sexta-feira, 14 de junho de 2013

Sentido e Significação do Cinema Brasileiro da Retomada

A Retomada do Cinema Brasileiro 1º capítulo da mini-série  
de Christian Ingo Lenz Dunker
No apagar das luzes do governo Collor de Mello inicia-se o desmonte da estrutura de produção cinematográfica brasileira. Em 1990 são desativados a Embrafilme (Empresa Brasileira de Filmes, 1969-1990), o Concine (Conselho Nacional de Cinema 1976-1990), a Fundação do Cinema Brasileiro (1988-1990) e em 1993 aparece a Lei do Audiovisual (Lei nº 8695/93, de 20 de julho de 1993). Em dezembro de 1992, ainda no governo de Itamar Franco, o Ministro da Cultura, Antonio Houaiss cria a Secretaria para o Desenvolvimento do Audiovisual, que libera recursos para produção de filmes através do Prêmio Resgate do Cinema Brasileiro e passa a trabalhar na elaboração do que viria ser a Lei do Audiovisual, que entraria em vigor no governo de Fernando Henrique Cardoso.
Trata-se de um momento inaugural de uma relação nova e ampliada com as linguagens visuais. Do ponto de vista da recepção os anos 1990 assistiram a emergência de uma nova geração, pela primeira vez formada no uso da internet, dos chats e dos videogames. Escrever com suporte de imagem, assistir filmes fora do circuito em tela de computador, descobrir diretores e autores, produzir seus próprios ensaios para redes de compartilhamento, publicar fotos, montar trilhas, tudo isso tornou-se parte de um novo processo de alfabetização audiovisual que disponibilizava, mesmo que de modo rudimentar, as principais ferramentas e linguagens que determinam o cinema como a arte do real. O barateamento de tais recursos e instrumentos permitiu a criação de filmes com orçamento baixíssimo, a aparição de vanguardas experimentais e de uma massa extensa de pessoas interessadas em cinema.
A partir de 1995, começa-se a falar na "retomada" do cinema brasileiro. Novos mecanismos de apoio à produção, baseados em incentivos fiscais e consoantes a uma visão neoliberal de "cultura de mercado", conseguem efetivamente aumentar o número de filmes realizados e levar o cinema brasileiro de volta à cena mundial. Considera-se que Carlota Joaquina, Princesa do Brazil de Carla Camurati (1995), parcialmente financiado pelo Prêmio Resgate, inaugura este período. No entanto, as dificuldades de penetração no seu próprio mercado continuam: a maioria dos filmes não encontra salas de exibição no
país, muitos são exibidos em condições precárias, as salas
são inadequadas para a nova qualidade alcançada pela  produção, os lançamentos ocorrem nas datas desprezadas pelas distribuidoras estrangeiras, há pouca divulgação na mídia local e a nova geração de críticos ainda não se entende quanto à significação e aos sentidos da retomada.

