sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

Ninfomaníaca: Práticas do Infinito

de Christian Ingo Lenz Dunker
Há uma longa tradição no ocidente cristão que associa inovações estéticas na forma de falar da sexualidade com transformações políticas em nossas formas de vida. E entre tais políticas há as que privilegiam a vida como finitude, com seus afetos fundamentais de medo e desamparo, e as que pensam a vida incluindo o problema do infinito, seja ele o infinito do desejo, seja ele o infinito do tempo, ou ainda o infinito indeterminado do diálogo entre vivos e os mortos. Assim é o Marques de Sade, e sua Filosofia na Alcova, e a aurora da revolução francesa de 1789; os românticos de segunda geração, como Byron e Mary Sheley e seus seres góticos adoecidos no sexo, bem como maio de 1968, a revolução sexual de Reich a Bukowsky e principalmente o feminismo. Cada um destes momentos tiveram também seus teóricos: os libertinos e suas controvérsias em torno da existência ou não de uma moral natural, no século XVIII, a sexologia de Kraft-Ebbing a Havelock Elllis, no século XIX e a psicanálise de Freud a Robert Stoller no século XX. Cada um destes momentos esta marcado por uma problemática relativa ao infinito: o divino marquês investigava o infinito no corpo-natural, os ultrarromânticos queriam saber do infinito da vida (vampiros, Frankensteins, fantasmas e zumbis), enquanto a psicanálise nasce como uma investigação sobre o infinito do desejo (sem tempo, sem negação, sem contradição).
Foucault queria que a análise crítica desta sucessão servisse para que parássemos de localizar a verdade do sujeito neste campo heteróclito, de desidentidade do sujeito, que é a sexualidade. Eventualmente sua crítica contém algo mais importante do que ele mesmo teorizou. Não só a saga da dominação do homem pelo homem, a partir de sua subserviência ao sexo rei. Não apenas a dominação por discursos impróprios, nem mesmo a neutralização a sexualidade na medida em que somos incitados a falar mais e mais dele. Foucault chamou de hipótese repressiva, certas condições históricas de emergência da psicanálise, como a naturalização da maternidade, a perversão dos adolescentes e a sexualização da infância. Uma característica forte desta “estrutura de ficção” é o horror ao infinito. A sexualidade é perigosa, principalmente para os desprevenidos, por que ela sempre pede mais, se damos a mão ela quer o braço, e se damos o braço ... não sabemos onde vamos parar. É este temor ao infinito que Lacan pensou por meio de uma crítica da gramática da necessidade (nécessaire = ne – cesse: o que “não cessa”). Ora, o que não cessa de se escrever (necessidade), presume o que cessa de não se escrever (contingência), assim como o que não cessa de não se escrever (impossível) presume o que cessa de escrever (possível). A crítica de Lacan tenta reduz o potencial de periculosidade da coisa sexual, mostrando que o infinito não está apenas na necessidade, mas desdobra-se em várias incidências do infinito, inclusive este infinito negativo e impossível que não para de não acontecer.
Ninfomaníaca, o filme de Lars Von Triers é também um exercício estético sobre as modalidades do infinito. Ele caminha entre as três narrativas fundamentais sobre a sexualidade, do naturalismo descritivo que nos lembra as enciclopédicas 120 Jornadas de Sodoma e Gomorra de Sade, à investigação científica de Joe (Charlotte Gainsbourg) em torno de seu próprio corpo, que nos lembra os anatomistas do prazer, além do tratamento espontâneo e experimental de um sintoma sexual, qual seja sua súbita perda da capacidade de sentir prazer, o que nos faz pensar na experiência psicanalítica. Ela conta suas aventuras para Seligman (Stellan Skarsgard) mistura de psicanalista, estudioso da sexualidade e religioso assexuado. Assim como em Melancolia, Von Triers aborda a experiência do fim, do fim do mundo, do fim do desejo, agora em Ninfomaníaca ele estuda o que seria uma vida em estado de infinitude. Podemos dizer que Melancolia é um estudo em torno da substituição da hipótese repressiva pela hipótese depressiva.
