagem que, na sua opinião, “destruiu o que quer que ainda houvesse na vida de Monty. Quando os cinco meses de filmagem acabaram, Monty era um cadáver andante” (8).
Ele conta que Montgomery Clift encontrava-se com a carreira instável e ameaçada por seus graves problemas com alcoolismo, e vislumbrara na possibilidade de representar Freud uma chance que não poderia ser perdida. Haviam muitas evidências de que Monty não estaria em condições de enfrentar um papel de protagonista e cheio de desafios como seria o de Freud. Em 1961, Marilyn Monroe – que havia protagonizado com Clift o filme “Os Desajustados” (The Misfits, 1961), de John Huston, e que morreria vítima de overdose de medicamentos naquele mesmo ano, descreveria Monty como “a única pessoa que eu conheço que está num estado pior que o meu” (9). Por outro lado, exatamente pelo tamanho do desafio, aquele poderia ser o filme que o redimiria perante Hollywood e, quiçá, perante si mesmo. Clift, conhecedor do processo analítico e das teorias freudianas, considerou a proposta irrecusável, embora, ao receber o roteiro já reescrito por Huston, tenha considerado os diálogos ruins, algumas falas vulgares e certas frases de difícil compreensão. Tranquilizou-se diante das alegações de Huston de que tratava-se de um roteiro provisório que seria totalmente reescrito, e assinou o contrato.
La Guardia atribui muito dos conflitos entre Monty Clift e Huston ao desequilíbrio emocional em que o primeiro se encontrava, mas Huston, por sua vez, em nada facilitou. Às vésperas do início das filmagens, ao tomar conhecimento do homossexualismo de Monty (segundo LaGuardia, Huston teria surpreendido o ator na cama com um namorado quando hospedados em sua residência), o diretor considerou a situação inaceitável, chamou Clift para uma conversa em particular e fez uma série de exigências, nas quais “Monty não deveria se comportar de forma homossexual ou ter qualquer relacionamento homossexual enquanto trabalhasse no filme. Deveria se comportar de uma forma normal. Não deveria beber ou tomar pílulas” (10).
Freud e Cecily
Foi o início desastroso de uma relação profissional que se transformaria num relacionamento marcado por contornos patológicos. Segundo testemunhos apresentados a LaGuardia por integrantes da equipe, Huston passou a tratar Monty com rispidez, desconsideração e a submetê-lo a humilhações. Se nas primeiras semanas de filmagem o ator apresentava algumas dificuldades em decorar suas falas, nas semanas seguintes já não conseguia memorizar uma única frase inteira e era obrigado a ler partes do roteiro em pequenos papéis colados na mobília do set.
Na famosa cena em que Freud, em sonho, escala uma montanha segurando uma corda, escorrega um pouco e depois chega ao topo, o conflito parece ter chegado ao seu ápice. LaGuardia conta que as palmas das mãos de Monty, muito sensíveis devido a um acidente automobilístico do passado, machucaram-se ao contato com a corda durante as filmagens. “Era óbvio que Monty estava sentindo dor e exausto, mas Huston mandou cortar e refazer a cena. O sangue saia das mãos de Monty. Alguém contou a Huston; alguém também perguntou a Monty se ele não queria descansar. Huston insistiu que prosseguissem; Monty recusou-se a parar. (...) Pela sétima ou oitava tomada, suas mãos eram uma massa sangrenta, e o sangue escorria pela corda. Mais uma vez Huston mandou refazer, e novamente Monty recusou-se a descansar” (11).
Breuer e Freud
LaGuardia fala de um ambiente progressivamente tenso, com rompantes de choro de Susannah York diante do embate entre Huston e Clift, cenas refilmadas interminavelmente, atrasos no cronograma e uma produção fora de controle. Por conta das constantes desavenças - Huston à deriva na direção e Monty Clift cada vez mais inseguro e incapaz de representar -, um clima sombrio e um sentimento de estranhamento tomavam toda a produção. Comenta LaGuardia: “Naturamente, nessa ocasião, nessa atmosfera pesada, (...) membros do elenco e da produção teorizavam. Era John Huston um homossexual enrustido? Era Monty um masoquista que amava secretamente John, ou vice-versa, sendo John um sádico? (...) Um a um, os homens e mulheres envolvidos com a filmagem de Freud, embrenharam-se numa atmosfera psicológica sufocante. Por meses eles estavam, literalmente e figurativamente, presos numa sala pequena e sem ar, forçados a ponderar sobre a verdade acerca de si mesmos e seus relacionamentos com os outros. O filme tinha uma única locação principal, numa cidade onde a maior parte do elenco não era familiar ao idioma local, o que os forçava a se recolherem a si mesmos. Dia e noite, atores, operadores de câmera, diretor, produtor e equipe técnica comia, dormia e respirava Freud. (...) Conversas intermináveis sobre repressão, o inconsciente, Monty e Huston, e ensaios, enchiam o ar. O espectro de Sigmund Freud assombrava e permeava tudo ao redor” (12).