Em 1997, para alcançar o mercado cinematográfico, as Organizações Globo criaram sua própria produtora, a Globo Filmes, empresa especializada que veio a reposicionar o cinema brasileiro em praticamente todos os segmentos. Em curtíssimo tempo, a produtora Globo Filmes viria a monopolizar o mercado cinematográfico brasileiro, ainda que para a escala de operação da rede de televisão, seu braço cinematográfico possa vir a ser considerada uma empresa pequena. Pela primeira vez cinema e televisão ocupavam o mesmo circuito de produção. Dessa maneira, através do cinema, o conglomerado foi capaz de atingir um dos últimos segmentos tradicionais do mercado audiovisual brasileiro, nicho no qual ela ainda não apresentava nenhuma participação realmente direta até então. Entre 1998 e 2003, a Globo Filmes se envolveu de maneira direta em 24 produções cinematográficas. Sua supremacia se cristalizaria definitivamente no último ano deste período, quando os filmes com a participação da empresa obtiveram mais de 90% da receita da bilheteria do cinema brasileiro e mais de 20% do mercado total.
Em 2002, no apagar das luzes do governo Fernando Henrique Cardoso um ato mudou completamente a relação de produção discursiva do espaço público brasileiro no que toca especificamente a produção cultural publicitária. Até então as agências de publicidade deveriam atender três de cinco condições para a produção de um filme: diretor brasileiro, autor de trilha sonora brasileiro, 50% da equipe de produção brasileira, 50% das cenas rodadas no Brasil, originalmente falado em português. Ao final do mandato de FHC esta norma foi substituída pelo pagamento de uma taxa à Ancine (Associação Nacional de Cinema) e pela adoção do critério mais genérico e flexível de que as produções deveriam ser “adaptadas” à linguagem e à cultura brasileiras.
A qualidade técnica da direção e da produção deste novo cinema novo é indiscutível. Herança da excelência adquirida com as peças de publicidade. Isso inclui todo um sistema de produção expresso, por exemplo, na fotografia de Afonso Beato, na edição de Lauro Escorel, nos roteiros de Marçal Aquino, no documentário com João Sales. Nas palavras de Flávia Moraes:
Eu acho que o que aconteceu com o Meirelles, com o Walter Salles, comigo e com outros é que a história se inverteu. Todos nós começamos e aprendemos muito com a propaganda. Tivemos a oportunidade de trabalhar lá fora, experimentar novas tecnologias, e amadurecer como realizadores, produtores, diretores e técnicos por meio da propaganda, porque ela dava condições financeiras, não só pessoal, no sentido de você poder se aperfeiçoar na carreira e ganhar dinheiro, mas de ter um negócio. A propaganda permitia investir em equipamentos, ter uma produtora,formar gente. Então eu acho que esse “contágio Meirelles” é algo que veio incubado em toda essa geração. Mas houve também o caminho inverso em termos de mercado. Antes, os subsídios da Embrafilme bancavam a produção. Isso acabou e o cinema só renasceu quando descobriu o mercado.”1
Alguns filmes lançados na primeira década do novo século, com temática atual e novas estratégias de lançamento, como Cidade de Deus de Fernando Meirelles (2002), Carandiru (2003) de Hector Babenco e Tropa de Elite (2007) de José Padilha, alcançam grande público no Brasil e abrem perspectivas de carreira internacional para diretores e atores brasileiros.
Ismail Xavier e Leandro Saraiva2 afirmam que uma das marcas desse período seriam as formas variadas e o retorno à tradição de “representação do país” como o Cinema Novo. Mas para o cinema da Retomada em vez da utopia consagra-se a distopia urbana, que vê com desdém ou cinismo qualquer perspectiva de mudança baseada no dirigismo cultural ou ideológico. Em vez dos típicos personagens paratópicos que in terra brasilis se apresentam como estranhos indignados (como em Terra em Transe), pícaros irônicos (como em Macunaíma), ou errantes perdidos (como em Rio 40 graus), agora chegou a hora e a vez do herói comum, integrado à sua própria paródia involuntária, fechado em seu plano de vingança unidimensional. Se por meio de seu projeto estético e ético, os ícones do Cinema Novo apresentaram uma concepção revolucionária de linguagem e uma persistência crítica na reflexão sobre a brasilidade, o que encontramos na sua continuidade na Retomada é mais uma tematização do fracasso e do impasse.
Do ponto de vista formal mantêm-se estratégias como a proposição do corte seco, a não linearidade da narrativa, a ênfase nos aspectos prosaicos da vida cotidiana, mas a novidade aqui é que se de um lado tais estratégias se combinam com esquemas derivados da linguagem da televisão, principalmente da telenovela e dos programas realísticos sobre a violência urbana, há uma segunda frente de inovação da linguagem fílmica: a publicidade. Este ponto separa o cinema Novo, Marginal e Mítico dos anos 1960, do que se passa no cinema da Retomada, ou seja, a recusa total aos padrões impostos pelos grandes estúdios. Se ambos retratam, respectivamente o sertão e a favela sob um novo olhar, retomando o padrão das narrativas clássicas dos tempos da Vera Cruz, o segundo encontra uma nova fórmula produtora-financiadora, derivada do universo da propaganda. Se o primeiro procurava criar um destinatário engajado e formar um público “mais consciente”, o segundo despreza a opinião pública e a regulação pela bilheteria. Temos então a linguagem da televisão, mas sem o imperativo da “continuidade de audiência” e a linguagem da publicidade sem o “empuxo ao consumo”.
Há, portanto, um duplo sentido de “retomada”. Ela significa o reinício da produção cinematográfica brasileira, agora em outras bases, o que permitiram a internacionalização e um salto de qualidade na finalização, no som e na direção de dramaturgia, graças principalmente à migração de práticas, pessoas e tecnologias do universo publicitário e à criação de uma produtora de tamanho global, a Globo Filmes. Mas ela significa ainda a recuperação de um ideário formal e narrativo explorado pelo Cinema Novo, pelo Cinema Marginal e pelo Cinema Mítico, mas agora sem um mandato de esclarecimento, iluminação ou formação de uma sensibilidade política, ética ou estética.