Esta tematização do infinito não se restringe a trama entre os personagens e à estrutura da narrativa. Ela aparece como consequência direta da forma como Von Triers pensa os problemas da produção cinematográfica e da linguagem fílmica. Daí a relevância do filme para pensar uma sexualidade por vir. Daí a relevância de seu cinema para pensar nossa época que se vê às voltas com a produção de limitações que não podem depender apenas de restrições normativas, higienistas ou jurídicas. Basta pensar em questões análogas: que princípio nos fará parar diante da posse dos meios para destruir o planeta ou de recuar diante de uma catástrofe ecológica? Ou seja, por que parar se nada me impede? Lembremos os dez pontos que Von Triers e Thomas Vintenberg formularam, em 1996, como fundamento de seu programa estético-político conhecido como Dogma 96:
  1. As filmagens devem ser feitas no local.
  2. O som não deve jamais ser produzido separadamente da imagem ou vice-versa.
  3. A câmera deve ser usada na mão.
  4. O filme deve ser em cores. Não se aceita nenhuma iluminação especial.
  5. São proibidos os truques fotográficos e filtros.
  6. O filme não deve conter nenhuma ação "superficial".
  7. São vetados os deslocamentos temporais ou geográficos.
  8. São inaceitáveis os filmes de gênero.
  9. O filme final deve ser transferido para cópia em 35 mm.
  10. O nome do diretor não deve figurar nos créditos.
Os dez pontos do manifesto são restrições, limitações auto-impostas, suspensões do uso de recursos tecnológicos, de produção e de filmagem que estão disponíveis, mas que não serão usados. É uma forma de criar liberdade escolhendo seus limites. Muitos leram neste manifesto uma espécie de recuo regressivo a um naturalismo moral. Uma tentativa de associar novamente produção e linguagem fílmica. Uma crítica à excessiva divisão de tarefas, com autonomização das funções (fotografia, som, direção, direção de atores, etc). Uma indisposição antipática contra a ingerência genérica da força dos meios de produção (recursos tecnológicos, mobilidade de set, etc) no resultado produzido para o público. A ideia de que um filme deva colocar o montante do valor de sua produção como um “índice” de sua qualidade ou como parte de seu apelo ao consumo soava de forma brutalmente estranha aos partidários do Dogma-96. Por outro lado eles não queriam se contentar com uma espécie de retorno ao cinema de autor, que colocava o nome do diretor como ponto de convergência e unidade, que produziria, com o tempo, um traço de “vendabilidade” do filme.
O ponto de amarração da verdade não está nem no excesso da produção, duplamente representado dentro do filme e em seus meios de produção, nem na garantia oferecida pelo nome do diretor e sua suposta confiabilidade induzida pelo efeito obra. O problema que surge daí é muito mais interessante do que sua solução empírica. A ideia enfrenta o desfio que é o desafio ao capitalismo de nossa época: como não usar tudo de que dispomos? Como recuar diante de uma enunciação que não é bem um imperativo, do tipo “isto sim” ou “isto não”, mas uma espécie de falso silogismo irresistível: “se não há nada que proíba ... então se torna obrigatório”. Ou “se eu posso” então “eu devo”?
O filme de Von Triers segue de perto o esquema narrativo proposto pelo Marquês de Sade. Variação repetitiva de modalidades de prazer, com especial ênfase no sadismo e no masoquismo. Cena confessional com a figura do professor benevolente, mas assexuado, que lentamente vai sendo convencido e convertido libidinalmente. Evolução naturalística das formas de prazer, descritas como um processo de descobertas sucessivas, em torno de uma experiência enigmática ou a-sexuada, no caso, o gosto paterno por folhas e árvores. Indiferença, frieza e contratualismo institucional na abordagem discursiva da sexualidade, tratada com distanciamento memorialístico, científico ou moral. Pares de opostos são hierarquizados na construção de uma moral experimental: o natural e o artificial, o universal e particular, o necessário e o possível. É assim que chegamos, no segundo volume, ao discurso de que a Igreja Católica do Ocidente está para o sofrimento assim como a Igreja Ortodoxa do Oriente está para a felicidade. Lembremos que no concílio de Constantinopla, em 1054, decretou-se esta divisão, estabelecendo-se a partir de então dogmas. Lembremos ainda que o chamado cisma do oriente baseava-se na interpretação diferencial da origem a trindade. A querela “filoque” opunha os que achavam que o espírito santo provinha do pai (o um vem do um) e os que pensavam que o espírito santo vinha do pai e do filho (o um vem do dois). Estamos de novo diante de duas concepções sobre o infinito: o infinito entre dois, ou o infinito dado de uma vez.
