terça-feira, 21 de maio de 2013

Léolo: Cata-dor de versos - a clínica nossa de cada dia

de Karin de Paula

No contexto dos anos 60 se definiu política e culturalmente o redimensionamento das muitas identidades. Visível em movimentos sociopolíticoculturais de contestação, a ruptura com os cânones hegemônicos ocidentais se marcou especialmente pelo episódio estudantil de maio de 1968 na França, as manifestações da contracultura em Woodstock nos Estados Unidos, as ditaduras na América do sul e a Revolução Tranquila de Quebec/ Canadá.
Ao testemunhar divisões e contradições internas que identificam particularmente o ethos quebequense, a Revolução Tranquila abalou instituições e expressou mudanças em estruturas éticas, culturais e ideológicas. Na seara em que ela se fez, a identificação etnocultural do cidadão quebequense como canadense-francês se destacou como uma das mais importantes questões do debate político em Quebec. O ato de reivindicação da cidadania quebequense tinha o estatuto de proposta ideológica e referendava a assunção de novas práticas de engendramento desenvolvidas principalmente ao longo do período em que se rompiam representações culturais neocolonialistas da ex-metrópole francesa, do Canadá anglófono e dos Estados Unidos, a nova metrópole pós-colonial.
A Revolução Tranquila se constituiu como o mito fundador de uma nova sociedade quebequense.
A crítica à cultura dominante e a leitura das formações discursivas culturais e sociais dos anos 1960 e 1970 em Quebec têm uma de suas expressões mais autênticas no escritor Réjean Ducharme. Definindo sua vontade política no sentido de uma ruptura com os modelos de organização política e cultural impostos pelos paradigmas neoliberais, Ducharme, em seus romances, critica e rejeita todas as formas de dominação, controle social, violência, alienação, servidão, escravidão e manipulações ideológicas que subsistem na sociedade contemporânea ocidental como produto do capitalismo mercantilista global.
Em um de seus romances, Le nez qui voque, elaborado durante as profundas rupturas com as formas estruturais de poder, Ducharme, ao articular identidade e extraterritorialidade na leitura da prática crescente de uma hibridização intercultural definida pelo nomadismo de imaginários diversos e complexos em trânsito em uma escrita também migrante, dá visibilidade a especificidades culturais de Quebec.
Considera-se a recuperação dos danos da fragmentação cultural e a revitalização do modelo original como um produto híbrido, resultante de uma pluralidade de representações simultâneas que reivindicam o direito a um novo estatuto de verdade.
Autor de inúmeros romances, peças de teatro, roteiros de filmes e composições musicais, Ducharme é também artista plástico, cujas montagens apresentam a mesma prática do assemblage que identifica seus romances. Suas peças, assinadas sob o pseudônimo de Roch Plante (Semeador de Pedras), são elaboradas com material sucateado e reciclado em composições complexas, e inscrevem no estatuto diferenciado do objeto artístico a ressignificação de conceitos e construções culturais esvaziados e imobilizados em paradigmas ideológicos hegemônicos. Pode-se ler ainda, em uma intertextualidade semiótica, esse jogo de traduções que referenciam a pluralidade da identidade artística de Ducharme na figura cinematográfica do dompteur de vers em Léolo, de Jean Claude Lauzon.
Em Léolo, o romance L’Avalée des avalés (Os devorados pelos devoradores) aparece como elemento Reunião e reciclagem de diferentes peças de sucata que resultam na montagem de novos objetos com múltiplas significações. Denotativamente, Dompter de Vers é pessoa que se apropria de resíduos ou construtos culturais, conceitos, textos, composições, objetos artísticos preexistentes e subverte seu sentido, ao reciclar o material apropriado.
Doma-dor de versos; o que recicla, repara, recupera versos e sucata; bricoleur de versos e de sucata. A polissemia da palavra vers (poesia, versos, vermes, insetos, verdades, versões...) dá ao sintagma um sentido ambíguo explorado pelo autor no jogo da narrativa.