Esta alteração se explica pela mutação da meta-diagnóstica social do mal-estar na brasilidade. A oposição entre desenvolvimento e subdesenvolvimento é substituída pela oposição entre condomínio e segregação. Em vez da tensão clássicas entre a casa e a rua, o campo e a cidade, o espaço privado e o espaço público, surge um novo universo amórfico composto por prisões, lixões, edifícios e instituições totais. Se de um lado temos os “muros” do outro surgem os filmes sobre viagens, errâncias, passeios e evasões domiciliares. Assim como o Cinema Novo se opunha e pressupunha a chanchada, o cinema da retomada substitui as estratégia paródicas e exageradas em torno da sexualidade, por uma espécie de atitude distanciada, típica da comédia ligeira, mais americanizada e puritana do que reza a tradição nacional. Sem o senso pedagógico, a atitude grandiloquente e moralismo engajado, a retomada mostra-se assim muito mais palatável para um destinatário que aprendeu a se posicionar de modo paratópico, a evitar a política, a tomar distância de sua própria aparência.
Como argumentei em outro lugar esta substituição da centralidade do conflito real com a lei, pela interiorização psicológica do drama e pela exteriorização imaginária da violência, pode ser pensada como uma espécie de homólogo nacional tardio, da substituição das neuroses clássicas pelas neuroses de caráter, descrita por Lacan em 1938 para o caso francês, retomada por Lasch, na década de 1970, para a sociedade americana e suas patologias narcísicas e ampliada por Ehrenberg (1994) para a sociedade francesa premida pela depressão, em meio à cultura da performance. O declínio (Erniedrigung) do erotismo no cinema nacional, nos anos 2000, é um índice do recuo na abordagem direta do conflito social pelas estratégias narrativas do cinema. Não se trata, necessariamente, de uma evasão da política (the political), mas de uma reconsideração e de uma distância em relação às políticas (the politics).
O cinema da Retomada enfrenta o esgotamento da retórica da denúncia e da convocação militante para a ação, como Ismail Xavier3 salientou, a propósito do cinema de Arnaldo Jabor. A teoria do desmascaramento, herdeira do problema do declínio da figura paterna precisa fazer outro tipo de anatomia da decadência, dos impasses da vida conjugal na forma-família, da asfixia institucional, aparecem agora como capítulos ultrapassados da hipótese, agora gasta, sobre nosso liberalismo mal-concluído. É preciso uma reformulação da racionalidade diagnóstica que cerca a leitura do mal-estar brasileiro, para além do pai como articulador central dos dispositivos de autoridade, para além da família como lugar de asfixia do desejo, para além da oposição simples entre ideais subjetivos e condições objetivas. É preciso reconhecer que agora sofremos de outra maneira.
O primeiro traço desta mutação é uma reconfiguração dos personagens que dão corpo social à função da imago paterna. Por exemplo, em Lavoura Arcaica de Luiz Fernando Carvalho (2001), vemos a típica anatomia moral da paternidade, dividida entre os exageros do poder endogâmico e o declínio de sua autoridade real, mas a novidade agora é que esta divisão não assume função de denúncia ou desmascaramento, mas de intimidade impossível. A sexualidade e seu mal-estar não são vividos no registro da transgressão de fidelidades ou aderência aos dispositivos de aliança, mas como uma espécie de estetização do fracasso de nomeação. Exemplos deste processo vão se destacar principalmente na chave cômica em Durval Discos de Anna Muylaert (2002) e Eu, tu eles, de Andrucha Waddington (2000).
Ou seja, os cínicos da nova geração não estão interessados na crise da família, mas no lado “cafona”, vulgar e sem gosto do regime militar. Não demandam a recuperação dos espaços íntimos, a roda de fofoca cotidiana, mas as confissões pessoais e a “câmera bisbilhoteira”. Surge assim a tensão entre as pretensões de verdade das estruturas de ficção fílmicas e o real impossível de se inscrever, mais além da realidade que se apresenta diretamente sob nossos olhos. Os limites do documentário são abordados de forma quase metodológica em Edifício Master (2002), de Eduardo Coutinho e mais tarde por Santiago (2007) de João Moreira Sales.
O cinema da retomada não pratica denúncias pautadas, mas experiências de impasse, suspensão de orientações pragmáticas ou estetização da existência, como se pode ver de modo condensado no título e no filme Á Deriva (2009) de Heitor Dahlia e que encontra seu precedente em Cronicamente Inviável de Sérgio Bianchi (2000). Não se imagine que a ironia ou que a estetização são formas de neutralização da função crítica, mas sim, que estamos diante de um programa no qual a tematização do conflito deve ser desgarrada da indução de sua solução. Que a impossibilidade de colocar os termos do conflito talvez sejam tão importantes quanto as modalidades de seu diagnóstico. Reconhecer que a dimensão do reconhecimento depende de algo mais que boa vontade e voluntarismo torna-se assim um problema formal para a linguagem fílmica.
O quarto, e talvez mais importante traço narrativo do cinema da retomada é a a centralidade assumida pelo conflito e pela ação em detrimento da construção de personagens. Em lugar da verticalização dos personagens e da interiorização do conflito o que encontramos é uma orientação para a variação dos pontos de vista, até mesmo uma gramática regrada do desencontro entre enunciado e enunciação:
O cinema – o cinema narrativo, é claro – esforça-se, portanto, para esboçar uma síntese do sujeito narrador (aquele que “conta”) com o sujeito enunciador da imagem (aquele que vê, e por extensão, ouve, síntese intuitiva, claro, nem sempre bem resolvida, como ocorre nestes momentos em que o comentário-over (interno-passado) coexiste com a paisagem doada pelo olho da câmera (externa, presente).4
Ora os filmes da retomada se caracterizam justamente por uma espécie de administração calculada desta “síntese intuitiva, nem sempre bem acabada”. A crítica do sujeito não apela, pois para sua divisão, mas para sua dispersão.
Retomada, portanto, adquire aqui um terceiro sentido, quando examinamos as transformações especificamente verificadas no plano narrativo e do roteiro, ou seja, retomada adquire o sentido de ajuste de contas e de restituição do que foi “tomado”, no interior de um processo histórico. Daí a centralidade das narrativas de justiça, de vingança, de ajuste de contas no interior das narrativas deste período, para o qual “Ação entre Amigos” de Beto Brandt (1998) é sem dúvida a referência central.
O filme que melhor condensa esta mistura de exigências estéticas, políticas e produtivas é sem dúvida, O que é isso Companheiro? (1997) de Bruno Barreto. Inspirado no livro autobiográfico e homônimo de Fernando Gabeira, o filme aborda o sequestro do embaixador americano no Brasil e sua troca por aprisionados políticos, isso permite uma retomada direta e testemunhal dos fatos ocorridos no ano de 1969. Gabeira participou do grupo origina de sequestradores, o que confere ao filme alto grau de tensão entre ficção e documentário, o que é outra marca crucial para o cinema da retomada. O centro do filme é o grande diálogo entre o embaixador e seus captores, uma cena na qual as relações de poder, invertidas pelo sequestro, são gradualmente reconstruídas pelo reconhecimento mútuo entre os envolvidos. É um filme sobre a cura do ressentimento, mas também sobre sua gênese social. Tudo se passa como se a experiência de reconhecimento fosse possível apenas com um quarto elemento, mais além dos políticos e sua lógica de aparências, da polícia e sua moral vingativa e da convicção que rege os sequestradores. As relações de obediência incondicional, de violência conspícua, de disciplina autoritária, de hierarquia irreflexiva, são revividas no interior do grupo de sequestradores. Mas a inversão não é simétrica, o que torna a desproporção entre as formas de violência, marcada pela deflação de sentido. É a gênese do que virá a ser, mais tarde, apresentado como o sintoma social da violência “irracional, arbitrária e imotivada”.
O elenco de “O que é isso companheiro?” combina jovens atores emergentes da comédia televisiva, que abriu o tom da pós-ditadura, como Pedro Cardoso, Fernanda Torres e Luiz Fernando Guimarães, com ícones das grandes produções dos anos de chumbo: Fernanda Montenegro e Othon Bastos, acrescentando Alan Arkin como signo de nossa nascente internacionalização. Indicado ao Oscar o filme vem com a trilha sonora assinada por Stewart Copeland, nada menos que o baterista do grupo de rock progressivo, The Police. É paradigmático que o filme se passe, quase integralmente, em uma casa fechada. Neste condomínio asfixiante a liberdade é discutida em alta densidade existencial, seguindo a tradição sartreana que vai de Entre Quatro Paredes a Chinesa, de Godard, passando pelo nosso representante local, Arnaldo Jabor.
O tema segue o quiasma representado pelo sequestro, alusivo tanto ao sequestro real, movido pelo desejo libertário que não deixa descendência, quanto o sequestro alegórico de um período cuja história ainda está por ser feita. “Reféns em sua própria morada” eis o sintagma que a classe média reterá para exprimir sua vindoura nova forma de sofrimento. A interpretação do que significa “ascensão social” que perpassa a releitura do que significava, até os anos 1970, “progresso”, a inversão da temática da violência na tentação da vingança, a procura de um nome que justifique o mal-estar simultaneamente como uma experiência de sofrimento pela perda da alma (o declínio da militância revolucionária), da ruptura de um pacto (pelo Estado que não presta contas de seus atos), da intrusão de um objeto intrusivo (o estrangeiro interno ou externo) e a perda do sentimento de unidade (errância e anomia), são os veios narrativos que se entroncam ao longo deste filme, como uma espécie de sinédoque dos problemas do cinema da retomada. Os sentidos da retomada articulam, portanto, narrativas que farão séries históricas nos anos subsequentes. Outra coisa é reconhecer como estas articulações de sentido engendram a centralidade de um novo sintoma brasileiro, a saber, “a violência” como nome que confere significação a unidade estrutural formada por estas variações de sentido. Pois era justamente a violência que não podia ser propriamente reconhecida no hiato militar, que retorna, como retomada de conflitos que nunca puderam ser postos. Não dizemos com isso que a violência começou neste momento, muito menos que suas causas aqui se concentram, mas apenas que ela se tornou o sintoma social visível em torno do qual as narrativas de sofrimento podem se articular. Como todo sintoma ele contém um fragmento de verdade e de liberdade suprimida ao desejo e ao sujeito. Como todo sintoma “a violência” deve ser entendida como um nó de “não-sentido” em torno de uma significação (Bedeutung). Como todo sintoma “a-violência” é um falso universal erigido em prática discursiva de extração de mais-de-gozar.
Para alguns, mais difícil do que caracterizar o que vem a ser o cinema da retomada é saber quando ela termina. E seu fim, em aberto, é também o fim em aberto deste capítulo apagado de nossa história. 
1-http://www.revistapropaganda.com.br/materia.aspx?m=164 2- Xavier, I. (2006) O Olhar e a Cena. São Paulo, Cosac & Naify. 3-Xavier, I. (2006) Cinema Brasileiro Moderno. São Paulo: Paz e Terra. 4- Machado, A. (2007) O Sujeito na Tela. São Paulo, Paulus. 

