quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

Jeanne Dielman, 23, Quai du Commerce, 1080 Bruxelles: um filme sobre o movimento


de Luiz Fellipe de Almeida Santos


Jeanne Dielman, 23, Quai du Commerce, 1080 Bruxelles (1975) é considerado a obra-prima de Chantal Akerman (1950-2015), que, embora menos conhecida que outros grandes diretores experimentalistas, deve ser lembrada por sua originalidade na retratação do feminino. Jeanne Dielman, solitária viúva há seis anos, mora com o filho adolescente Sylvain. Seus dias são ritualmente iguais. A beleza de Delphine Seyrig, conhecida pelo incomparável cinepoema L’année dernière à Marienbad (1961, Alain Resnais), esteve na mente de Akerman desde a concepção do filme. Em entrevista, a cineasta comenta que esse detalhe contrasta com nossa ideia comum de dona de casa, muitas vezes invisível.
O filme de três horas e meia – para além de conjecturas feministas – é claro: a vida cotidiana é. Intransitivamente, somos convidados a penetrar na rotina de Jeanne sem receber mais que a repetição. Ela acorda, faz o café, engraxa os sapatos do filho, pergunta se ele lavou as mãos, dá-lhe dinheiro para a escola ajeitando suas roupas, arruma as camas, lava a louça, seca-a, resolve coisas no centro comercial, limpa a casa, cuida de um bebê, sai novamente ao centro da cidade, toma café num mesmo café todos os dias, volta para começar a preparar o jantar, prostitui-se em casa às 17h, toma banho, lava a banheira, seu filho chega, o jantar é servido, eles comem, ele lê, ela faz tricô ouvindo o rádio, eles saem para algum lugar (o filme não revela, apenas mostra a rua escura), ela coloca Sylvain para dormir com beijos (“O que eu faria sem ele?”, conversa Jeanne com o sapateiro), e vão dormir: fim do dia X.
         Por mais elementos curiosos que possamos encontrar na rotina de Jeanne e Sylvain (a prostituição, metafórica, por exemplo), Chatal Akerman conseguiu magistralmente fazer dessa rotina um instrumento projetivo precioso para o espectador. Coisa dificílima de se fazer; noutras mãos, o filme cairia numa espécie de BBB dos anos 70. Em sua exibição em Cannes, Akerman conta, em entrevista, sobre a desistência de grande parte do público em acompanhar a dona de casa nessas três horas e meia.
Este não é um filme confortável de se ver; seu minimalismo hipnotiza. A experiência, para mim, foi justamente uma meditação sobre essa monotonia basal inevitável que estrutura nossas vidas. Viver, verbo intransitivo. Jeanne vive. Não se pode julgar sua rotina. O que importa não é o que ela faz, sua meticulosidade, sua higiene rigorosa, seu comércio insólito. Akerman mostra, para além da questão da mulher e os destinos de seu corpo, que o cotidiano é essencialmente... o que é. Nem bom, nem ruim; continuação que é fim em si mesma. Não se pode fugir de seu tédio ocasional, de sua repetição, de suas alegrias naturais. Mesmo os mais criativos sustentam um circuito subjetivo diário, que não é necessariamente o que todo o mundo faz (tem que fazer) todo dia, mas é, antes, nossa rota significante idiossincrática, inconsciente.  E é justamente na banalidade e na lentidão do secar a louça, pentear os cabelos ou meramente sentar e pensar que deduzimos Jeanne entrando em contato com o que há de mais heroico, singular, íntimo, efervescente, miserável. Afinal, como Andrei Tarkovsky, mestre do silêncio falante, pensava, e executou isso como ninguém, é na quietude que o movimento é mais significativo. Os três dias da rotina de Jeanne ilustram, muito simplesmente, uma coisa tão clara e tão trivial, colocada por Lacan em termos cotidianos: “O gozo é aquilo que não serve para nada”. É ver o final para crer.
trailer do filme

