sábado, 10 de agosto de 2013

Kevin, precisamos falar

de Henrique Senhorini

  É com o ódio, como elemento escolhido entre várias opções, que tentarei desenvolver a minha leitura do filme “Precisamos falar sobre Kevin”, apoiado em Mauro Mendes Dias, Diana e Mario Corso, Helene Deutsch, além de Freud e Lacan.
   
Bem...  o filme começa, após a enigmática cena da cortina esvoaçando, mostrando um espetáculo de gozo coletivo no qual se percebe a sua potência na expressão deleitosa de Eva, carregada triunfalmente pela multidão em plena La Tomatina. Uma bela cena da festa dos tomates na Espanha que, mostrada de cima, pode ser confundida, por algum instante, com o inferno de Dante. Esta cena também marca a felicidade que Eva sente da vida livre e prazerosa que leva. Porém, logo percebemos que se trata de uma lembrança e o tempo correto do verbo sentir e levar é o passado... a felicidade que Eva sentia da vida livre e prazerosa que levava. O seu presente fica explicitado sobre a mesa na cena seguinte.
       De volta ao passado, via flashback como recurso da direção para mostrar as recordações de Eva, esta vai se ver na noite que seu primogênito foi gerado e da promessa feita de não ir mais embora. E suas recordações avançam e recuam na linha do tempo como se procurasse algo, algum ponto específico na história de sua vida. Em outra recordação, é mostrada a cena do trabalho de parto e nela escutamos alguém dizer, entre gritos de dor: “pare de resistir, Eva”. Um corte e a cena seguinte mostra o bebê embalado no colo do pai e Eva sentada na cama, passando a impressão pela sua expressão, na minha fantasia, que estava a pensar: o que eu fui fazer? ou como dizem no popular: que merda eu fiz !!!

um parênteses aqui
Interessante esta pergunta que muitas vezes nos fazemos principalmente quando nos deparamos em alguma situação que, por escolha, não escolhemos. Deixa a vida me levar é uma das opções possíveis. Teria sido o caso de Eva?
Uma outra hipótese que suscita é se a da força do nome bíblico Eva (por que a autora escolheu este nome?), na Gênesis, é de alguma maneira determinista. Está lá na Gênesis (3:16) que, após comerem o fruto proibido, Deus determina o futuro de Eva, a mãe primeva da Terra, com a seguinte frase: Multiplicarei grandemente a tua dor, e a tua conceição; com dor darás à luz filhos”.

       Voltando ao filme, o ato de dar à luz é, para a maioria das mulheres da contemporaneidade (diferente das nossas avós e bisavós que tinham 9, 15, 18 filhos), um ato significante. Trata-se daquele ato que divide a vida de uma pessoa em um antes e um depois. E no caso de Eva, foi realmente um divisor de águas entre a mulher profissional bem sucedida que era e a mulher mãe que vive para o filho “full time”. Se ela já pressentia que teria que abrir mão de um desejo caro por outro desejo não tão caro, demonstrado nas cenas durante a gestação e na resistência presente no momento do parto, não sabemos, apenas dá para supor.

um aparte
Através dos psicanalistas Diana e Mario Corso conheci Helene Deutsch, grande psicanalista da época de Freud e autora do livro “Psicologia das Mulheres” de 1944, que afirma haver tipos diferentes de maternidade que basicamente se encontram em dois grupos por ela assim dividido: um tipo é a mulher que desperta para uma nova vida através de seu filho, sem ter o sentimento de uma perda. Tais mulheres desenvolvem seus encantos e sua beleza somente depois do nascimento de seu primeiro filho; o outro tipo é a mulher que desde o princípio sente uma espécie de despersonalização na relação com seu filho; tais mulheres dedicam seus afetos a outros valores (erotismo, arte ou aspirações masculinas) ou esse afeto é demasiado pobre ou ambivalente em sua origem e não pode tolerar uma nova carga emotiva; o primeiro tipo estende seu eu através da criança, o segundo sente-se limitado e empobrecido.
Segundo o casal Corso - e eu concordo com eles - “hoje, os dois tipos que ela [Deutsch] teoriza convivem em cada mulher, junto com todas as nuances intermediárias entre eles.”

