domingo, 4 de dezembro de 2016

A CHEGADA - Arrival

de Ana Paula Gomes

Dennis Villeneuve já havia nos brindado na direção de um dos melhores filmes do século 21 - "Incêndios"- uma espécie de Édipo moderno, que através da herança de duas cartas de uma mãe para seus filhos, permite que eles façam uma travessia ao encontro de suas origens.
Da onde viemos? Para onde vamos? Qual o propósito de estar aqui ? Viver a que será que se destina? Questões essenciais da humanidade, que são retratadas no novo filme de Villeneuve, "A chegada", quando 12 naves alienígenas ocupam lugares aleatórios e inóspitos na Terra, devolvendo para os governantes do planeta, o grande enigma humano, traduzido pelas questões acima.
Para ajudar a resolver tal enigma a linguista Louise Banks é convocada pelo governo americano para tentar traduzir o que dizem os alienígenas, a fim de descobrir o propósito da vinda deles ao planeta Terra.
Louise, interpretada pela fascinante Amy Adams, é uma linguista reconhecida, grande conhecedora das línguas do mundo, e da estrutura da linguagem. No prefácio de um dos seus livros ela escreve: "A língua é a base da civilização, é a cola que une uma nação. Em caso de conflito deve ser a primeira arma a ser sacada".
A partir deste prefácio podemos pensar na bela e lacaniana metáfora que o filme nos proporciona, na travessia que Louise faz para decifrar o enigma alienígena se valendo da língua, seus mistérios e equívocos para tal.
O inconsciente, atemporal, que mistura o passado, o futuro e o presente, embaralha nossa memória, é estruturado como uma linguagem. Essa, a linguagem, servindo à comunicação está fadada ao equívoco. Não há como se comunicar com o semelhante enquanto alteridade, pois o humano sempre conversa com sua própria fantasia, o que bem demonstra o equívoco na leitura que cada nação faz da sua base alienígena e transmite para as outras nações, dificultando o acordo, que é necessário e dificílimo entre elas, para que uma guerra não exploda.
Uma psicanálise é feita através da fala, da linguagem, que permite um acesso à fantasia inconsciente, não-toda traduzível. O acesso a esse impossível de tradução é feito através dessa língua que nos banhou, e também através de alíngua, a integral dos equívocos, fonte dos afetos enigmáticos. É preciso se despir, olhar, escutar e sentir na pele os efeitos desta travessia para aceder a uma pequena margem de liberdade, de escolher e acolher o lugar para onde o desejo nos guia. O desejo, esse alienígena que nos habita.
A Chegada, um filme obrigatório para muitos, especialmente para os lacanianos.

Ana Paula Gomes é psicanalista, membro da Escola Lacaniana de Psicanálise-RJ
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segunda-feira, 17 de outubro de 2016

Do azul e outras cores


de Marcus do Rio Teixeira

Em “Azul é a cor mais quente” (Abdellatif Kechiche, 2013), Adèle (Adèle Exarchopoulos) é uma adolescente que vive num mundo pequeno, dividindo seu tempo entre as tarefas escolares e a diversão com a galera. 
Apesar dessa limitação, ela possui uma sensibilidade muito aguçada pela literatura e uma intuição de que o mundo é muito maior do que os papinhos das amigas. Essas características não são exatamente úteis para melhorar a sua relação com o seu meio, sobretudo no que diz respeito ao sexo: ela enjoa rapidamente de um rapaz com quem iniciou um casinho – mais por insistência das amigas do que por um interesse autêntico – e que é nitidamente inferior a ela na visão de mundo.


As coisas mudam quando ela conhece Emma, uma mulher mais velha e mais experiente do que ela e muito convicta na sua opção heterossexual (na definição de Lacan, heterossexual é todo sujeito que ama as mulheres). A relação das duas é um ótimo exemplo do que Lacan afirma no Seminário 20, Mais, ainda: que as posições masculina e feminina na sexuação não têm necessariamente uma relação com a anatomia. Adèle se situa como objeto causa do desejo para uma Emma que se ocupa da sua sedução de acordo com o cânone masculino. Como frisa Charles Melman, a dimensão da alteridade se instaura no casal, ainda que este seja constituído por seres de corpos semelhantes: Adèle cuida amorosamente do lar enquanto Emma se inquieta com a sua suposta insatisfação e quer que ela seja feliz (o que ela afirma tranquilamente já ser).