Luiz Fellipe de Almeida Santos é psicanalista, formado em Psicologia pela USP. Participa das Formações Clínicas do Fórum do Campo Lacaniano de São Paulo.

quarta-feira, 4 de novembro de 2015

Le Mystère Alexina - O curioso caso de Herculine Barbin: "Sou homem ou sou mulher?" no real do corpo

de Isloany Machado

A pergunta “sou homem ou sou mulher?” nos remete à clássica questão histérica, sobre que posição o sujeito ocupa na partilha dos sexos. Ora, bastaria despirmos um sujeito para determinar qual seu verdadeiro sexo? A resposta parece óbvia, e foi exatamente a este tipo de exame que submeteram Herculine Barbin, jovem de 25 anos que escreve suas memórias por acreditar que sua vida acabará em breve. O relato se passa no século XIX e conta a história de uma pessoa que descobre ser hermafrodita, mas só o faz depois dos vinte anos de idade.

Desde o final da infância tinha um distanciamento do mundo, como se houvesse já compreendido que viveria nele como um estrangeiro. Com a morte do pai, quando Herculine ainda era criança, a mãe ficou sem condições financeiras e a filha foi admitida num asilo que tratava doentes mentais, sendo criada junto com crianças órfãs. O fato de ter uma mãe viva a colocava num lugar privilegiado para as demais crianças que ali viviam. Certa feita, uma delas censurou-a por estar compartilhando de um pão que não havia sido feito para ela. Tempos depois foi para um convento onde participaria da vida de meninas ricas e nobres. Herculine, apesar da evidente diferença social que havia entre si e as outras meninas, se destacava nos estudos, impressionando as professoras. Neste lugar apaixona-se pela primeira vez.
Quando volta a morar com a mãe na casa de seus patrões, um pároco da cidade sugere que ela se dedique ao ensino e, autorizado por ela, divide a ideia com sua mãe e seu benfeitor. A ideia a desagradava, pois tinha por essa profissão uma antipatia irracional e profunda, e acreditava merecer coisa melhor. Neste período começa a se evidenciar a enorme distância física que havia entre ela e as outras meninas. Possuía muitos pelos no rosto e nos braços, fato que era motivo de chacota. Apesar da descrição do quanto os traços físicos eram masculinos, ela coloca uma oposição ao dizer que apesar disso nascera para amar: “todas as faculdades de minha alma estavam voltadas para o amor; um coração ardente escondia-se sob minha aparência fria e quase indiferente”. Herculine faz uma oposição entre masculino e feminino, dizendo que o amor é coisa das almas femininas.
            Com a passagem do tempo e a acentuação das características físicas masculinas, a angústia de Herculine aumenta. Finaliza o curso superior com as melhores notas e consegue um emprego como professora adjunta em um internato. Foi acolhida pela família proprietária como se fosse uma filha e passaria a gerir a instituição juntamente com Sara, uma das moças.
Na relação com Sara, inicia-se um envolvimento: “do fundo da minha alma, eu te amo como nunca amei ninguém na vida. Mas não sei o que está acontecendo comigo. E sinto que essa afeição não pode mais me satisfazer. Para isso preciso de toda a tua vida!”. Sara não recusa esse amor, sofre com isso, mas se tornam amantes.
            Pouco tempo depois, Herculine começa a sentir dores físicas tão fortes que a impediam até mesmo de gritar. A situação vai ficando cada vez mais insustentável e ela sai de férias com a decisão de buscar ajuda para retificar seu registro civil. Segue o trecho de um dos relatórios médicos:
“Dos fatos acima, o que concluiremos nós? Alexina seria uma mulher? Ela tem uma vulva, grandes lábios, e uma uretra feminina que independem de uma espécie de pênis imperfurado, não seria isso um clitóris monstruosamente desenvolvido? Existe uma vagina, bem curta na verdade, e muito estreita, mas enfim, o que poderia ser além de uma vagina? Ela tem atributos totalmente femininos, é verdade, mas nunca menstruou; externamente, seu corpo é masculino, e minhas explorações não me levaram a encontrar o útero. Seus gostos, suas inclinações a levam em direção às mulheres. À noite, as sensações voluptuosas são seguidas de um escoamento espermático; seu lençol é manchado e essas manchas têm um aspecto duro. E para finalizar, podemos encontrar os corpos ovoides e o cordão dos vasos espermáticos num escroto dividido. Eis os verdadeiros testemunhos do sexo; podemos portanto concluir e dizer: Alexina é um homem, hermafrodita sem dúvida, mas com evidente predominância do sexo masculino”. 
Restava à ciência agora reparar o erro. Herculine diz: “Mais tarde eu me arrependeria amargamente daquilo que então eu considerava um imperioso dever. O mundo logo me ensinaria que eu tinha cometido um ato de fraqueza e estupidez, e me puniria cruelmente por isso”.
            O saber médico determina a retificação nos registros civis, afirmando que ela pertencia agora ao sexo masculino e teria seu nome modificado. “Tudo estava feito. A partir de agora, o estado civil me obrigaria a fazer parte daquela metade da raça humana a que chamamos de sexo forte”.
Uma mudança de nome e registro civil. Isso basta para determinar qual a posição de um sujeito? Antes de saber de sua condição hermafrodita, Herculine já se sentia como alguém sem lugar, um estrangeiro. Separados da natureza pelo significante, não somos todos nós estrangeiros nessa pátria da certeza anatômica? Se antes Herculine era um estrangeiro por pertencer ao mundo dos significantes, após a busca por retificação que culminou em uma decisão judicial de torná-lo pertencente ao sexo masculino, ele se torna um exilado. Sobretudo porque, devido ao escândalo que esta mudança significou, ele perde o amor vivido com a mulher que tanto amava.
O fato de ter, anatomicamente, um “terceiro sexo”, nem masculino e nem feminino, colocou Herculine numa posição de estrangeiro, desde pequeno. Nos anos que se seguiram à mudança de seu registro, a morte passou a ser a possibilidade de finalizar a angústia de seu isolamento. Ciente de que a medicina utilizará seu corpo para estudos científicos, pede em seus escritos que eles analisem também todas as dores que queimaram e devoraram esse coração até suas últimas fibras.  Alguns anos depois, aos 30 anos, comete suicídio.
Independentemente da anatomia, o amor fazia com que se sentisse em casa. Será que o peso da nomeação foi o que levou Herculine à morte? Foi a expatriação sofrida? Ou terá sido a perda do amor? Não há como saber esta resposta, pois não se trata de um caso clínico, mas lembremo-nos do último pedido desse sujeito: “peço que analisem todas as dores que queimaram esse coração até suas últimas fibras”. Ao final do relato de Herculine, há vários arquivos dentre relatórios médicos e jurídicos, então, mesmo que a história tenha se passado anteriormente aos escritos psicanalíticos de Freud, como teria sido um relatório feito por este autor, caso fossem contemporâneos?