       Ao filme... no desenrolar da película, o recurso do flashback nos ajuda na tentativa de montagem de um quebra cabeça, cuja peça principal parece que procuramos juntos com Eva. Qual a peça? Procuramos aquela que, agindo como investigadores policiais, nos explique e justifique o que foi que fez Kevin se tornar um “garoto columbine”. Temos a sensação que Eva procura o exato ponto onde supostamente fracassou... Por que penso isto? Porque ela aceita a culpa que a sociedade normalmente joga nos ombros das mães, dos pais, acatando o velho proverbio popular “bons frutos, boa árvore” no seu inverso, concomitante à outras exigências sociais/culturais que invadem superegoicamente de forma imperativa: uma mãe “tem” que amar incondicionalmente seu filho. Caso não aconteça, caça as bruxas. E olha que Eva, em momentos hercúleos, tenta ser essa mãe com todas suas crenças, até aquela que diz que se trata de habituação, de se acostumar.
       Eva percorre em suas lembranças a história de Kevin, através da sua, desde o período de gestação, passando pelo nascimento e chegando até o fatídico dia D... Ou melhor, dia R do Real, do seu encontro com o Real ? Também recorda a alegria não sentida como a que via nas outras gestantes no período pré natal; o difícil e doloroso parto; os momentos de choro sem fim, um choro desesperado para uma mãe também desesperada que só se calava na presença de Franklin. Este me parece mais preocupado em dar conforto não somente via bela casa e outros bens, mas também sempre confortando a ambos, Eva e Kevin, como se fosse essa a sua função paterna. Franklin me dá impressão de querer viver o ideal da propaganda da margarina todos os dias, esquecendo-se que o ideal se encontra no patamar do inacessível, portanto do impossível. Para quem leu o livro, Franklin se ajusta bem na denominação dada pelo casal Diana e Mario Corso: “um pai cenário”.
       Kevin - seguindo uma linha cronológica de desenvolvimento infantil adotada como normativa - demonstra, ou tenta demonstrar, que tem uma certa dificuldade em operar por essa via. Assistimos, somente porque Kevin quis mostrar, que ele só não falava porque não queria. Simplesmente assim, ou posso apostar que se tratava de uma tentativa em frustrar as expectativas do Outro, da mãe (que é o primeiro Outro). Lembram da cena na qual Eva pede para ele dizer mamãe e obtém como resposta um bem-dito ou mal-dito não? Do mesmo modo ele reproduz no aparente descontrole dos esfíncteres o seu total controle em decepcionar, frustrar e irritar a mãe. E a cena que corrobora com minha aposta é da troca de fraldas... após ser limpo por Eva ele se esforça para mostrar, novamente, seus dejetos e a fita com um olhar meio sarcástico. Seria seu mundo o i-mundo como dejeto, dejeto da mãe?
       E qual a consequência, no meu entendimento, de seu acting-out, ato endereçado ao Outro, à mãe? A passagem ao ato de Eva que o arremessa para longe dela.

um outro aparte
Sabemos com Freud que um ato - desde os atos-falhos - é interpretável, pois revela algo do desejo inconsciente. Lacan contribui fazendo a distinção teórica do conceito de “acting-out” do conceito de “passagem ao ato” que podemos notar, basicamente, na relação com Outro: o “acting-out” tem um apelo ao Outro e “a passagem ao ato” visa romper com o Outro.

       Lembram, também, quando a mãe tenta retornar ao seu campo de gozo, montando e decorando um pequeno quarto com mapas de viagem nas paredes? Percebe-se o ar da graça reaparecendo em sua face, via fantasia, fazendo o contraponto necessário para todos nós aguentarmos a crueza da vida. (Lembro, aqui, a famosa frase do filme Cheiro do Ralo: “a vida é dura!”).
E o que Kevin faz? Destrói esse que se apresenta como único reduto de prazer da mãe, que poderia ser-lhe útil como um cilindro de ar é para o mergulhador.

