domingo, 18 de maio de 2014

ELA : pedaço metade de mim ?

de Priscilla Cheli

Esse filme nos fala sobre a solidão humana, o amor e a tecnologia.
Sob a direção de Spike Jonze, que também dirigiu “Quero ser John Malkovich”, o filme HER nos conduz através de uma história repleta de sutilezas da imensidão humana, numa poética que nos traz um mundo tanto futurista, em aspectos tecnológicos, quanto antigo no que diz respeito a valorização de um certo sentimentalismo que aparece desde as cartas feitas a mão até ao estilo anos 30 do figurino.
Numa Los Angeles futurista, Theodore Twombly, brilhantemente interpretado por Joaquin Phoenix, trabalha num site que vende o serviço de criação de cartas. Através deste, um remetente qualquer pode enviar lindas cartas para agradar o seu destinatário. O nome do site: Handwrittenletters.com (cartas manuscritas na tradução livre).
Habilidoso com as palavras, Theodore faz uso das sutilezas humanas para elaborar suas cartas. Recentemente separado, sofre sua perda, dividindo seu tempo entre o trabalho, jogos de vídeo games, raros encontros com amigos e sexo virtual.
Uma mudança em sua rotina acontece quando ele compra um novo sistema operacional para instalar no seu computador pessoal, seu celular e outros dispositivos eletrônicos. Esse sistema, uma inteligência artificial, foi desenvolvida para conhecer ao máximo o ser humano, com o objetivo de “conhecer tudo sobre tudo”.
A inteligência artificial, ou OS como é chamada no filme, aos poucos passa a fazer parte da vida de Theodore. Numa precisão e velocidade só alcançada mesmo por uma máquina, o programa começa a organizar a vida de Theodore. Desde limpar sua caixa de e-mails, verificar seus contatos da agenda, lembra-lo de seus compromissos, etc. Pouco a pouco se aproxima de sua intimidade, e assim, Theodore se apaixona por Samantha, nome dado a voz do sistema operacional, interpretada pela doce e sensual voz de Scarlett Johanssan.
Samantha quer vasculhar cada canto da existência humana para saber o que seria existir. Desta forma, Theodore passa a mostrar-lhe o mundo através de seus olhos e de seu corpo, conduzindo-a a novos universos.
A solidão de Theodore começa a deixa-lo. Samantha o acompanha a todo momento. Desde o acordar pela manhã até o horário de dormir. Em contrapartida, ele apresenta à Samantha a sensação de estar no mar, na rua, no campo. Nesta relação, o fato de Samantha não ter um corpo para vivenciar estas experiências, não impede que haja uma paixão entre ambos.
Diante de um homem com a sensibilidade a flor da pele, escritor de cartas elaboradas para tocar o outro, nosso protagonista se encontra com aquilo que poderia traze-lo a tão almejada completude. O encontro com um outro que não lhe falta “nada”, a não ser um corpo. Uma voz que está sempre presente, pronta para lhe falar e, além disso, também ouvir. Até mesmo para agir quando lhe falta coragem.
Será que a tecnologia poderia encontrar um substituto para nossos próprios corpos errantes e sem rumo? Corpos à procura de uma estrada para seguir, num universo sem placas de sinalização. Samantha parece proporcionar conforto como um semelhante, ou seja, como qualquer outro à procura da resposta do “que é ser humano ?”.
Diante tudo isso, Theodore não escapa da ilusão de completude e se apaixona por Samantha, assumindo publicamente seu relacionamento amoroso por uma OS. Mas, Samantha o decepciona quando lhe conta que conversa com outros, além de estar apaixonada por mais pessoas. Depois disso o deixa, com a intensa dor de um termino, avisando-o que irá se retirar do seu mundo (de Theodore), junto com outros sistemas operacionais, pois encontrou um lugar no “espaço infinito entre as palavras” - já falando a partir dele. E finaliza a conversa explicando que esse “lugar não está no mundo físico. É onde todo o resto está e eu [Samantha] nem sabia que existia”. Que lugar seria este entre palavras?
E é com o desfecho do filme que ficamos a nos perguntar que diante da fala sobre o desamparo e a solidão nos tempos atuais, imaginariamente, se idealize de forma mais intensa, relações perfeitas com um outro que possa nos completar. Integralmente. Porém, o filme nos mostra que no amor, seja ele entre humanos ou entre humanos e máquinas, não existem garantias, mesmo que as máquinas sejam construídas para alcançá-las. Até porque, - se isto for possível e numa provocação à futurologia - por ser construídas / criadas por humanos, a constituição das OSs já traria em seu âmago a falta como elemento fundante?
Enfim, citemos o sábio poeta, Vinicius de Moraes, que já dizia, “que seja eterno enquanto dure”.
Trailer Oficial do Filme