De fato este é também o silogismo que se dissemina em nossa moral sexual pós-civilizada. Tudo o que não é proibido é permitido. E tudo o que é permitido pode ser levado ao obrigatório, até o abuso. O que nos leva a proliferação de interdições regulativas, de ordem médica, higienista ou educativa. Esta ideia de que a lei é nosso único limite é uma ideia muito limitada para nosso tempo. Basta lembrar o trabalho de Picketti, sobre a inanidade da ampliação da distribuição de renda, dentro da lei, nos últimos séculos, na maioria dos países do ocidente. Basta lembrar que a crise ecológica simplesmente não será enfrentada apenas com novas leis punitivas e restrições diretas ao uso dos meios. Basta lembrar a pobreza em que se expressa nosso debate sobre a liberdade de expressão. A liberdade de tudo dizer, sem consideração pelos meios de ampliação, de transmissão, de dominação do espaço público, é contraposta de forma brutal e massiva contra as restrições de censura, controle e manipulação de consciências. Tudo se passa como se deduzíssemos nossa liberdade apenas a partir do que não é proibido e como se localizássemos o proibido no Outro. Resultado, uma forma de vida que só consegue sofrer, e portanto, pensar sua liberdade encarcerada entre o possível e o não-possível (hipótese depressiva) ou acossada pela lei do necessário (hipótese repressiva). Nenhum lugar resta para a contingência. Como se a única liberdade fosse aquela deduzida da lei, mesmo que em escala invertida da lei do desejo, como argumentava Lacan até 1960. E aqui estaria a novidade da reflexão contida em Ninfomaníaca.
Quando Freud fala da sexualidade perverso polimorfa da criança ele não está se referindo apenas a sua dialética com a lei, nem à alternância entre possível e impossível, mas ao fato de que a relação primária com o prazer é contingente. Esta é a regra de formação da sexualidade. A perversão é o negativo da neurose porque a neurose é experiência determinada do prazer. Na perversão infantil é o prazer contingente, e sua experiência produtiva de indeterminação, que possui valor formativo.
Quem já atendeu pacientes em mania talvez concordará que existem três sinais inconfundíveis: a aceleração da velocidade da fala (ou da escrita), a impulsividade para o sexo e a propensão para o consumo. São casos muito difíceis, senão quase inabordáveis, porque justamente o tempo do para ouvir o outro é suprimido. O que se diz ao paciente é quase indiferente diante de sua marcha solitária e heroica rumo à exaustão. Mas o perigo nestes casos não está apenas nas situações embaraçosas ou na “conta” que pode aparecer depois, mas no ponto de inversão, no ponto em que o fósforo queima tão completamente que se apaga. O ponto em que passamos da Ninfomanía para a Ninfo-melancolia. Desta última poucos se queixam, tal a maneira como se dissemina em nossa cultura fabril e febril, o excesso de trabalho e de entretenimento. Esta vida sem sexo resolveu o problema foucaultiano da exegese infinita de si mesmo, da narrativa da carne e da culpa. Estaríamos assim curados de nossa compulsão a encontrar nossa verdade nos excessos e faltas da sexualidade. Desconfio que muitas das curas atribuídas a anti-depressivos devem ser realmente creditadas a certos efeitos ninfo-melancolizantes, induzidos de forma “colateral” pelos anti-depressivos. Não seria a primeira vez na história da medicina em que o colateral é o essencial. Pode ser estranho pensar assim, mas uma vida sem sexo pode ser uma vida muito mais eficaz, com muito menos conflito, maior desempenho narcísico e com muito maior adaptação social.
