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terça-feira, 7 de novembro de 2023

O que pode a vida diante do horror ? "Assassinos da Lua das Flores"

de Vera Iaconelli


Nos subterrâneos de Marte, a memória da Terra será nossa eterna tortura.



As imagens de extrema violência que nos chegam pelas mídias são tidas como atos perpetrados por sujeitos desumanos. Da mesma forma, a vítima, para ser eliminada sem dó nem piedade, precisa ser vista como um objeto, pois só assim ela é passível de ser destruída sem culpa. Desumanização da vítima e do algoz são condições da barbárie perpetradas pelos cidadãos do bem.

Em "Assassinos da Lua das Flores", Martin Scorsese retrata uma situação assombrosa e verídica. Pode um marido apaixonado conciliar o amor com a destruição da família da esposa e até da própria amada? Curiosos são os desígnios do desejo humano que o diretor octogenário tem a coragem de sustentar. Existem muitos "amores" e alguns talvez não merecessem receber esse nome, mas quem somos nós para bater esse martelo?

Molly, nativa da etnia osage, é amada por seu marido, como se ama um adorado animal doméstico, cuja perda seria dolorosíssima, mas não impensável. Nada que uma nova esposa não resolva. Obviamente não se trata de ela ser vista como um semelhante estrito senso, mas de ser um sujeito de segunda classe, por quem até se sente amor, mas que na hora do aperto pode ser eliminado. O aperto aqui é a ganância para herdar o dinheiro dos nativos osage, donos de terras encharcadas de petróleo. Daí os casamentos inter-raciais comuns na época e os assassinatos decorrentes, que o livro e o filme denunciam.

Ao vermos a vilania humanizada lembramos dos casos aparentemente incompreensíveis nos quais se destrói o ser amado sem dó nem piedade por motivo torpe. A mulher infiel, o filho gay, a filha trans, a amante grávida… são aqueles que se atreveram a contrariar o desejo dos que diziam amá-los.

Não é sem relevância que o personagem de Leonardo DiCaprio —um bom ator, mas que ainda se atrapalha nas caretas— tenha acabado de vir da 1ª Guerra Mundial. Como em toda guerra, inocentes são violados, mortos e mutilados em nome da patriotada fundamentalista bancada por governos que só querem saquear seus vizinhos sem nunca pisar no front. São eles que darão as mãos em acordos de paz escusos, depois de terem destruído gerações (recomendo assistir ao bem feito e polêmico "Golda"). Daí, para o personagem massacrar os osages —a outra "raça"— é só um palito.

A história da humanidade é por demais eloquente para que acreditemos que haveria um povo melhor do que outro. Somos todos capazes de amar e de cometer os piores crimes. O governo que não comete atrocidades —contra seu próprio povo ou contra os demais— que dê um passo à frente.

Testemunhamos, no entanto, a existência de povos mais sábios e de povos mais toscos quando se trata da sobrevivência coletiva e da visão de futuro. Nossa cultura, infelizmente, é aquela que caminha para a autodestruição com um sorriso maníaco nos lábios. Os subterrâneos de Marte nos espreitam e os que lá chegarem terão a lembrança da exuberância da Terra como eterna tortura.

O último livro de Paul Preciado, "Dysphoria Mundi: o som do mundo desmoronando" (Zahar, 2023), aposta numa insurreição pacífica e inescapável de todos os que se veem à margem por não corresponderem ao diminuto círculo dos considerados humanos. Segundo o autor, os últimos não serão os primeiros, porque é a própria lógica hierárquica que deve desmoronar.

O que nos mantém resistindo ao pior em nós? Está aí uma pergunta que só pode ser respondida um a um. No meu caso, trata-se de uma obstinação em lidar com o estranho em mim, que cria efeitos de interesse pelo humano.

Além disso, resisto porque prefiro a Terra.