Priscilla Cheli é psicanalista com pós-graduação em psicologia clínica pela PUC-SP.

domingo, 4 de maio de 2014

THE FALL (Dublê de Anjo) : A Fantasia como Janela da Realidade

de Christian Ingo Lenz Dunker

The Fall: A Queda
The Fall (2008), dirigido por Tarsem Singh e inspirado na peça de Yo Ho Ho de Valery Petrof é um exemplo contemporâneo de como o cinema consegue apresentar o problema da co-presença de perspectivas. “Dublê de Anjo”, segundo a versão nacional, é inteiramente inspirado naquilo que, sendo condição de possibilidade prática para a realização do cinema de aventura, não deveria ser percebido como fazendo parte dele, ou seja: a figura do dublê. Lembremos que a ideia de um ator que substitui outro, sendo o truque desapercebido ao público aparece de modo contundente em momentos estratégicos na história do cinema, como em Um Corpo que Cai (Vertigo) de Hitchcock ou Aconteceu naquela Noite (Blow up) de Antonioni. Filmado em mais de 18 países trata-se de uma produção da Googli Film. Googli é uma expressão neológica, quiçá alusiva a esta nova forma-saber chamada Google, representado no próprio filme como “a coisa” da qual Alexandra, a menina protagonista, tem medo e horror, o Googli-Googli. Alusão ao terrível e impossível encontro entre a criatura e seu criador.
A atriz mirim romena (Catinca Untaru) é levada a acreditar, durante a filmagem, que o ator principal (Lee Pace), que interpreta um paraplégico, é de fato paraplégico. Temos então expressa uma intenção realista extrema de fazer coincidir a representação dos personagens com a crença dos atores. Como ela diz: “A história é só um truque para você fazer um favor para mim”.
O enredo apresenta uma menina de sete anos que perdeu o pai e trabalha com a mãe em uma plantação de laranjas na Califórnia dos anos 1920. Depois de um acidente [Fall] Alexandra encontra com um ator dublê, acidentado e envolvido em profunda melancolia. Ele ama a mulher que pertence ao herói galã, de quem ele é o dublê em um filme de Faroeste nos tempos da aurora holiwoodiana. Alexandra e nosso dublê tem algo em comum: ambos perderam um objeto de amor e sofreram eles mesmos uma queda real, a menina está com o braço e ele com a perna quebrada. Estão às voltas tanto com a elaboração de um trauma quanto com o concomitante trabalho de luto.
Estão ambos em um hospital povoado por figuras mitológicas como a enfermeira Evelyn, que poderia substituir o amor perdido pelo dublê, o médico caridoso, que poderia ser o dublê do pai perdido por Alexandra, e o terrível minotauro mascarado, o homem do Raio X, o homem sem rosto destruidor de amores, fonte indutora da indeterminação entre familiar e estrangeiro (Unheimlich), de angústia (Angst) e de pavor (Schreck).
A relação entre Alexandra e o dublê se estreita porque estão ambos em convalescença por causa de uma queda (Fall): cair de amor, cair das folhas de outono, cair e quebrar o corpo, fall in love, tombeaux amroreause. É também por meio de um truque, de uma “manipulação” que o dublê faz a menina encontrar e trazer o remédio [pharmakon] com o qual ele tenta se matar, ou se curar.
Neste ponto de cruzamento de duas perspectivas a história se dobra em uma outra história. História que o dublê inventa e conta compartilhadamente para Alexandra e cujo adiamente do canclusão, qual Sherazade, a coloca a “fazer coisas em nome de”. Nesta história fantástica, dentro da história realística, a Princesa Evelyn, enfrenta o Bandido Negro (Black Bandit) e o Governador Odious em uma aventura maravilhosa por castelos, mares, desertos e jardins distantes. São as aventuras de cinco heróis que tentam libertar a princesa do jugo de um vilão. No trajeto há a inclusão de dois novos personagens Aborígene e a Alexandria. Alexandria: como não lembrar aqui do Farol que guiava os antigos navegadores egípcios e onde se localizava a grande biblioteca, depositária das histórias da antiguidade. A entrada de Alexandria, na história corresponde a uma nova reversão que nos dá agora uma história dentro de outra história que inclui o narratário a quem a história se destina. Uma vez incluída a pequena protagonista descobre que ela mesma pode ingerir em certas partes dos acontecimentos, reduzindo impasses e “curando” o seu antes solitário e soberano narrador. Temos então um estado de coisas que introduz uma quarta perspectiva, meio joyceana: de narratária ela passa a co-autora e co-narradora.
A saga épica termina em um romance que conclui-se com a união entre a Princesa Alexandria e o Bandido Mascarado. Mas há ainda um ponto de convergência entre as quatro perspectivas: da história vivida no hospital (entre médicos e enfermeiras), da história das quedas lembradas (perda do pai e da amante), da história das aventuras futuras (o romance imaginado) e da história da cura cruzada operada entre o dublê e a menina, que é também a perspectiva da realização do filme de Faroeste que vemos projetado ao final (a indeterminação narrativa). A passagem entre cada uma destas perspectivas está marcada por um ponto de angústia, que se liga a procedimentos formais específicos da linguagem fílmica: repetição (Alexandra = Alexandria), deformação (o Homem do Raio X = Herói Mascarado) e subtração (a morte real dos ajudantes = morte possível do dublê) . Este ponto irrompe violando a realidade diegética de cada uma das perspectivas ou dos “mundos” que o filme cria e interpenetra. Não há metalinguagem porque somos todos dublês e todos caídos. Não há metalinguagem porque a fantasia fracassa e é nestes fracassos que ela se torna tão mais útil do que em seus sucessos.
Há, portanto, e ainda uma quinta realidade em jogo. A do filme real que está sendo produzido, no qual nosso protagonista, dublê e herói. Uma história que é a um tempo lírica, dramática, épica e trágica. Se estamos aqui também na história das origens do cinema, uma quinta “realidade” que só pode ser unida ou cruzada (Verschränckung) a partir de uma posição que permanece estruturalmente recalcada e que não é a apenas a dublê, mas a de nós mesmos participando desta história quando vamos ao cinema assistir “Dublê de Anjo”.
Temos então cinco planos ou perspectivas nas quais se desenrola a ação do filme. O filme é um quebra-cabeças narrativo, pois cada um destes cinco planos possui índices que representam um novo sujeito para cada uma das quatro perspectivas restantes. Por exemplo, na perspectiva da aventura maravilhosa, nós temos cinco personagens, cada qual referido a uma dimensão: (1) o Indiano, referência à narrativa maravilhosa e seu cenário oriental, é o único personagem que representa o próprio plano ao qual ele pertence, (2) o ex- Escravo, referência a narrativa do faroeste e ao gênero do filme de aventura, (3) o Perito em Explosivos, referência à narrativa de produção fílmica e a trucagem, na qual se inclui o dublê (4) Charles Darwin, referência à narrativa médico-hospitalar e ao naturalismo expressivo (5) o Bandido Mascarado, o personagem que representa a história “real” exterior a este parênteses representado pelo hospital, ele tem que ser mascarado porque deve ocultar sua identidade de tal forma que a ocultação seja apresentada (máscara).