Carlota Joaquina - Princesa do Brasil : filme completo


Christian Dunker é Psicanalista, Professor Livre Docente do Depto de Psicologia Clínica-IPUSP, Analista Membro de Escola da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano, Membro da Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental, Doutorado (IPUSP) e Pós-Doutorado pela Manchester Metropolitan University (UK). Autor de vários livros, entre eles o vencedor do Prêmio Jabuti 2012: “Estrutura e constituição da clínica psicanalítica: uma arqueologia das práticas de cura, psicoterapia e tratamento” (ed. Annablume, 2011)

domingo, 9 de junho de 2013

Anti Cristo de Lars Von Trier

por Francina Sousa

Em tempos de capitalismo apressado, escrever sobre um filme “antigo” como Anti Cristo de Lars Von Trier pode parecer antiquado. Ressalva sem sentido para o inconsciente, já que ali o tempo não caminha ano após ano, dia após dia, hora após hora... Confesso que demorei certo tempo para ter coragem de ver o filme. O pano de fundo, um casal que perde seu filho pequeno, e que se isola em uma cabana no meio da mata, parecia assustador e familiar demais pro meu gosto. Só que esqueceram de me avisar que a cena em que o garotinho parece saltar alegremente para a morte era o que havia de menos perturbador no filme.
Entendo que buscar um sentido pleno ao filme seria incorrer no mesmo erro do terapeuta que, ao lado da mulher, protagoniza o filme. Faço apenas algumas observações. Frente ao real da perda de um filho, o "arrogante" terapeuta considera-se apto a tratar o luto prolongado de sua mulher, e para isso recorre a uma "técnica" cognitivo-comportamental: confrontá-la com aquilo que lhe causa medo, no caso, uma cabana horrorosa no meio da mata, Éden. Mas não é de Éden, como ele a forçou a concluir, que ela tem medo, e sim da selvageria e obscenidade abafados nos porões do eu. Não à toa ela lhe adverte: “Você é tão arrogante. Mas isso pode não durar, sabia?”
Ao quebrar uma lei (a mulher o lembra de que não é prudente tratar alguém tão próxima, porém ele argumenta que ninguém a conhece mais do que ele, numa patética onipotência narcísica da qual a queda será inevitável), ele abre caminho para que a Lei simbólica seja ultrapassada. E paga caro por isso: a mulher literalmente atravessa a arrogância do marido e, em uma das cenas mais fortes, imprime no real a falta que ele luta tanto para escamotear. Em Éden, o caos reina.

O filme faz pensar naquilo que está além do princípio de prazer, o gozo em seu limite, no limite da aniquilação... Nos lembra de que aquilo que foi recalcado permanece indestrutível no inconsciente ou, nas palavras do poeta: E o que desapareceu,/ converte-se para mim em/ realidade (Goethe).
Trier coloca em cena o erotismo e a agressividade da qual o humano não cessa de abrir mão em nome da segurança, da sobrevivência, da civilização. Mas aquilo que é banido não se conforma: insiste em retornar e algumas vezes de forma nefasta, o dia-a-dia nos prova isso.
Já foi dito que nunca houve um monumento da cultura que também não fosse um monumento da barbárie, foi cantado que o homem criava e também destruia...
Quando se trata do humano, o buraco, esse vazio ao qual tentamos insistentemente preencher de sentido, é mais embaixo. E é passível de explodir em non sense. Dostoiévski já nos alertara, com seu homem do subsolo, de que dois e dois nem sempre são quatro, e Éden parece trazer à tona o “Real em sua violência extrema como o preço a ser pago pela retirada das camadas enganadoras da realidade” (Zizek).

No filme tive a impressão de que justamente quando o homem começa a desconfiar de que não tem o controle sobre si e muito menos da situação e diz para sua mulher que anda tendo uns sonhos estranhos, esta ironicamente age como ele até então: fecha a questão afirmando que “os sonhos não significam mais nada para a psicologia moderna, afinal, Freud está morto, não?” Assim ela obstrui o caminho que poderia levá-lo a abandonar a posição iludida de senhor de si mesmo.
Lembrei-me de algo que li: “O desejo rejeitado pelas instâncias psíquicas superiores (o desejo recalcado do sonho) agita o submundo psíquico (o inconsciente) para se fazer escutar. O que pode você ver de ‘prometeico’ nisso?” Encontrei esta frase logo no início da Interpretação dos Sonhos e não pude deixar de pensar no quanto esta assertiva sobre os sonhos condensa uma série de noções em psicanálise. É fantástico que Freud tenha, em plena modernidade cartesiana, se valido dos momentos em que o homem era onde não se pensava, percebido nas cotidianas formações do inconsciente (sonhos, chistes e atos falhos) aquilo que aparece quando o Eu cochila. E o que podemos ver de prometeico nisso?
Penso que, assim como Prometeu, que acorrentado e agonizante não deixa de gritar o seu destino, o que é recalcado (condenado, banido) não deixa de se agitar e procura de toda forma fazer-se ouvir. Por menos que o Eu queira saber d’Isso! Por outro lado, o ato de roubar o fogo dos deuses e entregá-lo aos homens marca um antes e um depois: depois do ato, um saber inédito que muda o destino da humanidade. E o que pode você ver de "freudiano" nisso?
Freud pode estar morto, mas suas ideias "acorrentadas" (pelo apagamento do sujeito do inconsciente por aquele tal discurso do capitalista, pelas neurociências ou pela tal "psicologia moderna"...), agitam o submundo humano e até hoje, por menos que se queira, o eco de sua descoberta faz-se presente, e tanto nosso cotidiano quanto a tempestade pulsional que o personagem enfrentará em sua mulher no filme não nega isso. 
Anticristo - trailer oficial