O diretor tem o mérito de retratar uma relação entre duas mulheres de forma não preconceituosa e tampouco militante: enquanto seres da linguagem, Adèle e Emma experimentam as dificuldades corriqueiras do laço conjugal entre um homem e uma mulher, que vão do cômico ao trágico. Quando a pulsional Adèle, que devora tudo “mesmo quando não tem fome”, mostra que o sexo para ela é algo tão natural quanto sair na balada, Emma, que busca constituir uma família, não acha isso nem um pouco engraçado.


Apesar do título, a fotografia explora as cores quentes e a textura da pele dos corpos filmados em close. Apesar de não sentirmos a lentidão do ritmo, algumas cenas são muito mais longas do que o padrão cinematográfico atual. Isso se nota, sobretudo, nas cenas de sexo, mas não somente: quando Adèle conversa, dança ou grita slogans numa passeata estudantil a cena se estende por vários minutos. Poderíamos pensar, a princípio, que esse procedimento tem uma intenção erótica: exibir o corpo da personagem que, como uma ninfeta nabokoviana, parece não se dar conta da sua sensualidade, perambulando no mundo com os lábios sempre entreabertos.


Porém, creio que há mais do que uma intenção erótica nessas cenas alongadas além do habitual. Nessa tentativa de igualar o tempo narrativo e o tempo narrado, o diretor parece deixar transparecer uma posição: a ideia de mostrar as coisas “como elas são”. Creio que essa pretensão naturalista pode ser confirmada na forma como a própria história é narrada, evitando fazer um julgamento. Ora, ocorre que as coisas nunca podem ser mostradas “como elas são”, num filme ou em outra obra de arte. Acerca desse tema já se gastou muita tinta e papel (ou tela de computador). Talvez por isso, ao final do filme, ficamos com uma sensação de estranheza, como se tivéssemos acabado de assistir um documentário, e não uma obra de ficção.

Marcus do Rio Teixeira – Psicanalista, diretor da editora Ágalma. Autor de O espectador ingênuo – Psicanálise, cinema, literatura e música (2012) e Vestígios do gozo (2014), entre outros


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quarta-feira, 28 de setembro de 2016

JULIETA, de Almodóvar - Silêncio!