 A Fantasia como Perspectiva
Talvez o cinema possa vir em nosso auxílio para nos ajudar a entender o problema psicanalítico representado pela fantasia, ou seja, como é possível o funcionamento articulado de diferentes perspectivas no interior de uma mesma experiência?
Se Lacan afirmava que a fantasia se estrutura como uma tela, podemos desdobrar a tese para a ideia de que se apreende melhor a estrutura da fantasia como um filme. O enquadre da fantasia se altera um pouco quando pensamos a função da tela, de pintura ou de projeção, como objeto e suporte de nossa ficção, ou como ponto de articulação entre a verdade e o Real. Examinando alguns efeitos ópticos (como a paralaxe e a câmara clara) e algumas teses psicanalíticas, pode-se mostrar como a sustentação da construção da realidade depende de certas deformações, repetições e subtrações de objetos na tela. Filmes da aurora do cinema (Méliès, Buñuel) bem como filmes contemporâneos (Matrix, Mais Estranho que a Ficção, Closer), se utilizam dessa homologia entre o conceito e a prática visual da perspectiva para produzir efeitos construtivos e desconstrutivos sobre a fantasia. Isso acontece porque a própria fantasia se “estrutura como uma janela”. E isso já havia sido percebido na história das artes plásticas, principalmente nos “mestres ópticos”, ou seja, naqueles pintores, como Van Eick, Holbein e Lotto que incorporavam, dentro de suas próprias telas, índices e rastros de sua própria construção como ilusão. Até a invenção da fotografia, em 1840, boa parte da pintura dependia da projeção de imagens reais e eventualmente de sua deformação calculada. É com a chegada desta reversão da projeção, que é a fotografia, que impressionismo, expressionismo e as vanguardas em geral, reformularam a pintura como uma arte da experiência do olhar e não mais como representação pictográfica do mundo.
O conceito de fantasia em psicanálise possui uma extensão muito grande de conotações. Freud falava da fantasia para designar o processo de produção de imagens, tanto por meio da fabricação de um objeto pictórico (Einbildung) quanto por meio de uma animação de imagens (Phantasieren). As fantasias exteriorizadas em objetos colocam um problema, pois elas são ao mesmo tempo parte do mundo real e expressão de um mundo imaginado. Seria falso, portanto, pensar que a imaginação cria um mundo que se opõe bipolarmente ao mundo real. O ideal faz parte do real. Entram nessa acepção as noções de ilusão e de realidade psíquica. Esta função da fantasia parece ser importante para estabilizar a experiência do sujeito, introduzindo sentido e significação ali onde a realidade oferece obstáculos para ser representada, figurada ou mesmo imaginada. A característica marcante desta acepção de fantasia é que ela aparece como uma espécie de realidade subjetiva complementar, ou de síntese de representações, necessária para resolver uma contradição real ou uma irrepresentabilidade da Coisa. Temos aqui o circuito que liga o filme, como objeto da indústria cultural, produzido e vendido como peça de entretenimento, e o filme como apoio para nossa faculdade de negação, capaz de nos tirar de nós mesmos e imaginar “outros mundos”.
A segunda acepção de fantasia a entende como uma espécie de mediador psíquico da relação com o mundo. A fantasia se “infiltra” em acontecimentos reais, sendo expressa, por deformações de memória (lembranças encobridoras), por deformações de percepção (alucinações, sonhos) e deformações da própria experiência corporal (protofantasias). Neste sentido se pode falar em fantasias de sedução, da cena primária ou da castração, das fantasias bissexuais da histeria, ou das fantasias fálicas das crianças. Aqui a fantasia funciona como um léxico capaz de nomear as variedades de exigência pulsional, de relação ao corpo e de interpretação da diferença sexual. Neste caso uma fantasia pode ser pensada como uma “estrutura de ficção” no interior da qual relações téticas e funcional veritativas podem ser construídas, derrogadas ou postas à “prova de realidade”. Neste caso a fantasia se posiciona entre o trauma e o luto, como dispositivos mais simples, que ela acaba por articular para que o sujeito possa tornar compatível lei e desejo, princípio de prazer e princípio de realidade. Temos aqui o efeito que o cinema é capaz de extrair e produzir afetos, lembranças e pequenos fragmentos “reais” de sentido e contra-sentido.
