sábado, 26 de maio de 2012

Guerra & Paz

de Henrique Senhorini

Neste mês de maio, fui ver a grande obra de Portinari no Memorial da América Latina...
Foi seu último dia em terra Brasilis antes de percorrer o mundo e retornar ao seu habitat...a sede das Nações Unidas em NY.
Assim como no MAM doutra vez, eu encontrei Freud. Mas, desta feita, ele não estava só. No mesmo local,  para minha surpresa, estavam  reunidos para uma discussão, Freud mais Einstein e - retratando o encontro - o próprio Portinari.
A conversa transitava no entorno do tema da exposição - guerra e paz - quando, ao aproximar sem ser notado, pude escutar uma questão feita por Einstein, direcionada à Freud, provavelmente suscitada pelos gigantes painéis do artista de Brodowski-SP.

Prezado professor Freud, existe alguma forma de livrar a humanidade da ameaça de guerra?
Sei que nos escritos do senhor podemos encontrar respostas, explícitas ou implícitas, a todos os aspectos desse problema urgente e absorvente. Mas seria da maior utilidade para nós todos que o senhor apresentasse o problema da paz mundial sob o enfoque das suas mais recentes descobertas, pois uma tal apresentação bem poderia demarcar o caminho para novos e frutíferos métodos de ação.

Diante tal questão, resolvi ficar por perto, pois não poderia viver sem escutar a resposta do mestre. Mas, para não atrapalhar, mantive uma distância considerável por recomendação dos seguranças do museu, porém o suficiente para apreender algumas observações, das quais tentarei reproduzir abaixo:

Prezado professor Einstein, quando soube que o senhor intencionava convidar-me para um intercâmbio de pontos de vista sobre um assunto que lhe interessava e que parecia merecer o interesse de outros além do senhor, aceitei prontamente. Esperava que o senhor escolhesse um problema situado nas fronteiras daquilo que é atualmente cognoscível, um problema em relação ao qual cada um de nós, físico e psicólogo, pudesse ter o seu ângulo de abordagem especial, e no qual pudéssemos nos encontrar, sobre o mesmo terreno, embora partindo de direções diferentes. O senhor apanhou-me de surpresa, no entanto, ao perguntar o que pode ser feito para proteger a humanidade da maldição da guerra...

...Perdoe-me se, nessas considerações que se seguem, eu trilhar chão familiar e comumente aceito, como se isto fosse novidade; o fio de minhas argumentações o exige.
É, pois, um princípio geral que os conflitos de interesses entre os homens são resolvidos pelo uso da violência. É isto o que se passa em todo o reino animal, do qual o homem não tem motivo por que se excluir. No caso do homem, sem dúvida ocorrem também conflitos de opinião que podem chegar a atingir a mais raras nuanças da abstração e que parecem exigir alguma outra técnica para sua solução. Esta é, contudo, uma complicação a mais. No início, numa pequena horda humana, era a superioridade da força muscular que decidia quem tinha a posse das coisas ou quem fazia prevalecer sua vontade. A força muscular logo foi suplementada e substituída pelo uso de instrumentos: o vencedor era aquele que tinha as melhores armas ou aquele que tinha a maior habilidade no seu manejo. A partir do momento em que as armas foram introduzidas, a superioridade intelectual já começou a substituir a força muscular bruta; mas o objetivo final da luta permanecia o mesmo — uma ou outra facção tinha de ser compelida a abandonar suas pretensões ou suas objeções, por causa do dano que lhe havia sido infligido e pelo desmantelamento de sua força....

...Vemos, pois, que a solução violenta de conflitos de interesses não é evitada sequer dentro de uma comunidade. As necessidades cotidianas e os interesses comuns, inevitáveis ali onde pessoas vivem juntas num lugar, tendem, contudo, a proporcionar a essas lutas uma conclusão rápida, e, sob tais condições, existe uma crescente probabilidade de se encontrar uma solução pacífica...

...O senhor expressa surpresa ante o fato de ser tão fácil inflamar nos homens o entusiasmo pela guerra, e insere a suspeita, de que neles exige em atividade alguma coisa — um instinto de ódio e de destruição — que coopera com os esforços dos mercadores da guerra. Também nisto apenas posso exprimir meu inteiro acordo. Acreditamos na existência de um instinto dessa natureza, e durante os últimos anos temo-nos ocupado realmente em estudar suas manifestações. Permita-me que me sirva dessa oportunidade para apresentar-lhe uma parte da teoria dos instintos que, depois de muitas tentativas hesitantes e muitas vacilações de opinião, foi formulada pelos que trabalham na área da psicanálise?
De acordo com nossa hipótese, os instintos humanos são de apenas dois tipos: aqueles que tendem a preservar e a unir — que denominamos ‘eróticos’, exatamente no mesmo sentido em que Platão usa a palavra ‘Eros’ em seu Symposium, ou ‘sexuais’, com uma deliberada ampliação da concepção popular de ‘sexualidade’ —; e aqueles que tendem a destruir e matar, os quais agrupamos como instinto agressivo ou destrutivo. Como o senhor vê, isto não é senão uma formulação teórica da universalmente conhecida oposição entre amor e ódio, que talvez possa ter alguma relação básica com a polaridade entre atração e repulsão, que desempenha um papel na sua área de conhecimentos. Entretanto, não devemos ser demasiado apressados em introduzir juízos éticos de bem e de mal. Nenhum desses dois instintos é menos essencial do que o outro;