Bem...
       Hipóteses brotam em abundância: é um gozo o que Kevin sente que o faz deixar a mãe sempre insatisfeita? Mas deixar o outro insatisfeito não é da estrutura histérica? Uma demanda de amor do tipo olhe para mim por bem ou por mal? Há falhas gritantes na lei simbólica do pai imaginário (aquela que barra, que interdita) fazendo com que Kevin conheça a lei para transgredir?
Bom, mas este “eu sei, mas mesmo assim...” (expressão cunhada por O. Mannoni) não é uma característica da perversão como estrutura clínica? Ou seu pai cenário é realmente só um cenário do Pai da Lei, portanto lei esta, foracluída como nas psicoses?
       Bem que eu poderia optar em qualquer uma das três clássicas estruturas clínicas para desenvolver uma leitura possível deste filme e tentar dar uma sustentação teórica, mesmo que por alguns instantes. Mas, seria mais ou menos como querer encaixar Kevin na famosa cama de Procusto, principalmente se ela fosse de uma psicopatia, de um sociopata. Isto nos daria um distanciamento reconfortante e poderíamos dormir em paz e protegidos de nós mesmos. Afinal, entre Kevin e nós há uma diferença abismal. Porém, nem tanto como gostaríamos que fosse, pois o ódio nos aproxima de Kevin (ou de Eva?) muito mais do que gostaríamos. Como assim?
       Pois é... o ódio é muito interessante, pois até consegue fazer com que nos odiemos por senti-lo, como já li em algumas pichações pela cidade: “eu me odeio por sentir ódio” e “odeio odiar”. E, até por isto que também escolhi o ódio como via preferencial para abordar o filme, pois deste ninguém está imune. Entretanto, para não ficar conceitualmente preso no ódio como uma das três paixões fundamentais do ser – amor, ódio e ignorância – de Lacan, nem como sinônimo de “transferência negativa” na questão sobre a dinâmica da transferência em Freud e nem na sua metapsicologia sobre a constituição do sujeito, vou adotar os ódios (no plural), do Mauro Mendes, como estratégia de liberdade. No meu caso, como uma estratégia na qual me autorize errar sem culpa e sem correr o risco odiar por isso.
       Bom... parece que o ódio é odioso e odiado nas sociedades ocidentais como a nossa. E, com Mauro Mendes lembrando o alerta de Freud, é importante ressaltar isto para nós, psicanalistas, de não cairmos na armadilha de querer eliminar ou converter o ódio em amor via intervenções forçadas, numa conduta de pasteurização do humano, como se ódio fosse um vírus. É... O ódio também é uma manifestação autêntica da singularidade do sujeito. E dependendo do nosso manejo, pode se tornar uma “forma de abertura do sujeito ao Outro”. Por isto, decidi eleger o ódio como a via “escolhida” por Kevin para se fazer presente e reconhecido como sujeito.
       Então, sempre como hipótese, Kevin utiliza o ódio, como força motriz que o impulsiona para o seu desejo, mas diferente de Antígona, não pela via da destruição do Outro, no seu caso seria o Outro primordial, e sim pela destruição de tudo que se aproxima como índices de desejo deste Outro, da mãe. Para quê? Para viver numa espécie de “simbiose às avessas” (expressão emprestada de Mário Corso) com a mãe? Para ser desejado numa plenitude, ser único como objeto de desejo da mãe interrompendo a metonímica deste? Uma maneira de Kevin se manter, incondicionalmente, ligado a mãe e a mãe a ele?
       E não penso o ódio aqui como uma paixão do Ser, de acordo com as três paixões fundamentais de Lacan, pois não reconheço em Kevin um cego apaixonado na versão “cego pelo ódio”. De acordo com Mauro Mendes, essa paixão do Ser de Lacan é caracterizada pela suspensão provisória da barra que separa o significante do significado, porque, uma vez suspensa, “o sujeito não tem mais referência de impossibilidade; ao contrário, os significantes da paixão determinam uma relação de superposição com o significado.” E, ainda com o autor, é justamente essa “provisoriedade” na suspensão que diferencia a paixão – visto que é chama - da psicose.
       A minha aposta no filme vai aqui no ódio como fator na constituição do sujeito, ou melhor, desde a constituição do psiquismo – de acordo com Mauro Mendes - pois este, o ódio, se confunde com a “dimensão do desprazer”.
Segundo o autor, “o ódio está antes do sujeito porque ele se inscreve nessa condição do Outro ser castrado”. E é daí que vem a impossibilidade do Outro primordial, a mãe, em atender todas demandas e necessidades de seu bebê. E aqui minha aposta ganha apoio, visto que, se o ódio confunde-se com a frustração na obtenção do prazer, na dimensão do desprazer, e esta tem “íntima relação com o tipo de presença do não no desejo da mãe”, nas palavras de M.Mendes, há um grande indício, através do mal-estar demonstrado por Eva desde a gestação, de quão pouco o seu desejo está tomado pelo filho, do quantum que Kevin ocupa de não no seu desejo, na minha leitura.
E tem a questão do exterior no comparecimento do ódio no sujeito, na sua constituição, via o que Freud chamou de desprazer, pois esse vem de fora do sujeito, vem pelo Outro primordial (que barra nossas demandas). Então, aí, exterior e desprazer se confundem.
     Ainda com Mauro Mendes, essa condição de primeira exterioridade é simultânea ao surgimento do ódio. E, ao mesmo tempo, este exterior me é íntimo, visto que há um Outro que se confunde comigo e que, concomitante, determina a minha existência. Portanto, “esse Outro está, ao mesmo tempo, no exterior, estabelecendo o funcionamento do que me é íntimo”. De acordo com o autor de Os Ódios: clínica e política do psicanalista, esta relação na qual o “exterior é íntimo” é o que Lacan chama de “extimidade”.
       