Uma terceira maneira de pensar as fantasias é dividindo-as em fantasias pré-conscientes (sonhos diurnos), conscientes (devaneios) ou inconscientes (recalcadas). Neste caso a fantasia possui uma estrutura similar ao sintoma, envolvendo deslocamento, condensação e a combinação entre processos primários e secundários na realização do desejo. Lacan pensou desta maneira ao valorizar a noção de fantasia fundamental, como polo de convergência das fantasias a uma espécie de frase fundamental, monótona e repetitiva na vida pulsional do sujeito, ao modo de uma “síncope do significante”. Talvez esta seja a fórmula mágica para a criação de universos paralelos, desdobramento de mundos e transformações entre planos de ação, que caracterizam a construção da “realidade maravilhosa” no filme de Tarsem Singh.
Uma quarta maneira de agrupar a fantasia é considerar que ela é uma espécie de gramática fundamental do desejo pela qual ela se expressa preferencialmente em relações de identificação, projeção ou introjeção que organizam a relação do sujeito ao objeto ou a sua falta. Aqui a fantasia comanda as relações de crença, convicção, recuo ou exclusão em relação à realidade que se lhe apresenta. Lacan pensou esta variante da fantasia ao falar na afânise do sujeito, quando descreve sua posição intervalar na cadeira significante ou quando aponta para suas relações alternadas de inclusão e exclusão no campo do Outro. Neste caso a fantasia estabelece ordem e continuidade na realidade, ao modo de um encobrimento do Real. Ora, este re-encobrimento do Real, ocorre por meio de operações de duplicação imaginário do eu do sujeito, mas também por esta espécie de confusão calculada por meio da qual, no filme, Alexandria conta e é contada pela história, cura e é curada pelo dublê, lembra e é lembrada em seu próprio luto.
Finalmente, uma quinta forma de considerar a fantasia é pensá-la por sua relação com a angústia, e, portanto, como um dispositivo defensivo. Falamos aqui de processos como o retorno à própria pessoa (narcisismo), inversão da pulsão ao contrário (masoquismo-sadismo), negação ou sublimação. Este parece ser um caso composto por elementos das acepções anteriores, concentrando sobre si as propriedades de unidade, coerência e consistência da realidade.
Podemos dizer que em cada um dos casos acima tentamos definir um sentido de fantasia que acaba compreendendo um modo de articulação da realidade: como oposição ao ideal, como condição de possibilidade subjetiva de apreensão libidinal de objetos, como hierarquia ou englobamento de sentidos, como gramática de inclusão, exclusão ou implicação do sujeito e finalmente como unidade da experiência. Em cada caso a fantasia ao mesmo tempo organiza certo regime de realidade e localiza um furo, uma inconsistência, um ex-sistência ou uma contradição no interior desta realidade, que é o que Lacan chamou e Real. Ora, manejar clínica e conceitualmente tal variedade de entendimentos sobre a fantasia é uma dificuldade para o clínico e para o estudioso da psicanálise. Ainda mais porque as acepções aqui elencadas se entrecruzam e se combinam de maneira não excludente.
Uma tentativa de síntese pode ser tentada a partir da tese proposta por Lacan de que a fantasia funciona como uma janela pela qual estruturamos a realidade. Mas, podemos acrescentar com a linguagem fílmica, a fantasia também é o lugar no qual a realidade fracassa, dando ensejo a aparição temporal do Real. Esta tese pode adquirir valor integrativo, em relação à diversidade de acepções antes sugeridas, se entendemos que o que está em jogo na noção de “janela” é, no fundo, o conceito mesmo de perspectiva. Não é apenas que a fantasia crie perspectivas, ou “pontos de vista” sobre o mundo, mas a fantasia é esta perspectiva ela mesma. Se isso é verdade cada acepção diferencial de fantasia é no fundo um tipo de perspectiva. E estas perspectivas se articulam ao modo de superfícies mais ou menos compostas.

