domingo, 15 de junho de 2014

PHILOMENA : Culpa, parente da angústia?

de Henrique Senhorini

...certas dívidas, especificamente simbólicas,
excluem a chance de um acerto de contas completo, sem resto.” Oscar Cesarotto

O filme "Philomena" do diretor inglês Stephen Frears, com quatro indicações para o Oscar em 2014, além de carregar seu nome, foi inspirado em sua vida. Até dá para pensarmos que é quase um documentário, mesmo com as pitadas de humor(?) que o diretor - proposital ou não - insiste em amalgamar com a crueza da vida como ela é. 

Mas afinal, a nossa vida não é um documentário ficcional? A nossa própria história “verídica” também não é uma ficção, visto que sua tessitura é permeada pela fantasia?
E este excelente filme bem demonstra o lugar de importância que a fantasia ocupa em nossas vidas. Trata-se de um lugar que tenta nos fazer esquecer a máxima de Hélio Pellegrino: “a condição humana não tem cura”. Pois, a fantasia consegue, de acordo com o enunciado freudiano, produzir uma satisfação que é negada pela realidade. Pensando com Coutinho Jorge, a fantasia é uma solução para nós sub-existirmos com um minguado de satisfação que podemos retirar da realidade. Contudo, não é propriamente da fantasia que vou tratar aqui, mas, sim, recortar um afeto tão presente no filme e caríssimo para os neuróticos (no mínimo, somos neuróticos): a culpa.

Bem, como já disse, o filme é baseado na história real de Philomena Lee, uma senhora irlandesa que teve seu filho de três anos de idade, Anthony, “adotado” em 1955 por uma família organizada de acordo com os padrões de sua igreja. E por saber que se tratava de uma história verídica e, concomitante, não pertencente exclusivamente à personagem que dá nome ao filme “Philomena”, causou em mim uma indignação tamanha, que só escrevendo sobre para, quiçá, elaborar melhor. E o filme tem muito disso, luto e elaboração, luto e elaboração, luto e elaboração...
Porém, confesso que não foi nada fácil digerir que o acontecido não foi na idade média, mas na metade do século passado. Porém, pior é saber que em pleno século XXI, ainda acontece esse tipo de barbárie. E minha indignação – raiva e repulsa – aumentou mais além, quando fiquei sabendo, diga-se de passagem, que mais de duas mil (2.200 mulheres/mães, segundo a Folha de S.Paulo) conterrâneas de Philomena – irlandesas como ela – tiveram a sua mesma má sorte, a de vivenciarem a adoção forçada pela igreja católica irlandesa - na realidade, vendidos - de seus filhos por pais norte-americanos endinheirados.

Após este meu desabafo (eu precisava disso), vamos ao filme...
Mas, antes de adentrarmos na história apresentada, só um lembrete que considero importante mencionar: vamos tratar aqui da história retratada no filme, somente dele.
Bem, dito isso, a primeira cena com a protagonista mostra Philomena - idosa e nos dias atuais - numa igreja acendendo uma vela e respondendo ao padre que era para alguém especial. Em seguida, o diretor mostra-a sentada em um banco eclesial relembrando um grande acontecimento de sua vida. Via flashback, ela se vê vivenciando um momento raro seu de intensa felicidade, que a marcou para sempre e de várias maneiras. Um rapaz galanteador que conhecera momentos antes, no parque de diversão nos anos 50, no qual se encontrava, a corteja. Philomena, uma feliz menina moça do após-guerra, experiencia pela primeira vez um romance tórrido, abrasador e - talvez por isso mesmo - fugaz. A sua maçã de amor mordida é destacada ao cair no chão. Igreja + padre (pai) + maçã = Eva + pecado original? Temos aí uma intenção do diretor?
Stephen Frears, o diretor, avança nas lembranças e nos mostra Philomena, já grávida, sendo inquirida pela madre superior do mosteiro, a Abadia Roscrea. Um local religioso que recebia futuras mães solteiras, levadas por suas famílias envergonhadas. E, logo no início da inquirição, a tal madre dirige esta pergunta a Philomena: “Você gostou de seu pecado?”

um pequeno parênteses aqui
Interessante a palavra pecado (pe-cado): pé caído; pecar: dar um passo em falso, palavras que fizeram, segundo Geraldino Alves Ferreira Netto, surgir as expressões “queda original” e “cair em pecado”. Geraldino ainda nos lembra de Édipo, “pé inchado”, pois seus pés foram amarrados “para não pisar em falso, cair em pecado, em erro de julgamento, em incesto”. Porém, o pé inchado o fez mancar.