       De volta ao filme... Eva ao remessar seu primogênito percebe, após a queda, que Kevin sofre uma fratura acho que exposta, não importa. O que importa é como ele se utiliza disso para capturar a mãe sob o pretexto de protegê-la, além de marcar o início de uma cumplicidade via ódio. Ou sua intenção era realmente protegê-la?
       E foi com esta grande encenação, lá no hospital, que Kevin percebe-se como grande ator do seu pequeno teatro. Interessante, também, que “odéon”, que vem da etimologia da palavra ódio - odeum no grego (odium no latim) - significa exatamente isso: pequeno teatro grego cuja presença do ódio nas peças encenadas era frequente.
       Kevin, retornando ao filme, após alguns momentos inéditos de harmonia com sua mãe na leitura das aventuras de Robin Hood – aquele que tira dos que possuem algo valoroso para dar para os que não possuem – adota o arco e flecha como fiel companheiro. E este será o escolhido, anos mais tarde, como seu instrumento no grand finale do seu teatro trágico. Kevin, o filho de Eva Katchadourian, carrega o nome armênio da mãe - 'ian' sufixo de identidade das famílias armênias, significa pertencente à família - e não o nome do pai. E antes do seu grande momento chegar, ele treina continuamente com seu arco para atingir seus alvos, de preferência os que são, ou poderiam ser, objetos parciais de satisfação, também parcial, da mãe.
       Então, no dia do seu 16º aniversário, Kevin se apresenta para aquele que seria o grande espetáculo de sua vida, finalizando-o numa grande apoteose. Massacre e destruição dos que ocuparam, um dia, o lugar de objeto de desejo de outras mães. Ao mesmo tempo destrói, supostamente, os últimos vestígios de desejo da sua mãe, atingindo-a até na sua identidade como sobrevivente do Holocausto Armênio, pois o herdeiro de seu nome agora se tornara o algoz no genocídio do colégio. Porém, antes disso tudo, dispara suas flechas mortais destruindo a irmã e o pai.

       O primogênito de Eva é preso e ela condenada a ser somente, daquele dia em diante, a mãe do Kevin, a mãe do assassino. Por fim, parece que Kevin se dá conta que conseguiu capturar a mãe só para ele. Mas não o que "perdura de uma perda pura"?
Comentário apresentado no "Filmes da Psicanálise" do CEP em 09 de agosto de 2013, São Paulo.
Precisamos falar sobre Kevin - filme completo