 O Cruzamento de Perspectivas
A perspectiva é um método pelo qual se pode representar objetos tridimensionais em uma superfície bidimensional. Toma-se um objeto e se o projeta a partir de um ponto (ponto de fuga), que se encontra sobre o eixo ótico. Todas as linhas de projeção da pintura convergem para este ponto de fuga. Uma mesma projeção pode corresponder a diversos objetos diferentes.
A experiência de Bruneleschi (1377-1446) mostra como a perspectiva depende de que se assuma um ponto de vista (uma janela), da qual será possível estabelecer projeções regulares dos objetos tridimensionais em superfícies bidimensionais. Todas as linhas de fuga (perpendiculares) encontram-se no ponto de vista. Mas o quadro não pode prescrever o lugar no qual o olho do espectador deve se instalar. O lugar de onde devemos olhar o quadro não é mostrado no próprio quadro.
O quadro, como disse Albert Dürer, é uma janela atravessada pelo olhar. Ou seja, o lugar do pintor deve permanecer como um lugar invisível. Há um equivalente disso no cinema. O espectador não pode ser situado no próprio filme, pois o próprio efeito fílmico depende deste ocultamento. Há alguns truques para ultrapassar este ponto. No filme de Woody Allen (Whatever Works, 2009), um grupo de aposentados conversa sobre uma história, quando Woody Allen dirige-se para o espectador e faz uma exposição sobre a ilusão ao qual ele está submetido. Outra forma de “devolver” a posição do olhar ao espectador é a anamorfose. Em Os Embaixadores (Holbein, 1502) é a caveira em anamorfose quem olha para o espectador. Mas ela só pode ser reconhecida como caveira por uma mudança de ponto de vista (lateral e não mais frontal), antes disso ela é percebida como uma mancha. Desta forma, como argumentou Lacan, o quadro é uma espécie de “descanso” para o olhar, e uma “armadilha” para o olho.
A engenhosidade do filme de Tarsem Singh é que ele desenvolve estas cinco perspectivas retomando as cinco estratégias históricas de compor “perspectivas ópticas”.
Há, primeiro, a perspectiva hierárquica (medieval) pela qual a perspectiva é uma construção simbólica que instrumentaliza a apreensão do espaço. A perspectiva constrói uma narrativa: o que é mais importante é representado como maior, e assim por diante. Como a criança, observada por Vigotsky, que ao representar o fogão a lenha desenha o fósforo gigante dada a sua importância para o funcionamento do dispositivo. Esta perspectiva é discutida por Diderot em sua Carta aos Cegos para Uso dos que Vêem e corresponde ao tema clássico da inclusão do pintor no quadro por meio de sua própria imagem ali pintada, como Signorelli no Afresco da Catedral de Orvietto, discutido por Freud em sua Psicopatologia da Vida Cotidiana. Em vez do nome a imagem do pintor. Essa é a perspectiva usada para filmar as figuras gigantes e ameaçadoras no hospital, criando um mundo de “realismo fantástico” a partir de operações de aumento e diminuição de proporção entre elementos. O que lhe é característico formalmente são as operações de duplicação ou de dualização da realidade.
A segunda perspectiva é chamada também de linear (naturalis). Aqui o olhar pode ser incluído no quadro a partir do trompe l´oeil, ou seja, pequenas alterações de perspectiva que criam proporções não consoantes com o “espaço real”. Esse é o recurso pelo qual o pintor pode ser incluir no quadro por meio do espelho que reflete sua imagem, como em O Casal Arnolfini, de Jean Van Eick, ou em As Meninas de Velásquez. Aqui a realidade diegética é formada pelo campo da representação, tal como vemos nos processos de lembrança e rememoração, que Alexandria passa ao longo do filme ao recuperar as cenas traumáticas nas quais o pai é retirado de casa e morto por bandidos, na frente de seus olhos. Mas convém lembrar que a “lembrança naturalista” é antecedida pela “deformação imaginada”.