Vera Iaconelli é diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, autora de “O Mal-estar na Maternidade” e "Criar Filhos no Século XXI". É doutora em psicologia pela USP.


pulicado originalmente na folha de são paulo- 7. nov. 2023 

trailer


terça-feira, 25 de janeiro de 2022

A FILHA PERDIDA - é impossível ter ou ser a boneca da mamãe

de Vera Iaconelli


A primeira cena do 
filme "A filha perdida" de Maggie Gyllenhaal (2021) mostra Olivia Colman no papel de Leda indo passar férias na costa grega, deleitando-se com a brisa marinha e com a paisagem. Nada que lembre uma mulher de meia-idade amargurada e solitária, como alguns sugeriram equivocadamente. Trata-se de uma professora universitária, cujas filhas adultas foram morar com o ex-marido, no Canadá. É nesse cenário idílico, no qual fica evidente o prazer que a protagonista extrai de suas leituras, do mar e do sol, que se dá o encontro disruptivo com outra família. Aquela que no livro homônimo de Elena Ferrante se parece desconfortavelmente com a família na qual Leda nasceu.

A protagonista passa a observar atentamente a relação de Nina e Elena, mãe e filha pequena, no meio daquela família ruidosa. Num dado momento, a criança perde sua boneca, que Leda esconde ao invés de devolver.

A reação inconsolável da menina revela que se trata daquilo que Winnicott chamou de objeto transicional (imortalizado no inseparável cobertor de Linus, amigo do Charlie Brown). Objeto que para a criança está profundamente relacionado com o processo de separação da mãe (ou cuidador principal) e que será uma extensão do corpo desse cuidador.

Ao se envolver na intensa relação entre mãe e filha, Leda se vê às voltas com o fato de que, quando suas filhas eram pequenas, ela desapareceu por três anos.

Quando Nina lhe pergunta como foi tê-las abandonado, a protagonista responde que foi maravilhoso, com uma expressão tão ambígua que já valeria o Oscar a Colman. Realizar o desejo pode ser desesperadamente maravilhoso, afinal, não se deve confundir desejo com vontade. A vontade é consciente e costuma responder aos imperativos sociais aos quais nos alienamos. Já o desejo se impõe, muitas vezes à revelia da sensatez. Podemos realizá-los ou não —aqui a ética é o nome do jogo—, e sofreremos as consequências seja qual for a escolha.

A mãe de Leda, assim como Nina, desistiu dos estudos, dependia do marido financeiramente e cuidava sozinha dos filhos. Leda desprezava a mãe, pela condição inferiorizada e pelo distanciamento afetivo. Ela paga o preço de ter escolhido deixar as filhas, diferentemente da própria mãe, que as ameaçava por ressentimento, mas nunca se foi.

O drama não se desenrola apenas do lado da relação com as filhas que Leda deixou mas, principalmente, da relação da protagonista com a impossibilidade de se separar da própria mãe de uma forma satisfatória.

A boneca, que representa o espaço entre mãe e filha, costuma ir desaparecendo aos poucos, deteriorando, sendo esquecida em um canto. Elena estava fazendo justamente isso ao perdê-la na praia.

A boneca que Leda ganhou da mãe quando criança, ao contrário, foi meticulosamente guardada para as filhas. Acabou destruída num rompante de ódio diante de sua maternidade frustrante.

O horror às escolhas da mãe e a esperança de fazer "tudo diferente com as filhas" impediu que ela descobrisse formas mais desejantes de lidar com sua maternidade.

Filme e livro exploram a maternidade em dois níveis. Naquilo que ela tem de inevitável: a impossibilidade de nos tornarmos bonecas idealizadas de nossas mães e tampouco de termos filhas-bonecas. Nesse ponto, as separações são tão dolorosas, quanto necessárias.

Em outro nível, os discursos atuais sobre a maternidade que continuam a ignorar anseios femininos —de equidade, sexo, carreira e liberdade— se mostram insustentáveis e tendem a respostas disruptivas.

Diante de tanto abandono, não são poucas as mães desejosas de "sair pra comprar cigarros".


Vera Iaconelli é diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, autora de “O Mal-estar na Maternidade” e "Criar Filhos no Século XXI". É doutora em psicologia pela USP.

Fonte: Folha de S.Paulo - 24.jan.2022 às 8h05 - https://www1.folha.uol.com.br/colunas/vera-iaconelli/2022/01/a-filha-perdida.shtml

Postado com a autorização da autora.