Continuando na Inquisição, êpa, na inquirição, Philomena tenta se defender, já quase em prantos: “Nunca me ensinaram sobre [fazer] bebês”. Defesa esta que faz a madre, de bate-pronto e com língua incendiária, culminar: “Não ouse culpar as irmãs (sic). Você é a causa desta vergonha. Você e sua indecência.”.
Em seguida, outro corte e o diretor avança mais um pouco na linha do tempo mostrando a cena do parto. Parto este - pélvico e sem anestesia - sendo realizado pelas próprias freiras. Mas, diante da constatação que o bebê de Philomena - aos berros pela dor - se encontrava em posição invertida, uma das freiras, acho que a parteira principal, sugere para a madre superior chamar um médico. Porém, ela recusa a proposta dizendo: “Está nas mãos de Deus agora. A dor é a penitência dela”.  Crime e castigo?  Sim !!!  Philomena foi considerada culpada pela madre superior e o parto doloroso era somente o inicio de sua pena.

outro parênteses aqui...
Ceder ou não ao desejo? Talvez este seja o ponto fulcral das divergências entre a psicanálise e a religião, como nos lembra Geraldino Netto, visto que - generalizando - para as religiões a culpa é decorrência de ceder ao próprio desejo, enquanto a psicanálise, através de Lacan, nos ensina o contrário: “a única coisa da qual o sujeito pode ser culpado é de ter cedido de seu desejo”, em A Ética da Psicanálise.

Mais um corte do diretor proporciona o retorno de Philomena ao sofrimento atualizado pelas lembranças. Era o dia no qual seu filho Anthony completava 50 anos que provocava tamanha dor. E ela carregava o segredo de ter tido este filho por todo esse longo tempo, mais o fato dele ter sido “doado” contra a sua vontade. Sim, de ter tido o filho e não dito ao mundo sobre sua existência, a de Anthony, mais a tentativa, via resignação, de aplacar sua dor, mais o fato não ter ido procurá-lo, de nada saber e ou não querer/poder saber sobre o filho, era o seu martírio (em botânica, flor-da-paixão). Essa era a pena a cumprir. Mas, o que fazer? Afinal, a sentença da madre superior fora dada e Philomena não sabia como pensar e fazer diferente, principalmente diante do mundo no qual
vivia. Até se deixou convencer de sua culpa, assinando um documento padrão - produzido pelas freiras para as mães solteiras - desistindo da guarda de seu filho. O mesmo serviria posteriormente para impedir essas mães a voltarem atrás de suas decisões e, ao mesmo tempo, protegeria as “irmãs” de seus atos criminosos.
Só que meio século depois ela cansou de pagar esta dívida impagável, imposta pelas normas sociais e religiosas de sua época. E, talvez, por viver agora no presente, numa sociedade um pouco mais branda em relação ao seu pecado, mãe solteira, lhe tenha dado a coragem necessária de, enfim, lutar a favor de seu desejo.

um aparte...
Aqui tem um fato indicando que a culpa pressupõe um Outro. Não um outro qualquer, mas um grande Outro. Lembramos que geralmente a mãe é nosso primeiro de muitos Outros (mãe, pai, tio, professor, padre, igreja, Deus, empresa, sociedade, capital, etc...), em termos de importância para cada um de nós. De acordo com Colette Soler, “há uma culpa em relação às normas do Outro” e esta, a culpa, “se desloca quando as normas mudam”. Portanto, podemos pensar que a culpa tem íntima ligação com o Outro, com suas normas e ideais.

Culpa, dívida? Shuld, na língua do pai da psicanálise, a língua alemã. E as línguas germânicas permitem a uma única palavra fazer uma sobreposição de significados. Esta sobreposição encontra na formulação da metapsicologia freudiana sua parente, a angústia. Mas não qualquer angústia e sim um tipo especial, a produzida pelo supereu (superego).
Em “Declinações da Angústia”, Soler nos diz que esses afetos, a culpa e a angústia, mesmo sendo diferentes são irmãos, pois se avizinham, seguem-se e se combinam particularmente “nos sujeitos que são fortemente submetidos à voz do supereu”. E com este “não há perdão, não há circunstância atenuantes: não se escapa da prisão com o supereu!”. Ainda com a autora, a diferença entre os afetos superegoicos é que a culpa engana, não produz certezas, já a angústia produz. E as angústias do supereu são as mais ferrenhas e talvez, também, as mais “devastadoras” e “aberrantes”. Entretanto, a culpa, como a psicanálise nos ensina, é fundante da subjetividade e o seu fundamento não está ligado ao fato de gozar e sim ligado ao fato - Lacan em "Subversão do sujeito", segundo Colette Soler -  que o gozo é sempre perdido, parcial, limitado e insuficiente. Ligado "a falta do gozo", a falta.