No filme, em cujo roteiro o diretor Jean-Claude Lauzon reduplica a reciclagem metafórica das narrativas de Ducharme, Léolo se aplica no exercício de uma escrita jamais concluída de versos que ele joga no lixo. Lauzon introduz na trama da narrativa cinematográfica a figura do dompteur de vers, que reproduz as práticas de Roch Plante em sua errância noturna pelas ruelas dos subúrbios de Montreal. O dompteur, dissimulado na figura de um catador de papéis, recolhe também os versos de Léolo, que, descobertos no anonimato do lixo, são submetidos à reciclagem do bricoleur, que os recompõe e re-identifica na narrativa afinal construída. Ao ficcionalizar a realidade cotidiana, Roch Plante atua ainda como bricoleur na reciclagem de material trash que perdeu sua funcionalidade junto à sociedade consumista submissa às ideologias do ter e à acumulação mercantilista.
A prática de recolher, nas calçadas, sarjetas e latas de lixo, cacos, pedaços e restos de objetos danificados ou simplesmente rejeitados, como braços de bonecas, super-heróis de brinquedo e guimbas de cigarro, levou-o algumas vezes a ser identificado
como mendigo. A ambivalência do sintagma dompteur de vers sugere a aproximação metafórica entre o personagem do filme de Lauzon e o artista plástico Roch Plante. Além da sucata, no saco do catador Roch Plante, encontram-se pedaços de papel de todo o tipo, como textos de revistas e jornais rasgados, bilhetes de teatro e cinema. Como o dompteur, ele os emenda e cola, realizando no bricolage de seus assemblages plásticos a prática narrativa do escritor Ducharme, outro duplo que ele vitaliza, negando-o. Uma das práticas de Roch Plante é a de cobrir a base de concreto de alguns de seus assemblages, como Skin, com jornais que veiculam comentários e artigos sobre sua obra, ressignificando a crítica em suas criações plásticas, ou usando da ironia no exercício paródico, ao lhe dar a função de embrulhar o lixo artístico.
NA ÚLTIMA FRASE DO FILME, LÉOLO DECLARA: “E EU REPOUSEI MINHA CABEÇA ENTRE DUAS PALAVRAS NO ‘L’AVALÉE DES AVALÉS’.
O FILME COMEÇA COM A NARRATIVA DE LÉOLO SOBRE O QUE DIZEM SER SEU NOME, SUA NACIONALIDADE, SUA FILIAÇÃO...OU SEJA, “ELE”. ... DIANTE DO QUE DECLARA: “PORQUE EU SONHO, EU NÃO O SOU”
PORQUE EU SONHO, EU NÃO O SOU” É TAMBÉM A FRASE DE ABERTURA DO LIVRO DE DUCHARME “L’AVALÉE DES AVALÉS” ONDE, POR FIM, LÉOLO REPOUSA ENTRE DUAS PALAVRAS;
CORPO E PALAVRA: CONDIÇÃO PARA A EQUAÇÃO
  • LÉOLO TEM UM SONHO/DELÍRIO SOBRE SUA ORIGEM:
UM ESPERMA, ESTRANGEIRO SEM FACE, FECUNDA SUA MÃE POR VIA DE UM TOMATE “CONTAMINADO”.
  • DIZ ELE: “DEPOIS DESTE SONHO, LÉOLO LOZONE”
  • A TENTATIVA DE INSCRIÇÃO DE UM NOME PRÓPRIO, QUE LHE RENDA UMLUGAR/CONTORNO/DELIMITAÇÃO;
  • LAUZON, LEO LOZON, LÉOLO LOZON, LÉOLO LOZONE ( Jean Claude Lauzon);
  • ONDE LÉOLO BUSCOU AS PALAVRAS PARA DAR-LHE CONTORNO, POSSIBILIDADE DE REPRESENTAÇÃO DE SUA CONDIÇÃO SEXUADA E MORTAL: O LIVRO
  • ONDE LÉOLO TENTOU VIVER: NAS PALAVRAS
  • ONDE LÉOLO CAPITULOU: JÁ SABEMOS. Entre duas palavras de “l’avalée des avalés”...
O CATADOR DE VERSOS: PERSONAGEM EMBLEMÉTICO, QUE CATAVA-DOR-DE- VERSOS E, MAIS EMBLEMÁTICO AINDA SE PENSARMOS EM DUCHARME, AUTOR DO LIVRO E, PORTANTO, DA FRASE “PORQUE EU SONHO, EU NÃO O SOU;
A FIGURA DO DOMPTEUR DES VERS: COMO DITO, SÍMILE DO PSEUDÔNIMO DE DUCHARME, ROCH PLANTE, ARTISTA DA BRICOLAGEM, DO “ASSEMBLAGE”.
ROCH PLANTE (SEMEADOR DE PEDRAS?) É AQUELE QUE PROCURA INSCREVER UM ETHOS OUTSIDER ; BRICOLEUR, COLHE MATERIAIS DESCARTADOS NAS CIDADES PARA REALIZAR SUA OBRA DE ASSEMBLAGE, DE CATA-DOR;
O termo assemblage é incorporado às artes em 1953, para fazer referência a trabalhos que "vão além das colagens". O princípio que orienta a feitura de assemblages é a "estética da acumulação": todo e qualquer tipo de material pode ser incorporado à obra de arte. O trabalho artístico visa romper definitivamente  as fronteiras entre arte e vida cotidiana; ruptura já ensaiada pelo dadaísmo. Menos que síntese, trata-se de justaposição de elementos, em que é possível identificar cada peça no interior do conjunto mais amplo. Nas artes visuais, a prática de articulação de materiais diversos numa só obra leva a esse procedimento técnico específico, que se incorpora à arte do século XX com o cubismo de Pablo Picasso (1881 - 1973). Ao abrigar no espaço do quadro elementos retirados da realidade - pedaços de jornal, papéis de todo tipo, tecidos, madeiras, objetos etc. -, a colagem liberta o artista de certas limitações da superfície.