de Olivan Liger

Um tecido vermelho pulsante, volátil que enche a tela, suave em seu movimento, que sugere a intimidade do feminino desejante, a sensualidade e as entranhas da dor marcada pelo sangue, pela paixão e pelos afetos. Assim começa o filme.
Julieta é uma história de dor crônica, a dor que se põe como entrave à existência, dor de uma ausência sempre presente...  uma história sustentada pela ausência de trilha sonora que induz o telespectador a entrar em contato com o vazio de Julieta, com a presença constante da ausência de Antía (Blanca Parés), sua filha. Um silêncio incapaz de passar despercebido, que vai mostrando ao longo do filme, uma sucessão de objetos e elementos que se fazem captar num segundo plano e na expressão corporal dos personagens o que já é conhecido e pensado. Cores como vermelho, azul e preto que aparecem em distintos objetos constroem um outro tipo de comunicação sem palavras.
Uma trama de personagens que interagem de forma complexa criando vínculos que além de necessários para a sobrevivência física e emocional, tem o governo soberano do desejo, ainda que este apareça sempre em falta.
Julieta (Adriana Ugarte e Emma Suárez) carrega o peso de suas perdas, culpas e luto durante todo o filme. A culpa pela falta de atenção dada à um estranho em um vagão de trem, que se suicida durante uma viagem; a perda inesperada de Xoan (Daniel Grao), o marido e a partida voluntária e não avisada da filha. Segundo Nasio: “Se a pessoa do amado não está mais aqui, então falta a excitação que escandia o ritmo do meu desejo”. Vive uma vida sem entusiasmo, cheia de lembranças da filha e esperanças do seu retorno, uma vida que se consome entre afastar-se e aproximar-se da dor, estagnando-lhe a vida e estabelecendo seu gozo.
A dor pela ausência de Antía valida e ressignifica todas as dores e perdas anteriores. 
Para Freud, “O luto leva o eu a renunciar o objeto (desaparecido), declarando o objeto morto”, entretanto a falta de Antía é permanentemente sustentada pela incerteza de sua volta, um luto que não pode avançar na sua elaboração pela esperança que se faz de um possível retorno.
A devastação de Julieta aparece de forma ritualistica ao comprar bolos de aniversário para a filha, ano após ano e atirá-los no lixo. A cada ano, a esperança do retorno e a fúria pela expectativa contrariada dão significado à cena do bolo de aniversário e refaz o ciclo de dor do personagem central. A dor de Julieta é uma condição de vida, é a forma que experimenta o mundo.
No começo do filme, Julieta escolhe o livro “O amor” de Marguerite Duras para levar na sua mudança para outro país. As mudanças e deslocamentos no espaço físico são constantes no filme como tentativas de se livrar de sua dor, a dor do amor que leva consigo simbolizada no livro de Duras.
O encontro com Bea (Michelle Jenner), amiga de infância de Antía, faz emergir aquilo que deveria estar esquecido, a partida de Antía, provocando uma decisão radical de permanecer em Madrid. Convictamente afirma, na esperança de que o vento leve suas palavras até a filha: -Aqui estoy e aqui estaré!
Após decidir permanecer em Madrid, na esperança de um reencontro, Julieta tenta estabelecer um diálogo imaginário com a filha, escrevendo-lhe uma carta na qual vai desvelando toda a sua história e consequentemente, a de Antía, tentando dar continuidade ao seu trabalho de luto que nunca se concluiu.
Curiosamente, o título inicial para esse filme era “Silêncio”. Nada mais justo para uma trama onde os personagens são encarcerados pelo silêncio, a ele são submetidos, nada perguntam e pouco dizem. O silêncio que se faz na escrita da carta para a filha contando-lhe sua vida, o que só pode ser dito fazendo letra.
“Cada silêncio é um indicador  em negativo da existência de uma palavra possível” cita Anna Aromi. O silêncio e a espera são o gozo de Julieta. Escrever para Antía é a forma de aproximação do seu gozo.  Para Julieta, falar da perda é entrar em contato com a dor, com a morte em vida, é perder algo que a constitui, assim o silêncio é a manutenção do gozo, uma vez que “A palavra mata a coisa”.
O primeiro contato com Xoan acontece na viagem de trem, numa experiência de dor, culpa e incerteza frente ao testemunho de um suicídio. A partir dai, Julieta e Xoan já estarão conectados pela concepção de Antía.
Após conhecer Xoan e ameaçada de perder seu emprego, Julieta decide buscá-lo para falar de sua gravidêz. Chega no dia da morte de Ana, a esposa em coma. Para algo nascer, é preciso que algo  morra... e é confrontada por um feminino amargo, de caráter territorial, invejoso e hiperrealista de Marian (Rossy de Palma). Um feminino que faz uma oposição ao feminino de Julieta. Uma das características dos filmes de Almodóvar é justamente fazer emergir os aspectos mais profundos da alma feminina.