Quando foi, enfim, concluído, Freud, além da alma contava com quatro horas de duração. “Dia após dia, Wolfgang Reinhardt mantinha-se na sala de cortes da Universal enquanto seu filme de quatro horas era cirurgicamente amputado em pouco mais de duas horas, e mais tarde, antes da exibição, em hora e meia. Todo o material com conteúdo sexual foi abandonado” (13).
O lançamento nos Estados Unidos ocorreu em 12 de dezembro de 1962 - inicialmente nos cinemas de arte de Nova Iorque, tendo obtido grande sucesso com lotações esgotadas. Porém, quando foi estendido para o circuito popular, nos demais estados, passou quase despercebido. “De modo geral, o público não gostou”, conta Huston. “Os chefões dos estúdios depositaram grande fé nele, achando que ia ser a produção mais importante da Universal naquele ano. No fim foi tudo menos isso, decepcionando profundamente tanto eles quanto eu”(14). Elisabeth Roudinesco fala sobre a repercussão na França: “não teve nenhum sucesso. Ainda assim, a fotografia em preto e branco de Douglas Slocombe recaptura de forma soberba o universo barroco do fin de siécle de Viena. Quanto a Montgomery Clift, representa um angustiado, sombrio e frágil Freud, mais próximo do James Dean de ‘Juventude Transviada’ do que da figura mumificada imposta pelos historiadores oficiais da psicanálise: um personagem, de todas as formas, mais sartreano do que jonesiano. A obra foi distribuída nos cinemas de Paris no início de junho de 1964, duas semanas depois de Lacan ter fundado a Escola Freudiana de Paris. Passou completamente despercebido pelos psicanalistas de Paris, que fracassaram em procurar no filme o herói de sua imaginação”(15).
Alguns anos antes de morrer em 1987, John Huston reviu seu filme, e ponderou: “Tem coisas boas. Apesar das dificuldades que tive com Monty, o gênio dele está bem manifesto no filme e acaba, a meu ver, dando um desempenho simplesmente extraordinário”(16). Reconhecimento tardio: Freud seria o penúltimo papel de Clift, que de tão desacreditado na indústria levou quatro anos para receber outra proposta comercial – tendo falecido logo em seguida ao seu último filme, aos 46 anos, vítima de ataque cardíaco.
Apesar das polêmicas e tragédias que testemunhou, Freud, além da alma continua sendo uma experiência narrrativa estimulante e cheia de significados, pequena joia pronta para ser redescoberta. Suas outras cenas – não as que aparecem no filme ou as que foram cortadas na ilha de edição - falam da dificuldade da cultura americana em compreender a centralidade da experiência freudiana, emblematicamente exposta nos embates conceituais entre o europeu Sartre e o americano Huston. Ao mesmo tempo, reafirmam o quanto a psicanálise é subversiva ao colocar a sexualidade como eixo de sua discussão – fato que se observa não apenas na tesoura censora que cortou cenas inteiras da produção como no próprio acting-out de um Huston incapaz de lidar com seus próprios preconceitos e de aceitar que o protagonista de seu filme fosse homossexual. A experiência de Freud denuncia também as inúmeras soluções de compromisso a que a indústria do cinema se expõe para garantir um sucesso de bilheteria, ainda que isso implique em falsear a vida. Como disse LaGuardia, “ironicamente, as pessoas que fizeram Freud, em seu encontro pessoal e em suas interações com o material do filme, criaram uma história por trás das câmeras tão dramática, tão angustiada, que faria o filme parecer patético por comparação” (17).
Nada mais psicanalítico que a eloquente batalha que se instaurou nessas diversas interações. Em meio às falhas do simbólico representado pelo que deveria ser um simples filme, as questões da psicanálise ali estão, expostas nas brechas dos bastidores das filmagens que revelam um material esquisito, cheio de situações bizarras, onde algo estranho, inconsciente, insiste em vir à tona. Esse inconsciente, feito peste que insiste em incomodar, repercutiu em Sartre, e por que não acreditar que também teve influência sobre um Huston e um Clift, que tiveram abertas questões que preferiam ter adormecidas?
Assim como a questão freudiana, Freud, além da alma nos invoca e nos provoca pelo filme que é e pela tumultuada produção que o construiu - e vale à pena assistir. Se for competente em nos instigar, certamente nos levará a outro tesouro – o roteiro de Sartre, experiência literária inesquecível e extraordinária que, resgatada do anonimato com sua publicação em 1984, é em si prova de que o destino de todo recalcado é, inevitavelmente, emergir.
Freud, Além da Alma  (Freud: The Secret Passion) : completo