  • DA MESMA FORMA, O CATA-DOR DE VERSOS/VERMES DO FILME DE LAUZON, PASSA RECOLHENDO A DOR DE TODOS QUE TENTAM DESCARTÁ-LA...
  • LÉOLO DESCARTAVA SUA ESCRITA. NUNCA TINHA VISTO ALGUÉM LER OU ESCREVER EM SUA CASA;
  • O LIVRO DE DUCHARME É O ÚNICO LIVRO QUE LHE CHEGA VIA O DOMPTER;
  • O TEXTO DE DUCHARME SE MISTURA AO DA NARRATIVA DE DIÁRIO DE LÉOLO/LAUZON NO MELHOR ESTILO DE ASSEMBLAGE;
  • O livro de DUCHARME, artista plástico e escritor conterrâneo de Jean Claude Lauzon, levado pelo DOMA-DOR DE VERSOS à casa de Léolo, imiscuido lá como calço de mesa da cozinha DA MÃE de Léolo, era lido e relido por Léolo, com muita insistência,.
  • No filme onde podemos reconhecer o texto de DUCHARME e várias passagens que me parecem bem significativas:
  • O primeiro já mencionado, e quase elemento central na construção do ritmo do filme, é a frase:
Porque eu sonho, eu não o sou/estou”.
Já disse, esta frase se encontra na ABERTURA do livro de Ducharme.
  • Num outro trecho no filme,vou sublinhar aquele colocado como declaração de Léolo sobre sua relação com os livros. Diz ele: “Não tento lembrar as coisas que ocorrem nos livros.O único que peço a um livro é que me inspire energia e valor. Que me diga que há mais vida da que posso abarcar. Que me recorde a urgência de agir”.
  • Léolo declara ter decidido “tomar o caminho mais curto”, “ que voltar dos sonhos ao cotidiano era brutal” para ele;
  • Léolo tentava fazer valer a dica do CATA-DOR/CATA-DOR DE VERSOS de que havia um segredo nas palavras colocadas juntas... mas colocou seu próprio corpo neste espaço, “ repousou a cabeça entre duas palavras do L´avalée des avalés...;
Ainda sob a pena de Ducharme no filme de Lauzon, há um parágrafo grifado no exemplar do livro em poder de Léolo, que é mostrado em close. Este é indicado por Léolo/Lauzon como o caminho do início de sua leitura, por onde ele começará a ler este livro. É a partir da narrativa deste trecho de Ducharme que, declarando sua decisão de ler repetidamente o que fôra sublinhado por outro, mesmo não entendendo o que quer dizer, que Léolo começa a escrever sobre sua vida/história, tornando-se ele próprio escritor.
  • A RELAÇÃO DE LÉOLO COM O LIVRO SE DEU, SEGUNDO ELE PRÓPRIO, APESAR DE NÃO HAVER FIGURAS, APENAS LETRAS APÓS LETRAS... MAS HAVIA UM OUTRO OBJETO COLOCADO EM CENA DE ASSEMBLAGE, RETIRADO DO LIXO,UM OUTRO TIPO DE REGISTRO DE SONS, QUEBRADO E GUARDADO, EMBORA NÃO PUDESSE SER ESCUTADO, E JUSTAMENTE PELA IMAGEM QUE EXIBIA: O DISCO/LP DE JACQUES BRIEL;
  • MOMENTOS ANTES DE LÉOLO CAPITULAR/SE RENDER AO “ PORQUE EU NÃO SONHO, EU SOU” , A “DESCANSAR SUA CABEÇA ENTRE DUAS PALAVRAS DE ‘ l´AVALÉE DES AVALÉS’ ” , JUNTAR-SE À LINHAGEM DA LOUCURA FAMILIAR, SEGUNDO ELE FUNDADA POR SEU AVÔ, CAI DO LIVRO O PEDAÇO DE VINIL QUE COMPLETARIA A CIRCUNFERÊNCIA DO LP DE BRIEL. LÉOLO O COLA, COMPLETA-O.
A palavra Canadá teria nascido dos espanhóis aca e nada que significam: nada aqui [...].
A busca do significado etimológico de Canadá – ACA NADA-,leva Ducharme a usar um de seus recursos narrativos produtores de paródias, o humor cáustico que desconstroi as formações estratificadas e indica pistas para a reciclagem A PARTIR DOS RESTOS. Trata-se da necessidade latente de se reinventar em um outro país, o da metaficção artística, e de reinvenção do país próprio.
Para a pergunta “ o que se espera de uma análise?”
Minha resposta é: a provocação do porvir de um CATA-DOR / DOMA-DOR de VERSOS ( ou diversos) , SEMEADOR DE PEDRAS advertido e decidido...
Karin de Paula é Psicanalista, Mestre e Doutora pela PUC-SP,  Pós-doutoranda na Sorbonne Paris Diderot (Paris 7), professora na universidade e em curso de formação de psicanalistas. Membro fundadora do umLugar – Psicanálise e Transmissão. Autora dos livros “$em – sobre a inclusão e o manejo do dinheiro numa psicanálise”, Ed. Casa do Psicólogo  Do espírito da coisa - um cálculo de graça”, Ed. Escuta.