Francina Sousa é Psicanalista, membro do Fórum do Campo Lacaniano de Mato Grosso do Sul e do Ágora Instituto Lacaniano, psicóloga da Universidade Federal da Grande Dourados / UFGD.

sábado, 1 de junho de 2013

Depois De Tudo : Homossexualidade e Envelhecimento

por Arnaldo Domínguez

“Atraso. Hoje eu acordei tão ontem
que me esqueci. Um amanhã já passou por aqui” 
– Samuel Malentacchi

Os organizadores da Parada do Orgulho LGBT de São Paulo gentilmente me convidaram para falar sobre o tema destacado no título deste artigo. Eu possuo mais de um atributo que, supostamente, me autorizaria a tratar do assunto em questão. Fui médico geriatra do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) durante boa parte da década de 1980, em cujo entardecer, iniciei estudos de Gerontologia Social no Instituto Sedes Sapientiae e, logo a seguir, Sexualidade Humana no Instituto H. Ellis. Ao mesmo tempo em que ingressava na formação informal em Psicanálise, iniciava minha análise pessoal e participava da militância do Movimento GL de São Paulo, por intermédio de nosso Projeto Etcétera e Tal, debatendo ativamente em favor daquela sigla que ofereceria mais visibilidade às lésbicas em vez do anterior Movimento Brasileiro de Homossexuais, tão “masculino”.

Um bom lugar para início de conversa.

Movido por esses estímulos, fui à internet em busca de trabalhos teóricos a respeito do assunto para poder me atualizar dentro do meu escasso tempo “disponível.com”. E me surpreendi ao constatar que a maioria desses estudos trata de temas relacionados à saúde, contágio do HIV na terceira idade, idosos portugueses que acabam sendo separados dos parceiros ou das parceiras de longa data quando necessitam do amparo institucional e se deparam com locais de discurso oficial homofóbico e heterossexista. Idosos brasileiros que nem sequer podem contar com essas instituições preconceituosas e, quando dispõem da possibilidade de consultar um médico, não revelam sua “orientação sexual”. Dados ainda semelhantes aos de uma pesquisa que realizei entre 1990 e 1992 e que foi, na ocasião, amplamente difundida em revistas científicas e outras destinadas ao público em geral1.
Um dado significativo de minha pesquisa era que 70% dos médicos clínicos consideravam a homobissexualidade uma doença, e 50% não perguntavam nada sobre a sexualidade dos pacientes nas consultas. Os médicos não perguntam e os pacientes não falam. Silêncio promissor. “Na escuridão, surge o vaga-lume; NO SILÊNCIO, O GRILO”, escreveu Júlio Paulo Calvo Marcondes, o Faquir Loquaz, em publicação póstuma realizada para homenageá-lo, dentre outros, por sua namorada que foi minha analisante. Ela me presenteou com esse livro tão encantador.

E o grilo é: tudo indica que ainda persiste um panorama desalentador para todos/as os/as velhos/as, independentemente da modalidade de investimento libidinal de cada um deles. Provavelmente, agravada nos (ditos) homossexuais, pois, se na atualidade são idosos, certamente, pertencem a uma geração muito mais oprimida pela intolerância social e familiar, como revelam os entrevistados por Naélia Forato e Romulo Osthues, jornalistas que foram a Buenos Aires coletar depoimentos de casais homoafetivos cujos interesses rondavam a igualdade pelo direito do casamento civil2. Cidadãos de primeira, agora – finalmente –, amparados pela lei que os autorizou a se casar depois de uma parceria de mais de 40 anos.
Em contrapartida, as agências de turismo contemporâneas oferecem roteiros gays de maneira pouco discriminatória ou até claramente destinada aos “coroas”. Os mais velhos, quando conseguem uma boa colocação profissional, ganham mais e gastam menos com despesas escolares, médicas em planos de saúde para filhos etc., representando uma boa fatia para o “Deus Mercado” poder morder.

Então, nesse recorte que ora inicio, já tenho como separar dois aspectos da sexualidade que podemos destacar: o que a nega, considerando que velhice e sexualidade são critérios antagônicos; e o que a valoriza, ao apostar nesse público consumidor, que dispõe de bons recursos. Como disse doutor Casimiro, um obstetra de 94 anos, na ocasião em que o convidei para falar sobre “sexualidade na terceira idade” – se eu não me equivoco, em 1989, no Sedes Sapientiae: “Para se manter sexualmente ativo na minha idade, é preciso dispor de uma boa aposentadoria!”. Todos riram!

Todavia, antes de avançar mais nesse raciocínio, vou lhes apresentar uma rápida noção do que é sexualidade em Psicanálise. E, para elaborar tal critério, tenho de ir aos primórdios dessa disciplina. Viagem rápida.