E nós, neuróticos, privilegiamos "as formas de gozo que participam da privação: o gozo da falta de gozar".  Isso significa que nos é impossível evitar a culpa? Essa é nossa pena? A pena de existir ?
S.Paulo, maio de 2014 
Trailer do filme

domingo, 1 de junho de 2014

Confidências Muito Íntimas (Confidences Trop Intimes)

de Graça Nunes

"(…) É necessária apenas uma condição: que haja sintoma analítico e que haja sofrimento no sintoma, que ele se apresente como desprazer. Isto basta para implicar a transferência e colocar em marcha a experiência." (Miller, 1999, p.55) 
Confidences Trop Intimes ou Confidências Muito Íntimas de Patrice Leconte é uma original história de descobertas entre analista e analisando.   A dupla é formada por Anna e William. Ela (Sandrine Bonnaire) linda, em torno dos 35 anos vive um momento difícil no casamento. Ele (Fabrice Luchini) aparentemente leva uma vida presa às convenções e tradições, advogado tributário engravatado, solitário e recentemente terminou um relacionamento com Jeanne que o deixou por um personal trainer
Patrice Leconte, com leveza, mas sem tirar o tom reflexivo imposto pela situação de sofrimento que leva alguém a buscar um psicanalista nos mostra o encontro inusitado de Anna e William.  Como quase sempre nos filmes franceses,  os diálogos são intensos e bem elaborados.  Não há nenhuma  cena de sexo durante o filme todo, o erotismo é sutil, está nas palavras ditas, nas não ditas, olhares, respirações, lances e relances.... rápidos ou lentos como se o tempo fosse suspenso.  Em tudo assemelha-se à experiência analítica.
Anna tem uma sessão de análise agendada para aquele final de tarde de chuva  em Paris. As muitas camadas de casacos e cachecóis pesados fazem pensar em empacotada, ou revestida e protegida antes de propriamente vestida. Ao entrar no edifício de escritórios pede informações para a concierge e um pequeno mal entendido a leva ao escritório de William , advogado tributarista que fica no mesmo andar do consultório do psicanalista Dr Monnier (Michel Duchaissoy).
 A surpresa que mudará a vida de ambos bate a porta de William, um solitário. 
A primeira vista, o local lembra um ambiente analítico, luz fraca, sóbrio, um divã, um telefonema que o advogado recebe e de sua conversa pode-se depreender que fala do estado de um paciente moldam para a angustiada Anna a certeza de estar frente à um psicanalista. 
Ele, sem imaginar o engano, propõe um preenchimento de ficha com dados pessoais. Imediatamente, segue-se a fala de Anna dizendo que está com problemas conjugais, e que não tem tido contato sexual com o marido.  Além disso, diz, ''ele poderia fazer de outro modo, mas já não me toca não me beija, não acaricia (…) Sinto falta de como éramos juntos."
Anna está sem âncora, sem ''amarração'', já não se conhece mais...''temo que vou enlouquecer, não tenho com quem falar.'' 
Meu marido não permite que fume, não gosta que trabalhe, ao que o advogado analista replica: e do que mais ele te proíbe? Porque não procuras a liberdade? 

E ela subitamente interrompe a sessão dizendo ''não estou acostumada a falar de mim'' e sai correndo do escritório de William.

Ele a escuta sem julgamento e sem muito a dizer, originando o inicio de uma comunicação entre o par.  Os inconscientes se conectam como algo que se ''engancha '', e se permeia, como a onda na areia. Silêncios, palavras não ditas, respirações, lágrimas, interditos, espaços, pontos, e a dinâmica para a experiência analítica se estabelece. Se ela busca explicações e sentido para seu sofrimento, o silêncio do advogado é a mais perfeita resposta (não há sentido e tampouco explicações para o encontro com o Real),  mesmo que involuntária e causada pela perplexidade frente a surpresa de uma mulher lhe confidenciando segredos sexuais íntimos.
O casamento vai mal, seu marido já não tem relações sexuais com ela, e está obcecado com a ideia de vê-la ''fazendo amor'' com outro homem.  A primeira '' sessão'' termina com a segunda ''sessão'' sendo devidamente agendada por Anna que sugere o dia e hora enquanto pega o talão de cheques para pagar . Único ato falho do filme é que se Ana pagou com cheque, então não haveria razão para mais tarde quando ela falta à terceira sessão, William tentar descobrir o nome dela nas agendas do consultório do vizinho psicanalista Dr. Monnier.
Na segunda visita, ele tenta revelar que não é um analista, ela sai correndo como se adivinhasse o que ele iria dizer , mas não quisesse saber para não destruir o que havia começado.