RELATÓRIO DE FREUD
Prezados senhores,
Devido ao sigilo imposto por meu ofício, direi apenas algumas poucas palavras. Desde nossa teoria da sexualidade, é sabido que as opiniões populares admitem que o ser humano ou é homem ou é mulher. A ciência, porém, conhece casos em que os caracteres sexuais parecem confusos e é portanto difícil determinar o sexo, antes de mais nada no campo anatômico. A genitália dessas pessoas combina caracteres masculinos e femininos (hermafroditismo). Assim me parece ser o caso de Herculine, exatamente como afirmam os relatórios médicos.
Mas mesmo na anatomia, até aqueles que são “homens” ou “mulheres”, não excluem, em sua constituição física, elementos do sexo oposto. Certo grau de hermafroditismo anatômico constitui a norma. A concepção resultante desses fatos anatômicos conhecidos de longa data é a de uma predisposição originariamente bissexual. Minha opinião teórica é de que seja possível transpor tal concepção da anatomia para o campo psíquico, em que teríamos, então, um hermafroditismo psíquico.
Independente do hermafroditismo somático de Herculine, seria ela uma invertida, já que foi criada como mulher e seus objetos sexuais sempre foram mulheres? Em seu relato autobiográfico, é evidente a culpa que sentia por se apaixonar por Sara e trair, assim, a confiança da mãe da moça, que a havia acolhido como uma filha. Ao mesmo tempo em que tinha uma “alma voltada para o amor”, delicada e feminina, ocupava um lugar masculino na relação amorosa, pois a moça era objeto de seu encantamento, chegando a se sentir sufocada às vezes.
Em minha clínica da histeria, pude elaborar que os sintomas histéricos são a expressão, por um lado, de uma fantasia sexual inconsciente masculina e, por outro lado, de uma feminina. A natureza bissexual dos sintomas histéricos, que pode ser demonstrada em numerosos casos, constitui uma interessante confirmação da minha concepção de que, na análise dos psiconeuróticos, se evidencia de modo especialmente claro a pressuposta exigência de uma disposição bissexual inata no homem.
Neste caso, não se trata de dissecar, compreender, averiguar e devolver-lhe seu verdadeiro sexo, mas antes, saber que as questões dos sujeitos vão muito além da anatomia. Sobre o inconsciente, sabemos que não há nesse sistema lugar para negação, dúvida ou quaisquer graus de certeza. Característica que chamamos de isenção de contradição mútua. Ao mesmo tempo, os processos do inconsciente não são ordenados temporalmente e podemos substituir a realidade externa pela realidade psíquica.
Deste modo, concluo meu relatório dizendo que importa mais saber para onde aponta o desejo de Herculine. O verdadeiro sexo anatômico, não pode ter relevância maior do que o posicionamento desse sujeito diante de sua realidade psíquica e na partilha dos sexos.   
S. Freud