Mas o ponto crucial, e realmente novo no experimento de Von Triers não é obviamente a narrativa da recuperação da potência de prazer, por meio de giros masoquistas, nem mesmo a dependência crucial entre sexo e discurso, mas este enigmático ponto de inversão entre a Ninfomanía e a Ninfo-melancolia. Ponto a partir do qual se poderia entender o fim da história, como um ato inesperado que é e que intrigou mitos espectadores. Sem spoiler, posso dizer que se trata da aparição inesperada da contingência, e da superação da lógica, antes consagrada pelo experimento ninfomaníaco, que oscila do possível ao necessário.
Lacan abordou este problema da disparidade entre infinitos, no interior da sexualidade, recorrendo a duas teorias diferentes. O gozo fálico, comum a homens e mulheres, estaria organizado ao modo de uma série, no interior da qual procura-se um elemento comum. Uma série quer dizer que conhecemos sua regra de formação, e pensamos o infinito pela indeterminação de seu último termo, por exemplo, a série dos números naturais N= {1,2,3 ... n}. O gozo feminino, ou gozo Outro, não se organiza desta maneira, mas ao modo de uma “lista” com elementos que podem ser escolhidos aqui e ali, mas cuja regra de formação deverá ser estabelecida depois, se é que ele pode ser descrita. Isso pode ser ilustrado pelo conjunto dos números Reais, que englobam não só os números inteiros e os fracionários, positivos e negativos, mas também todos os números irracionais, por exemplo, R {0, 0.333.., 0.7, 1, Pi... n}. Os números Reais não possuem uma regra de formação, mas intercalam elementos cujas propriedades não se reduzem às de outros conjuntos. Tipicamente o problema do gozo fálico é que ele é formado por uma intersecção, por exemplo, entre conjuntos abertos, produzindo o que se chama de infinito contável ou infinito enumerável, desde que se introduza no próprio conjunto os seus pontos limites (teorema de Bolzano-Weierstrass).O gozo feminino não se faz por interseção, mas pela reunião de famílias de conjuntos abertos, com o qual se aborda finitamente a infinitude. Neste caso não se incluem os pontos limites na série. Com uma lista finita pode recobrir o infinito. Esta reunião de abertos em estrutura de lista corresponde a um segundo tipo de infinito (teorema de Heine-Borel-Lesbegue).
Ocorre que as mulheres possuiriam, de modo contingente, dois gozos: o fálico (como o dos homens) e o especificamente feminino (gozo Outro). O inconveniente, segundo Lacan, é que este segundo infinito só pode ser exprimir, em termos de linguagem, constrangendo-se às regras impostas pela lógica da série. Isso levou Geneviève Morel, uma estudiosa da teoria lacaniana da sexuação, a afirmar que os homens dependem de uma fantasia para gozar, ao passo que na sexualidade feminina a fantasia é sempre um tanto incompleta, inacabada ou manca. As mulheres, que não podem formar um conjunto unitário, pelos motivos antes examinados, encontram sua modalidade preferencial de inscrição discursiva da sexualidade no mito. Narrativas como a de Don Juan, são compreensíveis como um mito, ou seja, uma articulação lógica entre inúmeras fantasias. Entre gozo fálico (enumerável) e gozo feminino (não enumerável) não há continuidade, mas ausência de relação previsível. Por exemplo, se encontramos o número “3” podemos tomá-lo como elemento da série dos Números Naturais ou elemento da lista dos Reais. É apenas uma contingência que ele pertença a ambos.
Ninfomaníaca é um ensaio sobre a liberdade infinita, sobre os modos de uso do corpo para além das restrições de segurança, da exaustão dos corpos (velho tema sadeano) e da hermenêutica da proibição. Entre o infinito representado pela relação entre liberdade e lei, infiltra-se o infinito do infinito, representado pelo registro da potência e da impotência. E é exatamente com relação a este segundo infinito-ruim que se articula a narrativa de sofrimento que articula o filme: o momento em que Joe se questiona o que há de errado com a sua “boceta”. Momento que sucede a maternidade e no interior do qual ela percebe que este é um órgão sem corpo.