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domingo, 30 de agosto de 2020

PANTERA NEGRA - Branca em filme de preto

de Vera Iaconelli

fonte: Folha de S.Paulo - 13.mar.2018 às 2h00*

Como seria criar duas branquelas com capas de revista negras, modelos negras, bonecas negras?

Já faz 20 anos que eu crio duas branquelas. Nada mal quando se vive num país de brancos. Circulamos entre espelhos o tempo todo. Os âncoras de jornais são brancos, as capas de revista são brancas, as top models são brancas, a gigantesca parede de brinquedos é de bonecas brancas, os colegas da escola e os professores são brancos, políticos, atores e atrizes também. É claro que temos a cota racial. Um negro (servindo), um oriental (um tanto deslocado) —e, talvez, um índio?— aqui e acolá. 

Nossa pele clara, nosso cabelo liso, nossos olhos claros. Como somos lindas!

E eis que minha filha chega do cinema radiante, depois de assistir "Pantera Negra" —filme que está dando margem a um movimento político de autoafirmação dos negros estadunidenses. Independentemente da história mirabolante e quase sempre patética dos "blockbusters" do gênero, o filme é um marco: consegue, sem falar de escravidão ou da condição racial, colocar o negro como protagonista de uma história de super-heróis. Questão política de quem vem ocupar seu lugar sem ter que pedir licença. Dentro disso, a estética faz sua marca: os cabelos, os tons de pele, a derme grossa sem defeitos (a celulite tão conhecida da mulher branca), as roupas, lábios, músculos. A beleza é negra! Só faltou dizer, maldito DNA de branco!

Crio, já faz 20 anos, duas branquelas e antes disso fui eu mesma criada entre brancos —num país majoritariamente negro (pode apedrejar)-- onde um filme como esse não era pensável e nem as cotas existiam. 

Invertamos a fita. Como seria tê-las criado com âncoras de jornais negros, capas de revista negras, top models negras, a gigantesca parede de brinquedos de bonecas negras, colegas da escola e os professores negros, políticos, atores e atrizes também? Sim, a beleza seria negra. E sairíamos correndo a encrespar os cabelos, colocar turbantes, torrar no sol (não para parecer que temos acesso a férias num iate, mas em busca da cor certa), aumentaríamos os beiços e alargaríamos o nariz com cirurgias plásticas. Desde que o mundo é mundo, virtudes e vícios são associadas à raça, à condição social e ao gênero —associação repetida à exaustão a cada oportunidade que apareça. Em "Pantera Negra" a virtude, a paixão, o sexo, o poder, a inteligência, a força, a ética, a maternidade, a honra é negra, invertendo o lugar recorrentemente associado às pessoas brancas.

Também fica evidente no filme o lugar da mulher na fictícia e idílica Wakanda, onde se passa a história: a guarda real é feminina e as protagonistas femininas não são secundárias. Bingo outra vez.

Lembramos que o filme não é brasileiro. Porque para realizar tal aposta, há que se ter mais do que uma forte indústria cinematográfica. Há que se admitir que a questão racial está encoberta pela cordialidade e pelo mito da miscigenação espontânea brasileira. Povo mestiço e feliz que estaria sendo envenenado pela ideia de racismo. Teremos que ser super-heróis para encarar e lidar com nossos problemas históricos e sociais?

Quando vemos jovens negros brasileiros paulatinamente assumindo sua beleza, seus cabelos, traços, história e costumes, estamos apenas presenciando uma moda entre outras ou estamos vendo mudar o eixo de nosso velho mundo em nova direção? Façam suas apostas. 

(*postagem autorizada pela autora)

Vera Iaconelli é Psicanalista, Mestre e Doutora em Psicologia pela USP, Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, membro de Fórum do Campo Lacaniano SP, coautora do livro: “Histeria e gênero: o sexo como desencontro” (Editora nVersos, 2014), autora do livro: “Mal-estar na maternidade: do infanticídio à função” (Annablume, 2015) e “Criar filhos no século XXI” (Contexto, 2020), Diretora do Instituto Gerar, colunista da Folha de São Paulo.

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