quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

EU, MAMÃE E OS MENINOS : Dizer-se homem ou mulher, eis a questão

de Marisa De Costa Martinez

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Eu, mamãe e os meninos (Les Garçons et Guillaume, à table!) é um filme autobiográfico, premiado na França. O ator interpreta ele mesmo e sua própria mãe. Dado bem interessante, pois tem tudo a ver com a história do filme, o qual apresenta a questão da escolha sexual e do dizer-se homem ou mulher. Em que medida os sujeitos fazem suas escolhas ou são determinados pelo desejo do Outro?
O título original do filme é o grito da mãe: “Os meninos e Guillaume para a mesa!”, deixando claro logo de saída a forma como sua mãe lhe tratava, diferentemente de seus dois irmãos mais velhos – os meninos. Apesar do grito aparecer em apenas uma cena do filme, ele faz jus ao título por representar precisamente sua essência, qual seja, o desejo materno. Com a psicanálise, podemos pensar o quanto somos condenados pelo discurso dos pais. Será? Talvez possamos dizer com o filme que somos não-todos efeitos do desejo do Outro parental.
A teoria lacaniana apresenta que há alteridade na constituição do sujeito. A essência do ser humano é justamente constituir-se pelo Outro, no inconsciente. De que maneira o Outro influenciaria quando um sujeito diz-se homem ou mulher? O enredo do filme é justamente sobre o impasse do sujeito diante do desejo de sua mãe. Ela, mãe de três filhos, desejava ter uma filha menina. Isso fica claro não só a partir do título do filme, mas também pelo diálogo inicial entre mãe e filho, em que Guillaume diz: “Mamãe, dei de cara com meu primeiro amor hoje! Lembra da Ana?”, sua mãe responde: “Como ele está?”. Não precisamos dizer o quanto esses lapsos representam um desejo inconsciente. Guillaume chega a dizer que o único que não queria que ele agisse como menina era o seu pai, e conta: “Mamãe só compra roupas de menino para mim para que papai não fique bravo”. Esse não o queria alienado ao desejo da mãe. O filme então se segue com inúmeras tentativas frustradas do autor responder desse lugar em que é colocado. Inclusive uma pessoa cai no erro de dizer-lhe que deveria experimentar relacionar-se com homens a fim responder sua questão sobre ser homem ou mulher, já que ele – adulto – nunca tinha se relacionado com ninguém.
No decorrer do filme não fica claro se Guillaume considerava-se menino ou menina, evidenciando assim o seu conflito. Embora possua trejeitos deveras afeminados: anda, fala, gesticula como sua mãe ao passo que repudia os esportes viris que tanto atraem seu pai e irmãos. A dúvida nos leva a pensar em uma estrutura neurótica, já que ele demanda o tempo todo ao Outro as seguintes questões: “O que quer de mim?”, “Quem sou eu?”. Exemplo disso é a cena em que uma moça espanhola nega-se a dançar com ele a sevilhana, pois a dança seria para dançar com homens e não entre duas mulheres. Imediatamente Guillaume questiona-lhe se ele parece com uma mulher ao que ela responde positivamente. Ele, então, conclui que sua mãe adorará saber disso! O protagonista tem sua voz confundida com a de sua mãe inúmeras vezes: por sua avó materna, pela cozinheira e por seu pai. Guillaume, em uma fixação, não só imitava os trejeitos de sua mãe, como a idealizava na mesma proporção, dizendo: “você é sempre linda! (...) Minha mãe é maravilhosa (...) Confesso que ela não tem nenhum defeito!” É como se ele nos dissesse que é preciso que um homem se afaste de sua mãe para se aproximar de uma mulher. Nesse sentido, entendemos que “Primeiramente, para tornar-se homem, o menino deve separar-se, em maior ou menor medida, da fixação ao objeto materno. Tanto é assim que tal fixação será diretamente proporcional ao obstáculo que encontrará no momento de se relacionar com as mulheres”. (MONSENY, 2004, p. 90). Nas palavras de Lacan: “Que uma mulher, aqui, só sirva ao homem para que ele deixe de amar uma outra” (1972/2003, p. 469), neste caso, a mãe.