Podemos agora lançar nossa hipótese. Não seria possível que este ponto de exaustão, o limite da prática sexual, o momento de conversão da Ninfomania em Ninfo-Melancolia, o acontecimento de um ponto de liberdade, entre o possível-necessário e o contingente? Não seria esta a mais trágica experiência que poderíamos supor em matéria sexual? A ninfomania pára de se escrever. Joe, apesar de ter se dedicado de forma análoga ao mito de Sade, este sim um mito masculino, a uma série infinita de encontros, talvez não estivesse procurando apenas a razão de formação desta série, o traço unário que reuniria todos os homens. Sua saga não teria a estrutura da corrida de Aquiles contra a tartaruga, que tenta nomear os pontos infinitos e infinitesimais que separam o Um do Outro, mas a estrutura de uma perda infinita do objeto. Se isso é verdade ao contar sua história para Seligman ela passa do infinito masculino ao feminino, ainda que depois se veja obrigada a desfazer a totalidade assim constituída. Neste caso sua aventura pode ser o prenúncio de uma sexualidade além do possível e do necessário. Outro tipo de verdade para a coisa sexual.
Trailer do filme
Christian Dunker é Psicanalista, Professor Livre Docente do Depto de Psicologia Clínica-IPUSP, Analista Membro de Escola da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano, Membro da Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental, Doutorado (IPUSP) e Pós-Doutorado pela Manchester Metropolitan University (UK). Autor de vários livros, entre eles o vencedor do Prêmio Jabuti 2012: “Estrutura e constituição da clínica psicanalítica: uma arqueologia das práticas de cura, psicoterapia e tratamento” (ed. Annablume, 2011).

domingo, 1 de fevereiro de 2015

Sonata de Outono : uma relação perigosa

de Henrique Senhorini
 
Não, não estou misturando os filmes, porém a relação entre Charlotte e Eva, apresentada por Bergman em seu belíssimo representante da Sétima Arte, me remeteu ao título de um outro, pois é mais que uma relação conturbada. Muitas vezes é uma relação perigosa mesmo.
   E não estou falando isso só pelo que assisti no filme, mas sim pelo que escuto também na clínica, com pequenas variações da fala de Eva: “meu obstáculo maior é eu não saber quem eu sou” e também “se alguém me amar do jeito que sou, talvez eu finalmente me arrisque a olhar para mim mesma”. E, em alguns casos clínicos, fico com a impressão que este tipo de relação mãe e filha é mais que o outono bergamaniano, onde não só as folhas caem, mas também os véus, as máscaras, os semblantes que usamos em muitos momentos como tentativas de tamponar a falta, como protetores das nossas próprias feridas narcísicas para não ficarem tão expostas ao público e até de nós mesmos. Dá a impressão que o sofrimento que vem na clínica está mais para o clima do deserto, onde os dias são desoladamente quentes e as noites impiedosamente frias, onde a possibilidade de alguma coisa nascer, crescer - desde uma flor até o amor - é consideravelmente remota. Uma catástrofe! Uma devastação!
          E essas são, pela ordem, expressões utilizadas por Freud e Lacan à se referirem a relação entre mãe e filha. Freud utiliza este termo em 1931, no seu artigo “Sexualidade Feminina”, quando menciona a imensa e tensa relação ambivalente de amor e ódio que marcam a ligação da menina com sua mãe, na sua fase anterior ao Édipo, na famosa fase pré-edipiana, de forma intensa: “A transição [da mãe] para o objeto paterno é realizada com o auxílio das tendências passivas, na medida em que escaparam à catástrofe” (Freud, 1931)
          Já Lacan usa o termo devastação em “O Aturdito”, de 1973, com todo cuidado e respeito ao pai da psicanálise, quando diz: “Por esta razão, a elucubração freudiana do complexo de Édipo, que faz da mulher peixe na água, pela castração ser nela ponto de partida (Freud dixit), contrasta dolorosamente com a realidade de devastação que constitui, na mulher, em sua maioria, a relação com a mãe, de quem, como mulher, ela realmente parece esperar mais substância que do pai – o que não combina com ele ser segundo, nessa devastação.”
Quer dizer que há algo da mãe que é não-todo apreendido pela lei simbólica, pela metáfora paterna, pela castração, diferente do todo-falocentrismo freudiano.