Após o nascimento de Antía, Julieta se aproxima dos pais e se depara com a enfermidade de Sara (Susi Sánchez), sua mãe, enclausurada no quarto acometida de Alzheimer, tráz no olhar a tristeza, o desamor, o esquecimento e a melancolia. O pai, envolvido com uma serviçal vive sua vida independente e afastado emocionalmente da esposa. Julieta passa a funcionar como um ego auxiliar para a mãe durante os dias que permanece com os pais. A mãe vive antecipadamente o que Julieta viverá no futuro, a dor do abandono traduzida no sintoma do esquecimento do Alzheimer. O silêncio devastador e a depressão será o sintoma de Julieta para sua dor.
Uma tempestade estar por vir... é anunciada e conhecida...se faz à mostra pela ravia de Marian ao ser despedida e questionada por Julieta e se concretiza na morte de Xoan, de forma inesperada, em alto mar. Julieta e Antía são inundadas pela tristeza e pela culpa.
Um relógio quebrado junto ao corpo de Xoan nos sugere a suspensão da tempo cronológico. A partir da sua morte, o tempo pára... vai e volta numa tentativa de dar conta de uma dor sem fim, instalando o gozo do silêncio e da expectativa, mesclando passado e presente num só registro que parece excluir o futuro, a cessação da dor e do conflito psíquico.
- Por qué Papá salió a pescar si había estallado la tormenta? - indaga Antía ao tomar conhecimento da morte do pai. De que tormenta fala Antía? Do que queria o pai livrar-se buscando a morte no mar?
E assim, quando completa dezoito anos, diante da partida da amiga Bea, Antía perde o sentido da vida. Ao lado da mãe, está em contato direto com a dor que assola a ambas e a morte que não conseguem superar. Parte para um retiro espiritual em busca do sentido perdido e não mais retorna.
Entre idas e vindas, a história de Julieta vai se construindo e tem como eixo central as perdas, especialmente a perda da Antía que a mantém num estado de suspensão, do qual não pode voltar  e nem tampouco seguir adiante, a ausência da filha preenche sua vida e a destrói por completo.
Antía não quer contato com Julieta, mas lhe impõe o conhecimento de que está presente na sua ausência através dos envelopes vazios que manda para a mãe, como se quisesse apenas pontuar que ainda existe, que ainda está viva.
E Ava? Um personagem secundário, mas não menos importante. Funciona como um receptáculo de afetos, os quais canaliza em suas esculturas. Tem em Xoan, com quem mantém encontros esporádicos, a inspiração para sua arte, esculturas vermelhas por fora e de sólido metal por dentro.  É à Ava que Julieta conta em primeira mão sobre sua gravidêz. Sempre presente em momentos importantes, acompanha Julieta para derramar as cinzas de Xoan sobre o mar. É também quem preenche as lacunas de informações para Julieta sobre a profunda mágoa de Antía acerca do conflito do casal que precedeu a morte do pai. Ava é um catalizador, um elo de ligação entre Xoan, Julieta e Antía. Mais uma faceta feminina que Almodóvar tráz em cena, um feminino dócil, aparentemente frágil, porém forte como o metal interno de suas esculturas.
Mas o que separa pode também unir. Diante da perda do filho mais velho, Antía recorre à Julieta que vai ao seu encontro. A morte do pai e marido as separou e ficou a cargo da morte de um filho e neto uní-las.
Poderíamos pensar num final feliz, mas a vida não é felicidade... uma mescla de momentos de prazer, os quais chamamos felicidade, contrastado com momentos de angústia... assim vivemos, assim ratificamos nosso gozo. O gozo de Julieta é ratificado quando diz à Lorenzo (Dario Grandinetti), a caminho do encontro com a filha: -”No voy a preguntarle nada”. - segue o ciclo do silêncio, daquilo que não tem nome, que não pode ser compreendido e nem representado, do Real da vida que opera fora da nossa consciência e desejo e que pode levar-nos a construir ou destruir nossas vidas.

Assim, eu assisti “Julieta”, saí da sala de exibição em silêncio e com muitas perguntas sem respostas, embalado pela voz de Isabel Vargas na canção “Si no te vas”, que permeia a última cena.
Referências bibliográficas:
 - Aromi, A. Palabra y silêncio em Psicoanálisis. 1ª CONVERSACION DE LA ELP. NOVIEMBRE 2000. BARCELONA. "ENTRE PALABRA Y SILENCIO"
 - Freud, S. Luto e melancolia, in Edições Standarts das obras completas de Sigmund Freud, vol. 12. São Paulo: Cia. Das Letras, 2010
 - Nasio, J.-D.  A dor de amar. Rio de Janeiro: Zahar, 2005

Olivan Liger é psicanalista, presidente do ILPC - Instituto Latino americano de Psicanálise Contemporânea, analista e supervisor institucional. Autor da obra: "Um olhar psicanalítico sobre a contemporaneidade e suas emergências" - Ed. Livre Expressão, RJ. 

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