quinta-feira, 1 de agosto de 2013

Narrativas do Sofrimento da Classe Batalhadora no Cinema Brasileiro da Retomada

A Retomada do Cinema Brasileiro : 3º capítulo da mini-série  
de Christian Ingo Lenz Dunker
Podemos dizer que o Brasil pós-inflacionário gestou um novo tipo social, que o cinema soube captar antes de sua consagração sociológica, a saber, o batalhador, ou a nova classe trabalhadora. Segundo Jessé Souza1, este novo tipo social se caracterizaria pela inclinação para a auto-superação. Retenhamos o nome escolhido para designar este movimento maciço de ascensão social: batalhador, o que nos remete à retórica da guerra e do confronto diário e continuado, cujo resultado é obtido por meio de ação planejada. O batalhador possui elevado senso de sacrifício para projeção dos filhos e para a ascensão, condição necessária para a disciplina de poupança e economia integrada a uma visão negocial da vida capaz de gerar um senso permanente de orientação para o futuro. Esta disposição ascética requer uma orientação para bens de consumo superiores, uma qualificação dos atos de consumo que implica em adiamento da satisfação como virtude. A importância atribuída à aprendizagem pela experiência e sua transmissão as descendentes e aos membros da comunidade estendida reforça o senso de solidariedade e lealdade com o passado assim como consolida a família como unidade de produção compartilhada. Inversamente a família organiza-se me torno da construção de uma imagem positiva, da disposição para fazer-se de exemplo e para reconhecer a importância do exemplo. Mas não se trata de uma família hierarquizada ou centralizada em torno da figura ou das expectativas que recairiam sobre o pai. Como lugar de convergência entre o poder econômico e a força moral. A família é antes uma unidade de produção e um laço regido por trocas e divisões de esforços e favores, ou seja, é o que Lacan chamaria de discurso do mestre o que faz a função de distribuir posições e dívidas.
Entre a posição dos novos batalhadores temos de um lado a antiga classe média que vive momentos de insegurança crescente, não apenas do fantasma da proletarização, mas também da crise que demanda novos esforços de identificação. Do outro lado encontramos o significativo contingente de miseráveis que passam a integrar a posição do que Jessé de Souza chamou de “ralé”, ou seja, que consegue se incluir em padrões mínimos de consumo e cidadania. O batalhador exprime assim uma nova modalidade subjetivação na qual o trabalho adquire uma centralidade inovadora. Sua própria existência questiona a posição daqueles que obtém e exibem signos de status social, sem que possam apresentar as credenciais de sua obtenção por meios dotados de valor. No espaço de 20 anos o Brasil aprendeu que é preciso justificar a riqueza e que a ascensão social destituída de uma história que a legitime pode ser tão suspeita ou condenável quanto a exclusão e a invisibilidade.
Disso infere-se, em escala invertida, novas narrativas de sofrimento e novos tipos de sintomas, inicialmente caracterizada pelo exagero ou pela suspensão das disposições psíquicas associadas a tal forma de vida. De fato é o que ocorre quando encontramos a desarticulação da gramática do sacrifício, ou seja, da violação do pacto subjetivo, expressa nas atitudes de cinismo, de excesso de instrumentalização das relações, de corrupção, trapaça, suspeição da fidelidade com relação às origens. Aqui a violência cumprirá um papel restitutivo, assumindo uma função trágica de lembrança e de retorno. O temor de que aquilo que se adquiriu com muita disciplina, mas não sem o concurso da fortuna, pode igualmente ser perdido, mostra-se em uma permanente crítica de si e de prevenção diante das ilações desejantes que podem arrastar o sujeito para uma “vida de dissipações”. A dívida simbólica torna-se assim uma dívida impagável, sendo seu incremento e reposição, parte da filiação que se espera do batalhador. Gratidão sem fim, privações auto-impostas, masoquismo moral, são efeitos clínicos desta espécie de gramática do sacrifício que se torna a mímese perfeita das estratégias de reconhecimento e de demanda.
Durval Discos
O segundo tipo de temor que colide com as aspirações do batalhador ou da nova classe média brasileira são as patologias do consumo e sua inevitável associação com a aparição de um objeto intrusivo, seja ele a droga, as más companhias, ou tudo aquilo que desvia e retira o sujeito de seus valores de origem, de seu compromisso com o futuro, de sua comunidade de destino. Adições e acumulações, recusa ou excesso de consumo, exibicionismo, nos colocariam na trilha de uma violência cuja função é segregativa, ou seja, ela não reequilibra narrativamente um desvio das virtudes mas exclui ou inclui comunidades e modos de satisfação.
A terceira forma típica de sofrimento inferida da narrativa ascendente do batalhador brasileiro baseia-se no trabalho de articulação simbólica entre suas origens e sua atual posição social. Uma ascensão baseada no esforço coletivo, na ajuda mútua, nos laços de produção familiares ou comunitários, muitas vezes reforçado por comunhão religiosa e moral, requer uma ampla articulação histórica de sua própria forma de vida. Neste contexto a desregulação sistêmica, pode colocar em risco a unidade, coerência e congruência entre valores de origem e valores que triunfam ao final do percurso ascensional. É a insegurança sistêmica de que assim como o “triunfo” se colocou por vias e regras que não se sabe esclarecer, um grande fracasso e um retorno podem ocorrer a qualquer momento. Há um tipo de depressão ansiosa que se desenvolve facilmente neste contexto. O esforço para sonhar, desejar e imaginar novos futuros possíveis depende da consolidação simbólica das realizações passadas. A ausência desta articulação pode se apresentar como o sentimento permanente de uma “vida postiça” ou de um empuxo à performática social. Aqui a violência assume o aspecto de fantasia de punição ou de imagens masoquistas,