           Freud, até por ser de uma época mais moralista, mais vitoriana e marcada fortemente pelo patriarcado e monoteísmo (já houve uma época do matriarcado e de mulheres como deusas) que exercia uma influência imperialista - e ainda exerce até hoje - sobre a sociedade, tentou, mas não conseguiu, fazer da mulher mais um peixe na água, como os outros peixes do oceano falocêntrico. Porém, diferentemente dos peixes comuns, a mulher vai além do só nadar, além do gozo fálico.
          Lembremos que há também um tipo de peixe - o peixe voador – que, além de nadar, voa. Trata-se de um peixe que possui uma espécie de par de asas que permite que ele consiga planar por 45 segundos acima do nível do mar, além de nadar dentro d'água como os demais peixes do oceano.
          Assim é a mulher com seu gozo feminino, um gozo suplementar, justamente por estar não toda na função fálica. Isto a faz ter acesso a um outro gozo, o gozo do Outro, o gozo suplementar. E foi essa diferença entre gozos e não entre sexos que permitiram Lacan, com muito esforço e com o máximo rigor teórico, ampliar para além do falo a obra gigantesca iniciada por Freud, promovendo grandes contribuições para a Psicanálise e avanços, através de suas construções teóricas e clareando o enigma da feminilidade. Através de sua matematização da Psicanálise, de sua teoria da sexuação, ele ordenou esta, a sexuação, para todos os seres falantes e isso é somente um dos grandes exemplos desses avanços.
           Então, a mulher, além do gozar na ordem fálica, tem um gozo suplementar justamente por ser não-toda inscrita na metáfora paterna e não ter o falo como significante da falta, o significante do desejo do Outro. Por isso há uma classe de homens, mas não há uma classe feminina. As mulheres, portanto, “são únicas e só podem ser contadas uma a uma” (Valdivia,1997). Não há mulher “artigo definido” para designar o universal, pois não há um significante nela que lhe seja específico, diferente dos homens.
          Será por isso, por ser homem e consequentemente inscrito na ordem da universalidade através do falo, que também fico meio atordoado com esse tipo de relação que não escuto na minha clínica entre um homem e sua mãe? Uma relação que não ata e nem desata, que não autoriza a filha a se autorizar ser mulher e nem abandonar (não fisicamente) sua mãe a favor de uma vida própria, uma vida com tudo que ela já representa e pode vir a representar mais ainda? O que será que prende essas mulheres nessa posição de refém, posição de sequestradas de si mesmo, até de seus próprios corpos e que não prende os homens da mesma forma? Seria a face oculta de um amor, de um deus?
          Há pacientes, não as mulheres, que também tem mães Charllotes e pais invisíveis como o de Eva, mas não ficam presos como elas, como as Evas. Aliás, existem várias Charlottes cujos filhos não encontram o lugar que gostariam de ocupar no desejo da mãe. Temos ciência, através de Freud, que em se tratando de histórias familiares, não há infância feliz e, apesar do esquecimento, são histórias de desespero, principalmente em relação à mãe, visto que primeiro objeto de amor é justamente ela ou quem ocupa seu lugar. Porém outros objetos surgirão, o que não significa que ficaremos livre do primeiro, pois o segundo, terceiro..., assim por diante, “carrega as marcas do Outro primordial concernido na primeira demanda de amor”, de acordo com Colette Soler (2012). E quem é o Outro primordial nas nossas vidas, assim como na vida de Eva? É a mãe. Portanto, o amor é repetitivo, como demostrou Freud. Nas palavras de Soler, “um amor repete-se num outro”. E todos nós, no mínimo neuróticos, passamos por isto.

abre-se um parênteses aqui
E sobre os infortúnios da infância, para quem quiser ler mais a respeito, há uma página dedica ao tema no texto freudiano “Além do Princípio do Prazer” de 1920.
fecha...

... Para as Chalottes da vida, os filhos são, também, praticamente invisíveis ocupando um lugar que eles consideram de menos valia. E, algumas vezes, essas Charlottes introduzem seus filhos na ordem simbólica também pela via da devastação, através da rejeição, dos insultos e até mesmo pelo silêncio, quase do mesmo modo como assistimos por meio de Eva.