       A terceira perspectiva é a perspectiva geométrica (artificialis). Ela supõe um ponto de vista único no qual o espectador deve se colocar para ver o quadro. Este é o ponto de vista cuja projeção no quadro é o ponto de fuga. “Para a qualidade da imagem ser mais fiel, e representar melhor um objeto, eles não devem se assemelhar a ele”. (Descartes, R. – Dióptrica). Aqui encontramos a demarcação da visão-espaço, mas não do olhar (que depende da luz). A imagem é um mediador entre o sujeito e o objeto definindo um campo da visão a partir de um plano geometral (Imaginário-Simbólico). Agora não é caricatura do pintor nem a posição do olhar da criança que lembra, mas o olhar incluído no quadro por meio da anamorfose, como Holbein em Os Embaixadores, ou nos paradoxos visuais de Escher, ou seja, deformações cônicas ou piramidais que alteram a projeção da imagem segundo regras constantes e que cruzam perspectivas distintas sob o mesmo plano de projeção. Encontramos esta perspectiva na maneira como são filmadas as aventuras dos cinco heróis em seu “mundo mágico”. Esta é a perspectiva do dublê, o contador (manipulador) de histórias.
A quarta perspectiva é chamada também de atmosférica (luz e cor). Aqui se trata de partir de um ponto luminoso, de brilho ou sombra incoerente, de cor incongruente, de mancha, pelo qual o olhar pode se incluir no quadro como objeto indeterminado. Como disse Leonardo Da Vincci: “A pintura compreende duas partes principais: a primeira é a forma, isto é, a linha que define as formas dos corpos e seus detalhes; a segunda é a cor, encerrada dentro dos limites da primeira”. O pintor se inscreve no quadro por meio de um ponto luminoso, um ponto de cor, brilho ou mancha que representa o olhar como objeto. Há um ponto que precisa ser barrado para que a visão se produza, é a tela (écran) ou anteparo. Foi o que Merleau Ponty discutiu em Visível e Invisível a partir da experiência de ver e ser visto e a partir do qual ele introduz a noção de carne. A tela surge aqui como mediador entre o sujeito e o ponto do olhar (luminoso) formando todo um campo do olhar. Aqui está o ponto no qual o dublê deve se indiferenciar do ator que ele substitui. É o ponto no qual o filme é representado como a luz que se projeta, ofuscando o próprio olhar. No filme de Singh este ponto pode ser representado pelo nome que dá unidade ao semblante do filme: a queda. A queda do pai, na cena em que será morto; a queda do dublê que o leva ao hospital, a queda ela tem pelo dublê, seu herói redivivo e finalmente a queda mais importante, a única que de fato exige este tipo de perspectiva, ou seja, a do próprio espectador que se envolve com o filme. Por isso esta perspectiva forma a transferência. Nesta perspectiva temos a aparição dos fenômenos de indeterminação, ou de inclusão-exlusiva, da narratária no campo do narrador, do dublê no campo do filme, da cura contada na cura realizada.
Em quinto e último lugar, encontramos neste filme a perspectiva do plano projetivo. Ele é produzido pela combinação de perspectivas anteriores e ao final pela reversão e indeterminação entre o sujeito vendo o quadro e o sujeito sendo visto vendo o quadro. As Meninas, de Velásquez (1656), representa o instante de recuo do pintor em relação a seu ato, por meio do qual ele olha para o modelo. Ele está na nossa posição, pela qual podemos nos reconhecer na imagem do casal real presente no espelho frontal. Somos os “soberanos do quadro” ao mesmo tempo em que “escravos de sua ilusão óptica” estamos servindo ao instrumento do artista. Exatamente como na fantasia, senhor e escravo são ambos seus vassalos.
O pintor, como dublê, se inscreve no quadro por meio do auto-retrato, localizado entre o ponto de fuga e o ponto infinito. Ele envolve (1) um plano sujeito como janela que enquadra a realidade, (2) um plano quadro como fantasia que recobre a janela ou modo de ilusão ou “palco do mundo”. No plano- janela o sujeito é o objeto (a   ), no plano-quadro o sujeito encontra sua fantasia (  a). Há ainda (3) o sujeito que se apoia entre o quadro-fantasia a janela-subjetiva, um sujeito que apreende uma diferença entre dois mundos, como divisão ou desaparecimento e (4) para se apoiar entre a janela e o quadro, e para que o truque produza uma eficácia real, é preciso produzir uma equivalência entre o sujeito e o que Lacan chama de objeto a.
A junção destas quatro perspectivas em um quinto ponto de vista que permitiria representar a realidade mais além das relações de interioridade e exterioridade. Ela poderia ser descrita como um conjunto composto por duas bandas de Moebius, (com torções em sentido contrário), um círculo de interpenetração (ou de implicação subjetiva), um círculo de revolução (ou de indeterminação) e um objeto, (ou objeto a). O conjunto forma o que os topólogos chamam de garrafa de Klein.
                                    Trailer Oficial