A quarta narrativa do sofrimento, característica do Brasil pós-inflacionário, refere-se às patologias da imagem de si. Isso pode se apresentar sob forma de reificação de uma forma de vida cujo protótipo são as figuras da adolescência: indeterminação de destinos, crise permanente da identidade de si, sentimento de inadequação do corpo próprio, orientação sexual-amorosa baseada na experimentação. Aqui é a narrativa da perda da alma, e das estratégias de recuperação que ganha relevo. A violência assume a figura da demanda de reconhecimento. Os tempos articulatórios da demanda: o pedido, a recusa, o objeto oferecido e a negação, encontram-se dispersos e por vezes desarticulados. Isso explicaria os fenômenos secundários da erotização da infância e das práticas de controle e descontrole alimentar (anorexia, bulimia, vigorexia).
A ideia de uma nova forma de violação do pacto social aparece em Boca do Lixo de Eduardo Coutinho (1992). Aqui vemos a violência silenciosa, baseada na ruptura da conexão ideológica entre pobreza-violência ser deslocada para a narrativa da violação do pacto entre ricos e pobres, lido agora na chave das patologias do consumo. A rarefação de ideais, torna-se um problema maior do que a oposição entre estética ou cosmética da fome. O estudo sobre a população que vive e se reproduz em torno do lixo encontra sua apoteose na cena final na qual a massa se percebe no pequeno monitor de televisão posicionado em cima de uma Kombi da produção, ao som de uma romântica balada que reproduz um sucesso musical americanizado. Vidas em situação de precariedade, na qual pequenos sonhos e a capacidade de imaginar um futuro melhor aparecem como despropósitos desmentidos pelo documentário. Vidas que retratam a ordem e o caráter sistemático em uma situação à qual supõe-se anomia e efeitos radicais da exclusão. Percebe-se então diferenças até então irrelevantes, entre aquele que pertence à ralé e o que pode emergir como batalhador. Diferença tão sutil como perder ou manter os dentes da frente, possuir ou não uma carroça para catar papelão, ter um endereço para receber entregas ou um telefone para se definir a partir de um “lugar”.
É a dificuldade de sonhar, desejar e imaginar futuros possíveis que se encontra também em Carlota Joaquina - Princesa do Brasil de Carla Camurati (1995) que aponta como a desarticulação da gramática do sacrifício leva ao cinismo, ao excesso de instrumentalização das relações e á lógica da indiferença. Encontramos aqui a matriz reversa da inveja como capacidade articular atos de indiferença social ao outro, que se mostrará fortemente presente na reação das classes médias ao forte movimento de ascensão da ralé à pobreza e da pobreza à condição de batalhadores bem sucedidos. A “retomada” do sentido da aristocracia mostra-se assim um movimento defensivo ao grupo que terá seu padrão de subjetivação baseado no consumo ameaçado pela generalização do consumo para as classes sociais ascendentes.
Outro filme que aborda a desarticulação da gramática do pacto-sacrifício é Guerra de Canudos de Sérgio Rezende (1997). Novamente encontramos aqui o tema da violência em nome da supressão da violência, o cinismo das lideranças como origem do ressentimento social. A hipótese de Euclides da Cunha de que o Brasil se tornaria um país viável na medida em que formas de vida, presentes no homem litorâneo, conseguissem se articular com o sertanejo do interior, reaparece agora tematizando a guerra como paradigma na “resposta exagerada”. Contra a hipótese de Antonio Conselheiro, de que um novo mundo seria possível, insurge-se uma espécie de aniquilação engendrada pelas forças da união. Temos aqui um exemplo da alternância entre a narrativa do objeto intrusivo, a comunidade de Canudos, e a violação do pacto, entre Estado e sociedade civil. Ocorre que neste lugar sem Estado a auto-organização é sentida como violação de um pacto, de outra forma quase inexistente.
Cronicamente Inviável
Também se encontrará esta ligação em Cronicamente Inviável de Sérgio Bianchi (2000). A fixação masoquista ao sacrifício, a interiorização como defesa ao sentimento de isolamento são novamente endereçados à gênese do ressentimento social. É, por exemplo, o caso da cena no qual o trabalhador volta para casa em seu ônibus lotado, mas em recuo introspectivo, medita sobre as condições da troca social a que está exposto pelas regras do trabalho em uma cidade como São Paulo. Sua meditação é interrompida pelo carro de uma mulher que enguiça a frente do ônibus. O motorista buzina e pede passagem, o que é saudado pelos que estão no ônibus. Contudo, em plena avenida Paulista o que se vê é uma jovem senhora de classe média sair aos brados de seu carro e proferir impropérios ao motorista, exacerbando sua “força de classe”, representante pelo carro contra o ônibus que ela está a atravancar. O motorista se cala, a população bate palmas, a violência do condutor fora enfim contida e sobrepujada pela reação excessiva, exagerada e simbólica levada a cabo pela madame. Temos aqui os traços característicos da narrativa da alienação como perda da alma: interiorização, humilhação, exercício conspícuo do poder, intimidação.