Em outra passagem do filme fica nítida tamanha alienação ao desejo materno, quando em sua pergunta sobre o que o Outro materno quer dele, depara-se com a irritação de sua mãe. Não entende como ela não está feliz se ele é uma menina como ela, mas, sobretudo, como ela desejava. Pensa então que deve ser porque ele se parece demais com ela. Assim, para deixá-la feliz, passa a observar todas as mulheres com suas singularidades e admirá-las por isso – uma a uma – quando se dá conta que A Mulher não existe. Desta forma, Guillaume começa a abandonar sua posição de falo para sua mãe, e além disso, passa a gostar das mulheres. Cito novamente Monseny: “para que um homem goste de uma mulher é preciso gostar antes das mulheres” (2004, p. 96).
Em alguns momentos Guillaume parece ser convencido de que é uma menina. Ao chegar de férias, em casa, chora na presença da mãe pois estava apaixonado por um rapaz que gostava de uma garota. Com dificuldade, sua mãe lhe diz que há de existir outros homossexuais, meninos que gostam de meninos e são felizes. Por uma questão lógica, ele conclui surpreso que para ser homossexual era preciso inicialmente ser homem, enfrentar o medo que tinha de cavalos e servir ao exército. Nesta cena, ineditamente, sua mãe o nomeia como menino. Assim, o desejo da mãe de ter uma filha, por fim, desencadearia que seu filho caçula fosse visto como homossexual também por todos – terapeuta, colegas de escola e irmãos.
O impasse da sexualidade fora relacionado, tanto por Freud quanto por Lacan, à histeria. Nosso interesse aqui não é realizar um diagnóstico estrutural de Guillaume, até porque não se trata de um caso clínico. Nossa intenção é discorrer sobre algumas contribuições teóricas importantes para a análise do filme. Freud em “Fantasias histéricas e sua relação com a bissexualidade” lembra de uma paciente histérica, a qual de um lado tentava cobrir-se segurando seu vestido como mulher, enquanto por outro lado tentava arrancá-lo como homem. Freud diz que existe uma disposição bissexual que é humana. Exemplo disso é o que ocorre na masturbação, quando em uma mesma fantasia estão presentes sentimentos tanto do homem quanto da mulher. O autor conclui: “No tratamento psicanalítico é extremamente importante estar preparado para encontrar sintomas com significado bissexual” (1908/2006, p. 154). Nesse mesmo sentido, Freud adverte em outro texto que a atividade auto-erótica das zonas erógenas são idênticas em ambos os sexos e retoma a temática da bissexualidade afirmando: “Desde que me familiarizei com a noção de bissexualidade, passei a considerá-la como o fator decisivo e penso que, sem levá-la em conta, dificilmente se poderá chegar a uma compreensão das manifestações sexuais efetivamente no homem e na mulher”. (1905)
Lacan, por sua vez, afirma que não haveria nada no psiquismo “pelo que o sujeito se pudesse situar com ser de macho ou ser de fêmea” (1964/1988, p. 194). Deste feito, cada sujeito deverá constituir-se e construir a partir de sua cadeia de significantes sobre sua escolha sexual e seu modo de gozar.
Além disso, o filme coloca a questão do que é a verdade para a psicanálise. O fato do filme ser um relato autobiográfico, isto é, baseado em fatos reais, não implica em ser um documentário. Fato esse que o deixa ainda mais interessante: o filme tal qual a realidade psíquica engendram uma verdade ficcional.
Faz-se necessário ainda apresentar o final do filme: Guillaume telefona a uma amiga para ir à casa dela. A mesma diz que receberá somente suas amigas mulheres para um jantar. Com essa resposta, sua amiga já o coloca no grupo dos homens. Apesar disso, ou justamente por isso, ele insiste e vai ao jantar. Naquela noite, surpreendentemente, ele tem um bom encontro com o amor de sua vida, segundo ele “a mulher mais linda do mundo”, curiosamente na mesma noite em que sua amiga inverte a mensagem de sua mãe, chamando-os para jantar: “Meninas e Guillaume para a mesa!”. Quinet lembra-nos que posição sexuada e escolha de objeto são de âmbito totalmente distinto (2013, p. 133). Estar na posição feminina ou masculina é uma coisa, ter um homem ou mulher como objeto sexual é outra”. A posição sexuada nos diz de um elemento todo fálico ou um elemento não-todo fálico. Deste modo, Guillaume pode ter uma posição não toda-fálica e mesmo assim ter uma mulher como objeto de escolha amorosa. Não são esses descompassos que vemos na clínica o tempo todo?