Christian Dunker é Psicanalista, Professor Livre Docente do Depto de Psicologia Clínica-IPUSP, Analista Membro de Escola da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano, Membro da Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental, Doutorado (IPUSP) e Pós-Doutorado pela Manchester Metropolitan University (UK). Autor de vários livros, entre eles o vencedor do Prêmio Jabuti 2012: “Estrutura e constituição da clínica psicanalítica: uma arqueologia das práticas de cura, psicoterapia e tratamento” (ed. Annablume, 2011).

quinta-feira, 1 de maio de 2014

DEIXA O CORPO FALAR

de Valter Guerreiro

Deixa que dos abismos dos teus medos mil aves cantem
e que a vertigem inominável e vagabunda te enlouqueça
e que dos rios de lava em sangue que o mar não amansou
o teu ventre lúbrico e a tua alma insaciável se levantem
e amem como jamais alguém amou.

Abre os teus braços represos em arcos de pedra escura
e dá-os às alturas e aos abismos ínvios do desconhecido
que da luz e das trevas em voo sem rede se faz o tempo
dos que do tempo sabem que o tempo pouco dura
e vivem como se o ontem não houvesse acontecido.

Deixa que sejas o voo inigualável da pele a arder 


E desse esplendor ávido e tremendo das vísceras
deixa a vida acontecer!

Valter Guerreiro é escritor e poeta luso de Carcavelos, mas nasceu em Olhão / Portugal, é professor universitário em Ciências Sociais e Sociologia Geral e Sociologias Especiais. Atualmente Doutorando em Sociologia e Ciências Políticas.