Abril Despedaçado, de Walter Salles Jr. (2001) é outro caso de desarticulação da gramática do sacrifício e do pacto. Aqui a violência do agreste, dá suporte à narrativa da vingança como forma atrasada e equívoca de solução para a tensão social. Mesmo que o tema seja as relações históricas de vingança entre famílias rivais no agreste brasileiro, o mal-estar está presente e transpira como uma alegoria. É o relógio que marca a hora da vingança, do inexorável ajuste de contas, mas que já é sentido como anacrônico, e fora de hora. Ou seja, a mais tradicional e instituída das formas de violência no interior do Brasil profundo mostra-se anacrônica, excessiva, fora de hora. Mais do que uma típica aventura de inversão e reequilibração o filme aborda o cansaço e a impotência da vingança promovida fora de um universo onde a honra é um valor de fato, fundamental. A vingança não está a cargo de um ajuste de contas ascensional com o futuro ou com um ato de liberação simbólica para com o passado, mas é uma vingança que trabalha fora do tempo.
A narrativa do objeto intrusivo aparece em Ação entre Amigos de Beto Brandt (1998) e Que é isso Companheiro, de Bruno Barreto (1997) corrupção, trapaça, e suspenção de relações de fidelidade determinam ressentimento social como incapacidade de luto. Já em O Invasor, de Beto Brant (2001) vemos o problema do objeto intrusivo induzindo uma situação de anomia decorrente do excesso de instrumentalização das relações. Paulo Miklos, ex Titãs, é contratado para eliminar um dos sócios de uma construtora. Feito o ”serviço” ele reaparece na empresa, se faz introduzir na casa dos outros sócios, aproxima-se da filha de um deles, enfim, mostra uma situação na qual os muros e cercas, invisíveis, são ultrapassados produzindo um sentimento de insegurança que não decorre da potencial violência do “invasor”, mas de que seu agente aparece de forma visível e fora de controle.
Outro exemplo desta forma de sofrimento cuja gramática baseia-se na aparição de um objeto intrusivo é Carandiru, de Hector Babenco (2003), no qual o universo fechado da prisão coloca-se como um comentário ao massacre de 1992. Aqui a crise de sentido no interior da ordem sistêmica prisional, associada com a sempre disponível hipótese do declínio da imago paterna, com sua retórica da impunidade e do medo, dão margem à reconstrução, violenta e insensata, do universo da lei. Esta abordagem do massacre dos 111 presos do Carandiru é ótimo exemplo de como vidas comuns, com seus desencontros comuns, são compactadas e destruídas pela uniformidade da hipótese de a-violência. Hipótese pseudo-democrática de que diante de a-violência seríamos todos iguais. O filme é a primeira tentativa de interpretar a violência nascente segundo sua própria lógica.
Observe-se como em todos os casos subsequentes temos a intrusão de um olhar deslocado: o menino de classe média que se envolve com o tráfico em Cidade de Deus, o médico de presídio em Carandiru, e o matador que passa a participar, como um intruso, na vida de seus contratantes em O invasor. Nos três casos há uma espécie de prazer ou de flerte hesitante em conhecer as raízes do excluído social. A fascinação exercida pela alteridade interna, mas distante, dá lugar ao horror e angústia quando reconhecemos sua proximidade. Não creio que nesta gramática se trate apenas de humanização do excluído, mas, como afirmou a crítica literária Maria Elisa Cevasco (2003), de filmes que “usam a linguagem da mercadoria, da propaganda, para falar da realidade de quem está excluído do consumo”2. Temos assim um erotismo produzido no olhar do espectador a partir de uma posição deslocada. Erotismo que não se reconhece como tal, e encontra como substitutivo a violência. Situação simétrica verifica-se no caso da jovem esposa, algo entediada com seu marido, que recebe da vizinha uma receita para “aditivar” suas relações: a introdução de uma banana no seio da vida erótica do casal. A resposta do marido vem em ato: ele mata sua própria esposa, intuindo que a invenção de tal prática só poderia advir de um relacionamento extra-conjugal. Vê-se bem aqui como a violência emerge no lugar do erotismo suprimido. Demonstração do equívoco de Reich. A sociedade de indivíduos dóceis, apáticos... “bananas” (para voltar ao assunto) não é apenas efeito da repressão do erotismo, mas de um erotismo que suporta mal as oscilações da fantasia que o sustenta. Um erotismo desguarnecido contra a aparição de um objeto intrusivo e em permanente precariedade do pacto amoroso.
Abril Despedaçado
Muito se tem criticado Carandiru por colocar em primeiro plano a imagem midiática de Rodrigo Santoro no papel do travesti “Lady Di”, em franco contraste com os outros personagens do filme, que são figurados como pessoas comuns. Nisso se esquece que tal personagem só adquire realmente consistência a partir de seu envolvimento com “Sem Chance”, um mirrado representante gabiru, de quem se esperaria um erotismo convencional. Trata-se de mais um encontro inesperado. O contraste entre a bela exuberância do primeiro com a minguada estética do segundo testemunha uma espécie de miscigenação estética que alimenta uma nova forma de erotismo, estritamente distante e corrosiva diante do ideal hegemônico.
