segunda-feira, 1 de junho de 2015

Tarja Branca e Psicanálise: Tudo a ver

de Isloany Machado

Dias atrás, por indicação de uma amiga, assisti um documentário chamado Traja Branca. Mais uns dias depois, assisti de novo. É um documentário que a gente mal termina de ver e já quer ver de novo. Esquisito isso, mas foi exatamente o que senti. É porque Tarja Branca fala sobre a infância e sempre me bate uma nostalgia desse lugar. Não é bem uma vontade de voltar, até porque isso seria impossível, a não ser na ficção científica, quando assistimos De volta para o futuro ou ainda O exterminador do futuro. Esses dois filmes têm o futuro no nome, mas tratam mesmo é da volta pro passado.
Voltar ao passado, exceto nos exemplos de filmes citados, só é possível, em minha opinião, quando deitamos num divã de analista. Obviamente que qualquer vivente pode voltar ao passado quando acessa suas lembranças dos anos iniciais, mas remexer nelas, encostar o dedo e até mesmo cutucar as feridas da infância é um trabalho para a psicanálise. No Tarja Branca, são muitas as “personagens” que falam sobre a importância do brincar, mesmo que já se tenha passado do peso e da idade. Uma senhora nordestina bem engraçada diz: “Quando eu era criança, pulava corda. Parei, fiquei gorda!”. Mesmo assim, em seu trabalho de feirante, ela continua brincando, com os colegas, com os clientes.
O mais importante é não parar de brincar. Mas como isso seria possível? Ora, fazendo aquilo que a gente mais ama. Quando estamos de acordo com nossos desejos, o trabalho, por mais sério que seja, não passa de uma brincadeira porque sentimos um prazer tão grande que não dá vontade de parar. Outras “personagens” do filme, como por exemplo o escritor Marcelino Freire, dizem que de vez em quando é preciso parar e perguntar para aquela criança que fomos um dia: “E aí, como estou me saindo?”. Muito parecida com a pergunta da psicanálise: “Agiste conforme teu desejo?”. Poderíamos fundir uma coisa na outra e dizer: “Agiste conforme a criança que te habita?”.
Por algum motivo, ou algunS motivoS, nós às vezes nos separamos ou nos esquecemos da criança que fomos. Mas ela fica em algum canto escondidinha, esperando pra dar o bote. Esta criança grita junto com os sintomas, junto com as desmesuradas depressões de que os trabalhadores tanto se queixam e que os incapacitam para o trabalho. Parece chavão psicanalítico, mas é necessário que se diga que a melhor saída ainda é bancar o próprio desejo. Por mais caro que custe, por mais que implique em declinar de muitas coisas, recuar, enfrentar fúrias (de pais e familiares), ainda custa menos do que não ser sincero consigo mesmo sore aquilo que se deseja.
No Tarja Branca, um psicanalista diz: “ É preciso ter colhões para bancar aquilo que se quer”. Isso me emocionou. Porque exatamente no momento em que ele disse isso, o assunto era a escrita. Marcelino Freire dizia que descobrira cedo que queria ser um Poeta menor, como na poesia de Manuel Bandeira. E o psicanalista diz, em seguida, para a câmera: “Você tem que se perguntar todos os dias ‘eu poderia não escrever?’, se a resposta for sim, então abandona essa porcaria e vai fazer qualquer outra coisa, mas se a resposta for não, então faça o melhor que puder, com toda a sua vontade”. Isso é muito parecido com o que Rilke escreve em suas Cartas a um jovem poeta.
Toda essa coisa moveu mais ainda do lugar minha criança interior. Dias atrás remexi em papéis antigos e achei um diário da infância no qual eu dizia “Quero escrever um livro”. Não me lembrava mais disso, mas de alguma forma essa criança se fez ouvir. Precisei de muitos anos de análise para ajudar no processo todo, mas nos reencontramos. Agora a porra ficou séria! Decidi escrever um romance, o que antes me parecia impossível. O mais esquisito é, às vezes, sentir culpa por fazer as coisas que se gosta, porque é notável que há um incômodo na forma como algumas pessoas tratam isso. Mas eu quero que se dane. É o que eu quero.

Tarja Branca é o tratamento sugerido por uma das “personagens”, que passou 25 anos carimbando cheque de pessoas que não conhecia, num emprego de Banco, até que um dia descobriu que podia sair do Banco. Ele tinha feito Economia, então, juntou Economia e Arte, deu miniatura. Faz miniaturas lindas. Tarja Branca é um remédio que se pinga no ouvido, à base de palavras. “Muitas pessoas já usam”, diz ele. Sou imensamente feliz por trabalhar com remédios tarja branca, ouvindo pessoas em meu ofício de psicanalista, “receitando” palavras; e também escrevendo, juntando palavras que podem não curar ninguém além de mim, mas me fazem estar em paz com a criança que me habita. E isso é a melhor coisa que pode existir. Assistam Tarja Branca.
Isloany Machado, 02/02/2015

Trailer do filme

Isloany Machado é Psicanalista, Escritora e Professora.  Membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano/MS. Especialista em Direitos Humanos pela UFGD e em Avessos Humanos pelo Ágora Instituto Lacaniano. Mestre em Psicologia pela UFMS. Despensadora da ciência e costuradora de palavras por opção, é autora dos livros “Costurando Palavras”  (ed. Life, 2012) e "Em Defesa dos Avessos Humanos" (ed. Life, 2014). Fundadora do blog  www.costurandopalavras.com.br