Alguns críticos colocam o final do filme como uma heteronormatividade forçada. Com Lacan, prefiro pensar paradoxalmente que uma escolha mesmo que forçada é sempre uma escolha. Assim sendo, podemos escolher por algo diferente do que o Outro espera. Em psicanálise, não pensamos pela lógica de causa e efeito, mas sim em sujeitos responsáveis por sua sexualidade, seja ela homo ou heterossexual, que podem escolher por responder tal e qual desejam dele, ou não. Escolher de forma oposta ao desejo de seus pais, seria continuar preso a ele? O outro lado da mesma moeda? Mais do mesmo? A esse respeito, Lacan nos lembra no seminário 11: “as vias do que se deve fazer como homem ou como mulher são inteiramente abandonadas ao drama, ao roteiro, que se coloca no campo do Outro. [...] o que se deve fazer como homem ou como mulher, o ser humano tem sempre que aprender, peça por peça, do Outro. [...] A sexualidade se instaura no campo do sujeito por uma via que é a da falta” (p. 194). No entanto, como ser homem ou mulher é um enigma que não pode ser respondido pelo Outro. Assim, somos levados a permanecer com nossa hipótese de que a escolha é cada sujeito. Até porque não há ninguém com uma “sexualidade bem resolvida”. Por isso que o Outro não responde ao sujeito. Sequer ele tem a resposta. Nesse sentido, seja o sujeito, seja o Outro, homem ou mulher, somos sempre seres faltantes. Não é esse o legado de Freud com sua teoria da castração?
Deste modo, a falta de resposta do que é ser homem ou mulher aponta para o mal-entendido do discurso. Daí a escolha do tema dizer-se em detrimento do ser homem ou mulher. Colocar a escolha do sexo como inerente ao dizer é aproximá-la de sua estrutura de linguagem e portanto afastá-la da ordem de um naturalismo biológico. É justamente por ser de ordem simbólica que a sexualidade dá margem à dúvida. Assim, a psicanálise “enquanto experiência e enquanto ética do bem-dizer, parte do princípio de que o sujeito tem algo a dizer que ninguém mais poderia dizer em seu lugar” (JORGE, 2013, p. 26). Assistindo ao filme pudemos escutar o desejo de Guillaume, que foi para além do desejo de sua mãe. Guillaume ensina-nos que é possível não se render ao imperativo desejo do Outro. Porém, sua mãe não fica muito feliz com isso. E questiona-o ao saber de sua escolha: “100% hetero?”. Diferentemente, em psicanálise sabemos existe uma disposição bissexual humana (1908/2006). Portanto, a propaganda do desodorante com partículas de cabra macho nos enganou: o homem homem, não existe!
O fato de haver uma escolha subjetiva sexual tira o sujeito de seu lugar de vítima do desejo de seus pais. Essa é a ética da psicanálise, a qual “lida com o sujeito responsável. A primeira retificação subjetiva, portanto, a ser feita para com todo sujeito hétero ou homossexual é implicá-lo em sua forma de gozo e fazê-lo responsável por sua sexualidade” (QUINET, 2013, P. 131).
Lacan, em Instancia da Letra, ao inverter o algoritmo saussuriano, faz uso não apenas da famosa árvore, mas também de duas portas com letreiro: homem e mulher. Deste modo o autor discorre sobre a soberania do significante em detrimento do significado. Em última instância, homem e mulher são apenas significantes que nos servem para clarear em que porta de banheiro devemos entrar. Deste modo, só podemos concluir fazendo uso de nosso título do trabalho que é uma questão de dizer-se em não de ser homem ou mulher. Assim, nós, psicanalistas, só podemos é escutar cada sujeito com sua história, sua sexualidade e seu gozo, um a um. Diferentemente do que se parecia, Guillaume passava pelo tortuoso caminho de “como chegam os homens a interessar-se pelo Outro sexo”, não de forma direta, mas sim, através de um semblante. (MONSENY, 2004)
Para finalizar, com Lacan:

Não há a mínima realidade pré-discursiva, pela simples razão de que o que faz coletividade, e que chamei de os homens, as mulheres e as crianças, isto não quer dizer nada como realidade pré-discursiva. Os homens, as mulheres e as crianças não são mais do que significantes” (LACAN,1972-1973/2008, p. 38).

Trailer do filme

Marisa De Costa Martinez é Psicanalista, membro do Fórum do Campo Lacaniano do Mato Grosso do Sul e do Ágora Instituto Lacaniano - MS. Mestre em Psicologia pela UFMS.