Quando falamos de sexualidades, não diferenciamos homens ou mulheres a partir da anatomia, nem tampouco partindo de suas escolhas de objeto. Segundo Lacan, não haveria nada no psiquismo “pelo que o sujeito se pudesse situar com ser de macho ou ser de fêmea” (1964/1988, p. 194). Além disso, “as vias do que se deve fazer como homem ou como mulher são inteiramente abandonadas ao drama, ao roteiro, que se coloca no campo do Outro. [...] o que se deve fazer como homem ou como mulher, o ser humano tem sempre que aprender, peça por peça, do Outro. [...] A sexualidade se instaura no campo do sujeito por uma via que é a da falta” (p. 194). Homens ou mulheres, somos sempre seres faltantes.   
Só há uma certeza: seja nas escolhas de objeto sexual, seja no real do corpo de um hermafrodita, o sexo não se define pela anatomia. O sexo não se define no inconsciente, não se é homem ou mulher. Isso é o que menos importa, se é que importa. Os seres transitam e transam entre uma posição e outra, e o que importa a nós psicanalistas é ouvir o sujeito com suas questões, com sua sexualidade que, como afirmou Lacan, é definida pela falta. 
FOUCAULT, M. Herculine Barbin: o diário de um hermafrodita. Rio de Janeiro: F. Alves, 1982.
FREUD, S. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In: Edição Standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Vol. VII. Rio de Janeiro: Imago, 1905/2006.
FREUD, S. O inconsciente. In: Edição Standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Vol. XIV. Rio de Janeiro: Imago, 1915/2006
LACAN, J. O Seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1964/1988. 
 Trailer

Isloany Machado é Psicanalista, Escritora e Professora.  Membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano/MS. Especialista em Direitos Humanos pela UFGD e em Avessos Humanos pelo Ágora Instituto Lacaniano. Mestre em Psicologia pela UFMS. Despensadora da ciência e costuradora de palavras por opção, é autora dos livros “Costurando Palavras”  (ed. Life, 2012) e "Em Defesa dos Avessos Humanos" (ed. Life, 2014). Fundadora do blog  www.costurandopalavras.com.br