domingo, 12 de maio de 2013

Super-heróis em crise

de Isloany Machado
Nunca gostei muito das histórias de super-heróis, mas às vezes, para ter companhia do marido nos filmes românticos, dramáticos e cults, a gente acaba aprendendo a gostar de fazer companhia nos filmes de ação, aventura, ficção científica, etc. Os super-heróis passaram a fazer parte da minha vida dessa forma, não que eu nunca tenha ouvido falar deles, mas nunca dei muita importância. A única coisa que eu sabia sobre eles era o quão imbatíveis, invencíveis e corajosos eles são. Pelo menos eram durante nossa infância, ou melhor, eram até outro dia. Me lembro que há alguns anos assistimos um do super-homem cujo cabelo sequer despenteava enquanto ele voava no infinito. Mesmo com todos os conflitos de um Clark Kent, os super-heróis bancavam as próprias armaduras. Havia um momento em que o medo do humano era absolutamente substituído pela couraça da roupa heróica.

Mas eis que agora os super-heróis estão demasiadamente humanos. Me explico. O batman tem problemas no joelho e perdeu toda a sua riqueza; o lanterna verde quase é dominado pelo medo e falta pouco pra desistir de enfrentar seu inimigo; o que mais ameaça o super-homem passa longe de ser a criptonita, são as perguntas existenciais: “quem sou eu?”, “de onde eu vim?”, “que querem de mim?”. O homem de ferro, o terceiro, tem “crises de ansiedade” paralisantes, quase pânico e, ao descobrir o diagnóstico, pergunta: “Crise de ansiedade, EU?”. Será que os super-heróis estão demasiado humanos ou será que fomos nós que crescemos? Será que a lógica do inconsciente chegou ao mundo dos super-heróis? De certa forma, eles sempre foram sujeitos divididos, com pé na humanidade e outro no heroísmo. O pé na humanidade os fazia se apaixonarem, terem um aspecto de insegurança, que era suplantado pela armadura. O pé no heroísmo os fazia voar, seja porque tinham super-poderes ou dinheiro para construir seus próprios recursos para tal. O lado humano tinha lá suas inseguranças, mas o herói não. O herói levava a mocinha pra voar.