Envelhecer leva muito tempo, contudo, geralmente, quando percebemos o tempo, que não para, esse já passou enquanto nos distraíamos em busca do objeto perdido. Freud concluiu que o objeto está perdido para sempre quando abordava o discurso da pulsão nos “Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade”, publicados em 1905. Sendo sexual por excelência a pulsão, nisso consiste a diferença fundamental com respeito ao instinto. A pulsão não ter objeto significa que qualquer coisa pode ocupar o lugar de “causa do desejo” e, frente à impossibilidade da “relação sexual”, no sentido de incompletude narcísica, representar o objeto perdido.

Com essa descoberta fantástica, Freud elevou à condição de objeto digno da designação de “erógeno” qualquer segmento do corpo, qualquer peculiaridade que pode ser transformada em uma significação fálica: seios, bunda, pênis, beleza, juventude etc. Mas, também, podem uma ruga, uma estria, uma calvície, uma voz etc., desde o real, desempenhar essa função imaginária e simbólica. Como o objeto do desejo é metonímico3 e empurra a pulsão a exercitar múltiplos deslocamentos, encontraríamos, aqui, uma razão para a poligamia (denominada promiscuidade em muitos contextos moralistas), para a compulsão sexual, para o consumo de produtos nos sex shops ou nos mercados do sexo.
Por outro lado, diferentemente do instinto que está atrelado sempre aos ciclos circadianos4 da biologia e, portanto, alienado a uma sobredeterminação bioquímica pré-datada, a pulsão é atemporal e, em consequência, não envelhece a despeito do corpo. Eis o trágico da condição sexuada da humanidade.

Um freio simbólico a esse eterno deslocamento é o amor. Outro, imaginário e da ordem da inibição, é o isolamento ou o adoecimento que aparecem como despedida no famoso tango: “Adiós, muchachos, compañeros de mi vida, (...) mi cuerpo enfermo no resiste más”. O amor, quando é por outro, implica em uma renúncia ao gozo imposto pela pulsão. Se, para Freud, a pulsão era uma mitologia que funcionava como intermédio entre o biológico e o psíquico, para Lacan, trata-se de um dos conceitos fundamentais da Psicanálise destinado a intermediar a articulação entre o corpo e o significante. Portanto, também, podemos avançar desde o narcisismo do amor rumo à renuncia desse gozo autoerótico e privilegiar na estrutura um lugar para a alteridade. Para o “hétero do amor”, algo tão difícil de imaginar.
Um dos fins principais da experiência psicanalítica consiste na perspectiva de mudança na posição subjetiva, digamos, naquilo que da gramática estávamos atrelados às bordas da pulsão. Freud apresentou-a ativa, passiva e/ou reflexiva. Por exemplo, do olhar: ver, ser visto, ver-se. Do sadismo oral, protótipo do amor materno: comer, ser comido, comer-se. Assim, estabelece-se no fantasma do sujeito uma posição subjetiva que aprisiona. Mal visto, mal comido, para pensarmos pela via do pior, que é o mais comum na clínica. Ou, então, como se diz popularmente, “fodido e mal pago”, “cagado” etc. Resulta muito difícil e trabalhoso modificar essa sobredeterminação – psíquica no caso. Tanto quanto sua oposição ativa e cínica: “Cagando e andando”; “Perco o amigo, mas não perco a piada”; “apertei a tecla ‘foda-se’”.
A grande maioria dos falantes quer parar de sofrer (como prometem os religiosos), mas não topa abrir mão dessa velha e conhecida prisão gramatical na qual goza. Digamos que são pouquíssimos os fala-seres (como define Lacan, os “parletres”) que podem tornar-se “hétero” – permita-me brincar com o sentido desse significante, sem pretender ofender a nenhuma militância por direitos humanos. Se hétero indica que haverá um lugar para o outro sexo (a sexualidade do outro com todos esses meandros) e, assim, na parceria, sejamos (por fim) dois, será preciso que haja uma renúncia em buscar “alguém que caiba no meu sonho”, como cantava Cazuza. Eis aqui a única perspectiva de que o amor seja por outro e de que se torne possível o encontro amoroso que rompa com a solidão humana cada vez que ele (o encontro) se produza.

A grande maioria dos humanos – pertençam à categoria sociológica que pertencerem – chega à velhice sem ter sequer se questionado a tal respeito. Nada como acompanhar os (não) submetidos ao público através das Comissões da Verdade para compreender, perfeitamente, que os canalhas também envelhecem. Imutáveis.

Pimenta para os olhos
Yo soy como el chile verde, llorona, picante, pero sabroso...”
Trecho da música mexicana “La Llorona”.

Pesquisando pela internet descobri:

- A pesquisa de Júlio Assis Simões, “Homossexualidade masculina e curso de vida: pensando idades e identidades sexuais”, do Departamento de Antropologia da USP.

- Andrea Moraes Alves, em “Envelhecimento, trajetórias e homossexualidade feminina”, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.

- Siqueira, M. S., em “Arrasando horrores: uma etnografia das memórias, formas de sociabilidade e itinerários urbanos de travestis das antigas”, tese de doutorado em Antropologia Social, Universidade Federal de Santa Catarina. Uma de suas entrevistadas, Sarita, conta que, pela Cinelândia “andávamos de uma ponta a outra, desfilando para lá e para cá. Foi quando eu conheci todo mundo. Fui para a Cinelândia, conheci a Rogéria, a Valéria, a Eloína e a Veruska, aquela turma da antiga, mesmo. Foi ali que eu me achei, ver que aquilo ali era o meu ambiente”.