A química entre os dois atores funciona muito bem, a chuva e a meia -luz dão o toque misteriosos e muito íntimo as confissões.
O filme parece feito em camadas têxteis e de cores, enquanto as roupas de Anna que começam a ser descascadas e diminuem de volume. A estação muda do inverno para a primavera, as camadas do filme também vão diminuindo e aos poucos deixam vislumbrar o que realmente está acontecendo.
Ao escutá-la atentamente, William sem saber se coloca na posição de analista.  Agora temos o analista, a analisanda, e o que era apenas signo, antes do encontro com o analista, é agora sintoma analítico no momento em que é formulada a questão ''o que e isso?, o que está acontecendo comigo?
É isso que Lacan quer dizer com a formulação “o analista completa o sintoma.'' - que corresponde ao discurso da histérica, de acordo com Antonio Quinet.
 Uma das intervenções (William sem saber encarna a douta ignorância com maestria) que ele faz - ''você não gostaria de uma mudança?'' - possibilita a Anna uma abertura para ao menos pensar na existência de outra vida.  Anna, enfraquecida e insegura, na infância levava uma vida instável com mãe desequilibrada acha no casamento com Marc um porto seguro.
Na terceira sessão, para tristeza e surpresa de William, Anna falta.  Ele tenta descobrir quem ela é revistando as agendas do Dr Monnier, sem resultados.
William, confuso com os acontecimentos, busca no Dr. Monnier uma resposta ou talvez uma autorização para poder continuar seu oficio de analista de Anna. Na conversa entre eles, o analista cita Baudelaire ...  ''divãs profundos como tumbas'' e conclui ''ela achou em você, William,  um ouvido disposto,  já que as pessoas perderam a arte de escutar, nem o garçon, nem o barbeiro querem escutar...'' . Pontua para o advogado que toda essa situação não diz respeito apenas aos problemas de Anna e sim aos problemas de ambos.  O psicanalista faz ainda uma analogia entre o ofício de tributarista e o de analista '' seu negócio não é diferente do meu.....o que declarar, o que ocultar....''. Cobra 120 euros de William.
Anna retorna ao escritório de William e diz que está se sentindo violada e suja por ter contado seus segredos a um advogado tributarista.. Muito angustiada, parte rapidamente só para a noite voltar e bater à porta dele para se desculpar e marcar nova sessão. Comparece, fala vagarosamente da infância, do professor de ballet (''primeira pessoa que realmente me olhou'') e executa alguns passos de ballet clássico para William que a olha encantado. Era disléxica, não conseguia ler, contar.
A certa altura,  Anna pega da estante um livro, ''The Beast in the Jungle'', mas não há no filme qualquer referência ao autor, Henry James. Interessante dizer que a trama do livro é sobre uma confidência íntima.  Anna devolve o livro no dia seguinte dizendo que a história é triste e que não gostou do final.
Ao ficar só William dança completamente ''solto'' ao som da música ''Midnight Hour'', numa cena muito bonita, e que mostra as mudanças que vem acontecendo em sua vida.  Enquanto dança tira o paletó, a gravata e é como se ele, assim como acontece com Anna, também ficasse mais leve. Ele havia sido questionado por Anna sobre estar sempre engravatado, e assim mais uma ''camada'' se dissolve.  Ele 'se livra' de um portrait de mau gosto que tinha no escritório enquanto Anna vai se tornando mais e mais leve e sexy sob a escuta e o olhar atento de William. A dança , a mudança na decoração do escritório já denunciam uma mudança psíquica.
A arte da escuta sem julgamento, os silêncios e ausências de respostas vão criando as condições para que alguns efeitos terapêuticos comuns no início do trabalho analítico aconteçam. O coração do filme se revela muito nítido a medida que se despe do peso do obscuro. Não é sobre a fidelidade conjugal , e sim,  sobre a intimidade, a profunda conexão entre duas pessoas que precisam urgentemente alargar os horizontes de suas vidas.  Anna proibida de fumar e dirigir pelo marido, porém incumbida pelo marido a ter sexo com outro homem e William no ''piloto automático'' ou autômaton, seguindo a mesma vida que seu pai levava, mesmo lugar, mesma profissão, tradição, fora da invenção.
A psicanálise diria que ambos necessitam da flechada de Eros, da tiquê, do toque do não sentido e da ética do bem dizer seu desejo.
Diz o diretor Leconte, ''Anna e William são um par reservado que se encontram e descobrem uma fome comum para algo além de suas vidas sufocantes.''
 No decorrer das sessões descobrimos que o marido de Anna está impotente há seis meses, desde que ela ao dar a marcha ré no carro o atingiu e ele teve suas duas pernas esmagadas entre o carro e a parede.  Ele está convencido de que assistir Anna ter relações sexuais com outro homem poderá fazê-lo voltar ao normal.  Para satisfazê-lo Anna diz a ele que está tendo um caso com seu analista.  A mentira excita Anna que confessa a William ter tido um orgasmo na banheira após mentir para Marc. Eventualmente, Marc cura-se da impotência quando aluga um quarto em frente ao escritório de William e instrui o mesmo, por telefone, a assistir pela janela do escritório ele e Anna fazendo amor. William, excluído como o terceiro, assiste a cena primal.  William que estava amando Anna fica tão perturbado com a cena que diz a ela na seguinte sessão: ''você pode falar tudo, mas eu não posso ouvir tudo.'' apesar de estar na posição de analista faz uma desanálise neste momento.