Poderíamos pensar que o herói era o “ego forte”, mas parece que a lógica freudiana de um ego que não é senhor em sua própria morada invadiu o mundo dos super-heróis. Ou será que fomos nós que crescemos demais? Talvez os homens de ferro já não tenham medo de mostrar suas fraquezas, de dizer que estão fora do controle. Que o timoneiro da embarcação é outro, mas não outro fora e sim outro de si. O medo está ficando cada vez mais líquido, e está difícil de aprender a nadar porque o líquido é espesso, tal como aquele que gruda no homem aranha em um dos filmes. Por falar em homem aranha, o último que assisti mostrou um adolescente rebelde, bem diferente dos outros com aquela timidez escondida sob os óculos. Demasiado humano. Super-heróis são homens de ferro, pero no mucho. “Somos feitos de carne, mas às vezes temos que viver como se fôssemos de ferro” (Sigmund Freud). Os super-heróis estão em crise. Nossos super-heróis estão ficando cada vez mais parecidos conosco. Ou será que fomos nós que crescemos?
Isloany Machado é Psicóloga, Psicanalista, membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano – MS. Especialista em Direitos Humanos pela UFGD e em Avessos Humanos pelo Ágora Instituto Lacaniano. Mestranda em Psicologia pela UFMS. Despensadora da ciência e costuradora de palavras por opção, é autora do livro “Costurando Palavras” (ed. Life, 2012) e fundadora do blog  www.costurandopalavras.com.br

quarta-feira, 1 de maio de 2013

ESSE OBSCURO OBJETO DO DESEJO

por Leila Oliveira

Certamente, um belo filme de Buñuel,  que revela toda a sua relação com o movimento surrealista. O movimento formado por artistas que propunham uma maneira diferente de ver o mundo, uma vanguarda artística que transcende a arte. Uma ampliação da consciência, uma liberdade de expressão, sem exigência da lógica e da razão, assim, como o mundo dos sonhos.
No sonho, sabemos, é a satisfação de desejo embora o desejo só se realiza e não poucas vezes, ás custas do próprio eu. Ele irrompe, chega sem avisar, nos surpreende e entra sem ser convidado. As formações do inconsciente, como os atos falhos, sonhos, lapsos, sintomas, são paradigmas freudianos que nos ensinam sobre o caráter essencial do desejo. Mas que desejo é esse, de Mathieu e Conchita?
Buñuel constrói e desconstrói, na ficção, um dos mecanismos mais caros da teoria de Freud. Vamos então, á nossa viagem de trem para Sevilha construindo as cenas.
No trem, um comportamento inesperado do protagonista, chama a atenção de seus amigos de viagem, e ele procura explica-lo, narrando os motivos que o levaram a tal ato, aparentemente, sem a menor censura.
Mathieu, um homem de meia idade, burguês e solitário, se apaixona desesperadamente por Conchita, uma jovem de 18 anos, meiga, doce, insolente e virgem.
E então se faz aparecer um jogo erótico, de pura sedução, onde pode se perguntar: o que quer a mulher? Qual o desejo de Conchita? E Mathieu, o que espera da mulher? Ele espera que ela lhe dê o que lhe pede, o objeto sexual.
Ele fica siderado por essa mulher, de um certo desejo, desejo do ato sexual.
Mas, Conchita oferece a Mathieu, apenas partes de seu corpo para que ele goze .”Assim, como a histérica, quer deixar insatisfeito o gozo do outro, quer um “mais-ser”, ser alguma coisa para o outro, não um objeto de gozo, mas um objeto precioso que vá sustentar o desejo e o amor. (Colette Soler)
Se eu lhe der o que me pede, não vai me querer mais”. Ela quer o amor.
Freud em Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, diz que: “O que se coloca em lugar do objeto sexual é alguma parte do corpo (tal como o pé, ou os cabelos) que é, em geral, muito inapropriada para finalidades sexuais”. E, Conchita oferece a Mathieu, apenas partes de seu corpo para que ele goze.
Como explicar a atração entre os sexos se existe apenas as pulsões parciais?
Bem, sabemos que as pulsões parciais em si, ignoram a diferença sexual. A orientação do desejo sexuado, é que é passível de ser explicado.
Colette Soler, em seu livro, “O que Lacan dizia das mulheres” pergunta: Como explicar a relação sexual? O que é uma norma heterossexual? Se o macho não basta para constituir o homem, nem a fêmea, a mulher?
Podemos tentar responder então, a partir do Édipo e da descoberta do inconsciente.
Freud descobriu que, no inconsciente, a diferença anatômica é transformada em significante : ter o falo. E a partir do Édipo, responde a esta pergunta: como pode um homem amar sexualmente uma mulher? Através da renuncia ao objeto primordial, a mãe, e ao gozo referido a ela e através da castração do gozo. Já do lado feminino Freud reconheceu o fracasso de suas tentativas de explicar e daí surgiu o seu famoso: ”que quer a mulher? E conclui que o édipo produz o homem, não produz a mulher”.
Conchita nos demonstra em vários momentos, essa posição de ter e não ter o falo. Ela oscila entre a “Mulher Pobre” que é “aquela que é desprovida de todos os objetos da serie fálica”, mas rica de outros bens, (boa filha, meiga, virgem) que como diz Lacan: nada pede á fantasia do homem. Ela não está preocupada em satisfazer as fantasias, o desejo de Mathieu. Conchita pobre de amor, mas rica de outra coisa que é o gozo. E entre a “mulher abstinente”, que é aquela mulher que renuncia a sexualidade, permanecendo “virgem”, e a relação com o gozo do outro, fica indeterminada.
Ela quer apenas gozar na sedução. Serei sua amante. - Quando? Hoje? -Não, depois de amanhã. Em outro momento, ele pede:- Beije-me, ela não permite, diz:- depois. E adia mais uma vez, a se entregar como objeto causa de um desejo.
A quem são endereçadas as perguntas de Mathieu, então? Podemos dizer que á fantasia, á imagem e ao objeto
Conchita não fez a travessia para o feminino, ela recusa a verificar-se numa posição subjetiva da castração. Ser “castrada”, é, de onde parte a feminilidade da mulher que é aquela cuja falta fálica a incita a voltar para o amor de um homem. Primeiro o pai, depois o marido..
Ao se descobrir privada do pênis, a menina torna-se mulher quando espera o falo- ou seja, o pênis simbolizado daquele que o tem” C.Soler.
Mas deixa seu rastro, embora, não quer saber de nada disso. E Mathieu sempre a encontra, obsessivamente, e ela, sempre recua frente ao seu pedido.
Bem, se olharmos o que acontece nas cenas em que Conchita faz jogo da separação/retorno, presença/ausência, podemos pensar em Freud, em Além do Principio do Prazer, onde aponta a brincadeira do fort-da.
Desenvolvida por uma criança, que fazia desaparecer e aparecer o objeto, um brinquedo, que significava o “ trazer de volta, a mãe”
A criança antecipava a satisfação de um desejo- a mãe poderia estar ausente sem fazer grandes reboliços.