- O curta-metragem “Depois de Tudo” (2008), dirigido por Rafael Saar e que tem Nildo Parente e Ney Matogrosso como intérpretes dos personagens principais. Em síntese, é apresentada uma relação (pelo visto, longa) de dois homens idosos que se encontram para um jantar trivial, para assistir ao mesmo filme, “Quando voam as cegonhas”, pela décima vez, para transar, calmamente, como corresponde a dois velhos e, depois, separar-se mansamente sem saber quando se reencontrarão. O velho e conhecido “me liga, tá?”, que remete ao “olá, como vai?” do “Sinal Fechado”, de Chico Buarque. Ou que remete aos “Diálogos sobre os prazeres do sexo”, obra em que o filósofo Michel Foucalt afirma que o melhor momento do amor (homoerótico) é quando o amante vai-se embora no táxi.
O filme é bonito, tranquilo. Apresenta sem pudor os corpos envelhecidos de dois amantes masculinos. Mas também apresenta uma “comidinha caseira”, insossa, que origina a pergunta: – O que falta?
Pimenta! Responde Ney, depois de provar sem se queimar.
Tá bom. Vai tomar seu banho!

E eu me recordei, mais uma vez, das espanholas de minha infância que haviam ido tão longe de sua terra natal, negociadas entre os pais e os viúvos galegos da Patagônia Argentina. Contou-me uma delas, que, desde Buenos Aires, ao descer do navio, telefonavam para as amigas que já estavam lá e perguntavam se o candidato a marido (por procuração) tinha “sal e pimenta”. O que significava, decodificando, “posses econômicas e potência sexual”. Caso não os tivesse, era melhor ficar na capital como domésticas, e até nos lupanares (do amor, onde o coração é o principal proxeneta).

Que falte pimenta, como sugerido nesse filme, talvez seja revelador do fim de “A idade viril”, como escreveu Michel Leiris, dedicado a Georges Bataille. (Ed. Cosac & Naify):

A seguir, a ideia de morte, na qual mergulhei pouco a pouco, pensando no declínio inevitável daquela mulher alguns anos mais velha que eu. Nunca, antes de ter perdido a virgindade, eu havia me preocupado a tal ponto com o envelhecimento. Essa obsessão me veio a propósito do ato erótico que, ao cabo de certo tempo, me pareceu uma derrisão, pensando na feiura que nossos corpos, capazes até então de serem vistos sem aversão, acabariam por adquirir. Cheguei assim a uma espécie de estado místico, condenando – em nome da morte – o amor físico em geral, sem ousar confessar-me claramente que era de um amor particular que me cansava. Dessa época datam minhas primeiras aspirações à poesia, que eu via, propriamente falando, como um refúgio, um meio de atingir o eterno escapando à velhice, e de recuperar, ao mesmo tempo, um domínio fechado e exclusivamente meu, no qual minha parceira não teria como se imiscuir”.

Para o meu gosto, e aqui vai uma provocação, essas são revelações absolutamente masculinas, que não permitem que a mulher (o feminino) venha a se imiscuir, a não ser por meio da poesia. Assim sendo, a pimenta que falta é a da irrupção da feminilidade na relação. Da falta em si que abra perspectivas para um universo da criação.

Que uma relação finalize nesse “acordo de cavalheiros”, sem nunca uma espelunca, nunca mais blues, nunca mais romance, nunca mais drink no dancing, nunca mais feliz, me parece absolutamente desolador. Uma espécie de “estamos conversados”, “passar bem”, sem o grand finale de um desencontro fundamental – sobre o amor que se move, escreveu a poeta Hilda Hilst. Da dimensão da feminilidade que faz transitar o transitório da nossa condição humana.

Por fim
MEU QUERIDO E AMADO JOVEM ADOLESCENTE, não liga não. Sempre está tarde demais, sempre é hora de ir embora, mas eu – já são horas de acabar de ser jovem
Júlio Paulo Calvo Marcondes, em Faquir Loquaz

[Uma dedicação especial à] todos/as aqueles/as que colaboraram para a realização oficial do evento de 1995, quando, na Praça Roosevelt, em Sampa, nós colocamos “triângulos rosas” nos braços dos que por ali passavam. O sentido era muito sério, mas, por fim, o povo ria. Transformávamos em comédia a tragédia da vida cotidiana de tantos/as – não – falantes do que, quase que até então, nem ousavam dizer seu nome: o amor. Esse célebre informal que, insistentemente, é aprisionado em campos de concentração.

Afinal, será o amor, o trabalho ou a velhice que nos farão livres?

Como disse Rita Lee, “livres outra vez no xadrez”. Shalalá-shalalá..


Itaquaciara, 12 de maio de 2013.


"Depois de Tudo” (2008), de Rafael Saar - com Nildo Parente e Ney Matogrosso

ARNALDO DOMÍNGUEZ é Psicanalista e Professor do CEP - Centro de Estudos Psicanalíticos, fundador do PROJETO ETCÉTERA E TAL... Psicanálise e Sociedade, conselheiro da Biblioteca Popular de Itaquaciara D.Nélida