A narrativa da anomia, da perda da unidade sistêmica, e da desarticulação entre meios e fins, entre agente e outro, aparece em Durval Discos, de Anna Muylaert (2002) e Edifício Master de Eduardo Coutinho (2002). A dificuldade de articulação histórica de sua própria forma de vida (desregulação sistêmica) aparece pela via da depressão, da espetacularização da vida cotidiana e do declínio do erotismo. Não falta a redução da extensão da narrativa amorosa. É o que vemos na personagem depressiva de Edifício Master que não consegue de fato desenvolver uma narrativa amorosa quando é instada a tal. Em vez disso emerge um palavreado inautêntico, uma alienação espantosa quanto ao que seria uma experiência com o outro, sem que ao final se consiga dirimir uma relação exata que se encadeia nas experiências amorosas, mesmo em suas decepções e infortúnios.
Finalmente, Cidade de Deus de Fernando Meirelles (2002) e A Dona da História (2004) de Daniel Filho, inscrevem-se sob a narrativa da perda da alma. Temos aqui o corte etário bem definido na construção do sofrimento de época: a reificação da adolescência, a erotização da infância, a reinvenção da mulher de meia idade e a banalização do homem incapaz de fazer frente à sua própria posição. São narrativas cuja enunciação permanente, e fronteiriçamente depressiva, é: “em nome de que?”. Tanto no caso do envolvimento de jovens de classe média com o crime, ou do adolescente que mora no morro com a arte do jornalismo e da fotografia, ou da senhora que questiona o tipo de realização que ela teria levado a cabo em seu casamento “feliz”, o ponto do vista do filme é retrospectivo, quase memorialístico, apesar da alta densidade de ação. Tanto no drama dos morros quanto no seu homólogo Zona Sul, os personagens padecem de um sofrimento de determinação, invertendo aqui a expressão original de Axel Honneth (sofrimento de indeterminação). Não que ambos vivam em um mundo demasiadamente organizado, pelo contrário os cenários são anômicos, violentos e corrosivos, mas em meio ao caos e a vida em estrutura de guerra e condomínio, vigora perda do sentimento de liberdade, de rarefação da densidade da vida, de irrelevância da experiência de si. Esta ligação entre alienação da alma e desreguração sistêmica pareciam preparar o sucesso vindouro de Tropa de Elite 1 (2007) e 2 (2010) de José Padilha.
Ora, o que esta aparição transversal da violência mostra é no fundo sua capacidade de articular a fantasia social por meio da variação de incidências do que Lacan chamou de objeto a. Ora, o objeto a pode ser tanto o elemento indiscernível que é causa do desejo e de sua alienação, para um sujeito, como este elemento excessivo que surge intrusivamente, misturando fronteiras e limites. O objeto a, pode ser tanto o elemento desagregador na relação entre as partes e o todo, quanto o traço que por sua repetição dá consistência à lei, unidade a uma série, causa instituinte e transgressiva de uma forma de vida. Temos então que as narrativas convergentes sobre a perda da alma, sobre o objeto intrusivo, sobre a desregulação do sistema ou sobre a violação do pacto, presentes no cinema da retomada, são articulações estruturais da nomeação do mal-estar como “a-violência”. Isso nos ajudaria a entender porque o esforço de teorização dos chamados novos sintomas, ou novas patologias, amplamente enfrentado pela psicanálise brasileira dos anos 2000, rendeu pouco em termos da articulação entre as diferentes modalidades de sintoma. Entre o mal-estar, genérico derivado das transformações sociais inspiradas pelo capitalismo tardio, e os sintomas específicos como a drogadição, a depressão, o pânico e a anorexia, é preciso pensar o plano intermediário das narrativas sociais do sofrimento. Sem elas as conexões e correlações entre sintomas aparecerão de modo isolado, como contingências individuais.
É fácil perceber que a ascensão do discurso sobre as drogas, assim como todas as outras patologias do consumo, como a anorexia, a bulimia e vigorexia, são variantes da narrativa do objeto intrusivo, percebido como vorazmente perigoso justamente em um universo social que se abre como nunca às perspectivas de definição de si por meio de atos de consumo. Inversamente o espectro de sintomas em torno da depressão mostra-se dependente da narrativa da perda da alma e da alienação do desejo. Os sintomas em torno a ansiedade e do pânico, tais como o medo de lugares abertos, a vertigem diante de multidões ou de lugares estranhos exprimem a perda da experiência de unidade corporal em homologia com narrativas sobre a perda ou sobre o excesso de organização sistêmica do mundo. Finalmente, os sintomas em torno de formas disruptivas do narcisismo, que vão do espectro bipolar aos desajustes de hiperatividade até o sentimento de inadequação, dependem estruturalmente de narrativas em torno da patologia do pacto, ou do laço de discurso, com o outro.
1- Souza, J. (2004), “A gramática social da desigualdade brasileira”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 19 (54): 79-96.
2- CEVASCO, M.E. (23/05/2003). Estudos culturais à brasileira. Folha de SãPaulo – Mais.

Christian Dunker é Psicanalista, Professor Livre Docente do Depto de Psicologia Clínica-IPUSP, Analista Membro de Escola da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano, Membro da Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental, Doutorado (IPUSP) e Pós-Doutorado pela Manchester Metropolitan University (UK). Autor de vários livros, entre eles o vencedor do Prêmio Jabuti 2012: “Estrutura e constituição da clínica psicanalítica: uma arqueologia das práticas de cura, psicoterapia e tratamento” (ed. Annablume, 2011)