Jogar fora um objeto e trazê-lo de volta, era o que Conchita fazia em sua fantasia de satisfação. O mesmo mecanismo controlador, ilustrando uma ausência a ser buscada por Mathieu. Volta para ele, pra não ter a presença negada e assim continuar o jogo de gato e rato, prazerosamente controlando a situação com promessas que faz e não cumpre.
Investe em uma sensualidade infantil, fala de seus princípios, de seus valores, tendo a mãe como sua aliada, ao mesmo tempo apresenta uma liberdade estranha, dança em cabaré nua para os homens, aceita certas caricias de Mathieu.
Com essa posição, não querendo mais ser criança, mas também não querendo ser adulta, que é uma conveniência, para manter um outro jogo, que é o “negocio amoroso”, Mathieu passa a ser mais um “tesouro” que a fascina do que um objeto de amor a ser possuído. E esse se coloca nesse lugar.
O filme, rico em detalhes e enigmas, como por exemplo: a ratoeira em uma casa de classe alta, mosca no copo, um saco que eventualmente Matthieu carrega nas costas, são detalhes que sugerem uma outra narrativa, um outro momento do filme. As cenas de explosões e de terrorismo, sugerindo um suposto envolvimento de Conchita, mas que parece passar despercebido a Mathieu, são apenas sugeridas, indiciadas sem nenhuma explicação. Ou quem sabe, o explosivo movimento do desejo?
E no final, uma mulher dentro de uma vitrine, tira de um saco, varias camisolas, talvez simbolizando as recusas de Conchita, sugere o mesmo saco que Mathieu carregava, começa a remendar uma camisola suja de sangue. O desejo do ato sexual consumado? Pega suas memórias, suas bagagens, seus desejos e constrói a historia, ou repete a história?
Belo Horizonte, 06/04/2013
link para assistir o filme completo: http://vimeo.com/35092020

Leila de Oliveira é psicanalista, membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano- BH /MG