 Anna ao saber do telefonema de Marc para William, despede-se do advogado, e diz que é o último encontro deles.  ''Estou recuperando minha liberdade." Ao que William pergunta: e nós? nossas conversas?  Ela responde que já disseram tudo um para o outro.  Desejando à ela que seja feliz, ele a beija e ela parte andando lentamente pelo corredor do prédio, agora iluminado, mais vivo e colorido.
  Análise terminada com sucesso. Ou análises terminadas com sucesso.
 Antes de sair de Paris ela deixa uma mensagem dizendo que nunca se sentiu tão confortável com alguém e que graças a ele, ela não é mais uma garotinha.  O papel de Anna na análise de William foi o de se fazer desejável para ele e com isso ser o estopim para que ele deixasse de ser tão rígido, tão automático, tão insípido, tão sem desejo.
Segundo Adam Phillips, '' psicanálise é o que duas pessoas podem dizer uma para a outra se concordarem em não ter sexo.''  Para Anna e William, o lugar da fala e da escuta mútuas e o jogo onde os dois se revezam na cadeira/posição do analista, traz para a vida o potencial de cada um para curar suas próprias feridas, e ao se afastar do seguro e conhecido, achar um caminho e viver que pertence só à ele , ou só à ela.  Juntos? 
Talvez esse filme ( Confissões Muito Íntimas) ajude a entender que uma análise é uma situação fundamentalmente assimétrica, na qual alguém ali (que chamamos de analista) coloca-se disponível para mostrar àquele que, justo por ter-se enganado de porta (tal como a personagem Anna), pode então reconstruir os caminhos desse engano – engano que, não custa lembrar, um dia Freud chamou de “falsa conexão”. E como o analista faz isso?
 Ele o faz por meio de uma escuta que, se parece marcada por uma desconcertante falta de saber o que dizer – tal como o personagem William Faber, no filme –, não o é por outra razão que aquela que permite ao paciente encontrar o que ele próprio já sabia, sem saber que o sabia, sobre si mesmo.''  Ana Cecilia Carvalho no texto ''O Ofício do Psicanalista.''

William também deixa Paris e vai ao encontro de Anna que está dando aulas de Ballet em alguma cidadezinha na França.  Envia a ela um bilhete avisando que a está esperando e ela vai ao encontro dele.  Ao reencontrá-lo, ela pergunta: onde nós estamos? e deita-se imediatamente no divã.  William senta no divã junto a Anna e começam a conversar. Não se pode ouvir a conversa dos dois, a tomada da cena é feita de longe, como se fosse do teto e logo após eles desaparecem da cena, nos deixando somente com a imagem do consultório vazio, é como se tivessem ido para outro lugar quem sabe fazer amor, pois como nos diz Miller (...) é uma experiência (a Psicanálise) cuja fonte é o amor. Trata-se desse amor automático, e frequentemente inconsciente, que o analisando dirige ao analista e que se chama transferência." 
Na cena final o novo escritório de William parece iluminado, aquecido, colorido, vazio de histórias e fantasmas, e com potencial para o novo, o acaso, a surpresa, a vida como ela é para os que suportam o encontro de si mesmo, o encontro com seu estranho mais íntimo e a partir disso, reinventar-se.
E como final de análise dos dois seria bom imaginar que encontraram o amor, que como nos diz Forbes : "Amor é encontrar um sentido para si mesmo, através do Outro."
Filme completo

Graça Nunes é Psicóloga, Psicanalista, frequenta aulas e sessões clínicas do IPLA (Instituto da Psicanálise Lacaniana) sob a direção de Jorge Forbes, em São Paulo.