Nilson Perissé é Mestre em Sistemas de Gestão, psicanalista em construção e bacharel em Comunicação Social. É autor da dissertação “A gente já entra se sentindo menor: impactos da terceirização na subjetividade do trabalhador”. No Cinefreudiano, publicou o artigo “O Desejo em Woody Allen”. Para correspondência: nilsonperisse@hotmail.com

sábado, 2 de fevereiro de 2013

Um brinde!

de Liz Guimarães Vasconcelos


Trata-se sempre de uma relação com o furo, com o vazio no Outro, que o artista, o louco, a mulher e o analisando em fim de percurso- cada um a sua maneira- podem encontrar e da qual podem dar testemunho”. (Alain, Didier-Weill).


O furo no saber se faz presente na dança. Há uma dimensão de finitude constante no ato do dançar.
Para esse resto inominável do fim, para um luto simbolizado e seu resto inaudito, danço. Passo. Passo do olhar que reconhece para o olhar que ouve. Encontro o vazio do Outro.
Des-ser. A dança mixx foi criada a partir do fim de minha análise. Dança das mixxturas, das alienações e separações. Dança da relação com o som.
Os tempos de ver- tempo de angústia
Tempo de compreender- tempo de oscilações. A queda.
Quando concluir? Tempos de furo no saber. Há que inventar! Há um resto inominável na qual a dança encontra seu ponto mais iluminado. Valida o des-ser, possibilita a queda e aponta a passagem.
Do conhecimento paranoico ao desconhecimento do outro. Passagem da satisfação pulsional escópica ao corte na carne. Chegando até onde posso ir.
Ao meu fim de análise, me autorizo a dançar e a ouvir o som!!! Tin tin.
DANÇA MIXX
Liz Guimarães Vasconcelos
Liz Guimarães Vasconcelos é psicanalista, professora, coreógrafa, dançarina, psicóloga. Criadora da DANÇA MIXX. Estuda a organicidade do movimento, a relação dança- som e a constituição da imagem corporal e suas relações com o psiquismo. Fundadora do blog http://dancamixx.blogspot.com.br/