          E como uma das consequências possíveis, a consagração da “crença inabalável na onipotência de um Outro não castrado, de uma mãe que escapa à falta da castração” nas palavras de Marie-Hélène Brousse (2002). Bem, sabemos que esse tipo de consagração, de tornar sagrado, de se oferecer a divindade Mãe também acontece com neuróticos e neuróticas, portanto não é uma exclusividade das meninas. Porém, parece que é aí mesmo - como Freud já havia indicado em “Feminilidade” de 1933 - nesse período pré-edipiano da relação com a mãe, que as meninas (algumas), diferentes dos meninos, tem um encontro com algo do Real (a queda de um semblante pode provocar esse encontro) que as marcam como sulcos, como cicatrizes na alma que parecem permanecer por quase toda uma vida. Cicatrizes estas que uma experiência de análise podem não removê-las, mas podem transformá-las em cicatrizes de cirurgias plásticas, com aqueles pontos quase imperceptíveis.
          Não que os meninos não sejam afetados por essas Charlottes também, porém dão a impressão que absorvem e ou lidam com as marcas de um jeito diferente. O que os protegem? Talvez, o falo como significante, a identidade, o traço unário. Mas, as marcas também são diferentes nas meninas, parecem muita mais profundas, quiçá por não ter um significante que as represente e as protejam das mães fálicas, das mães Charlottes.

abrindo outro parênteses
Em seu artigo intitulado “Mãe e Filha – Da Devastação E Do Amor”Cristina Marcos(2011) sobre isso diz: “É no romper do semblante que algo do gozo se evoca como um desgaste, uma erosão que marca um território. É na queda dos semblantes que a devastação se dá a ver revelando um gozo opaco, refratário à ordem simbólica. Devastar é tornar deserto, despovoar, remetendo a uma destruição completa, a um aniquilamento.” E, ainda de acordo com autora, “a devastação provém de um defeito que tocou a palavra".
fecha parênteses

É... Bem que eu poderia recorrer aos poetas como Freud recomenda, mas suponho que de forma chistosa, para tentar saber algo mais sobre o enigma da feminilidade. Pois os meninos não se atrelam, não se aprisionam da mesma maneira que algumas meninas neste tipo de relação tão bem representado em Sonata de Outono apesar de alguns, como já mencionei, passarem por algo próximo das meninas, como o de não reconhecer seu lugar no desejo da mãe, de uma mãe não-toda castrada como Charlotte. Ah... e isto não quer dizer que se trata de uma psicose, pois ela está inserida na ordem simbólica pelo Complexo de Édipo, pela Lei do Pai, pelo Complexo de Castração, que tem funções normativas e normalizadoras. São estruturantes do e no Sujeito. Elas, as Charlottes, também tem a metáfora paterna como ponto de ancoragem como todos os neuróticos ditos normais.
           Entretanto, algumas meninas - como a representante bergamaniana – sofrem como Eva e algumas, mais ainda. Não conseguem avançar na vida, além da vida prática. Conquistam a condição do trabalhar, mas não do amar. Muitas vezes, dá até a impressão que conseguem ficar aquém da condição de desejante, presas como objeto do Outro, apreendidas pela repetição. Para quê? Tentativas que em algum momento a mãe possa reconhecê-la, nomeá-la, dar-lhe consistência e inscrevê-la no registro da troca através de um significante que a represente? Ou, na fantasia, ficam esperando alguém que faça isso, que as retirem desse lugar marcado pela impossibilidade do amor? Ou, ainda, aguardam uma autorização materna para ter acesso ao gozo feminino? Permissão para amar além de trabalhar (o que não é pouca coisa) ? Ir além até dessas conquistas?
          Bem, uma mudança de posição subjetiva é a perspectiva de um dos principais fins da experiência de análise. E o sujeito desidentificado é um sujeito mais livre das limitações impostas, pela repetição, as suas escolhas de objeto, possibilitando a abertura de um leque maior de opções, uma maior “variedade de encontros”.
Como diz Colette Soler (1998), “des fins... de l'amour”.

Trailer do Filme
Link para assistir o filme completo:
https://www.youtube.com/watch?v=SGfD4fZFn1w