...os fenômenos da vida surgem da ação confluente ou mutuamente contrária de ambos. Ora, é como se um instinto de um tipo dificilmente pudesse operar isolado; está sempre acompanhado — ou, como dizemos, amalgamado — por determinada quantidade do outro lado, que modifica o seu objetivo, ou, em determinados casos, possibilita a consecução desse objetivo. Assim, por exemplo, o instinto de autopreservação certamente é de natureza erótica; não obstante, deve ter à sua disposição a agressividade, para atingir seu propósito. Dessa forma, também o instinto de amor, quando dirigido a um objeto, necessita de alguma contribuição do instinto de domínio, para que obtenha a posse desse objeto.

... quando os seres humanos são incitados à guerra, podem ter toda uma gama de motivos para se deixarem levar — uns nobres, outros vis, alguns francamente declarados, outros jamais mencionados. Não há por que enumerá-los todos. Entre eles está certamente o desejo da agressão e destruição: as incontáveis crueldades que encontramos na história e em nossa vida de todos os dias atestam a sua existência e a sua força. A satisfação desses impulsos destrutivos naturalmente é facilitada por sua mistura com outros motivos de natureza erótica e idealista. Quando lemos sobre as atrocidades do passado, amiúde é como se os motivos idealistas servissem apenas de escusa para os desejos destrutivos; e, às vezes — por exemplo, no caso das crueldades da Inquisição — é como se os motivos idealistas tivessem assomado a um primeiro plano na consciência, enquanto os destrutivos lhes emprestassem um reforço inconsciente. Ambos podem ser verdadeiros.

...Gostaria, não obstante, de deter-me um pouco mais em nosso instinto destrutivo, cuja popularidade não é de modo algum igual à sua importância. Como conseqüência de um pouco de especulação, pudemos supor que esse instinto está em atividade em toda criatura viva e procura levá-la ao aniquilamento, reduzir a vida à condição original de matéria inanimada. Portanto, merece, com toda seriedade, ser denominado instinto de morte, ao passo que os instintos eróticos representam o esforço de viver. O instinto de morte torna-se instinto destrutivo quando, com o auxílio de órgãos especiais, é dirigido para fora, para objetos. O organismo preserva sua própria vida, por assim dizer, destruindo uma vida alheia.
...Talvez ao senhor possa parecer serem nossas teorias uma espécie de mitologia e, no presente caso, mitologia nada agradável. Todas as ciências, porém, não chegam, afinal, a uma espécie de mitologia como esta? Não se pode dizer o mesmo, atualmente, a respeito da sua física?

...Em todo caso, como o senhor mesmo observou, não há maneira de eliminar totalmente os impulsos agressivos do homem; pode-se tentar desviá-los num grau tal que não necessitem encontrar expressão na guerra.

...Se o desejo de aderir à guerra é um efeito do instinto destrutivo, a recomendação mais evidente será contrapor-lhe o seu antagonista, Eros. Tudo o que favorece o estreitamento dos vínculos emocionais entre os homens deve atuar contra a guerra. Esses vínculos podem ser de dois tipos. Em primeiro lugar, podem ser relações semelhantes àquelas relativas a um objeto amado, embora não tenham uma finalidade sexual. A psicanálise não tem motivo porque se envergonhar se nesse ponto fala de amor, pois a própria religião emprega as mesmas palavras: ‘Ama a teu próximo como a ti mesmo.’ Isto, todavia, é mais facilmente dito do que praticado. O segundo vínculo emocional é o que utiliza a identificação. Tudo o que leva os homens a compartilhar de interesses importantes produz essa comunhão de sentimento, essas identificações. E a estrutura da sociedade humana se baseia nelas, em grande escala.

...O resultado, como o senhor vê, não é muito frutífero quando um teórico desinteressado é chamado a opinar sobre um problema prático urgente. É melhor a pessoa, em qualquer caso especial, dedicar-se a enfrentar o perigo com todos os meios à mão. Eu gostaria, porém, de discutir mais uma questão que o senhor não menciona em sua carta, a qual me interessa em especial. Por que o senhor, eu e tantas outras pessoas nos revoltamos tão violentamente contra a guerra? Por que não a aceitamos como mais uma das muitas calamidades da vida? Afinal, parece ser coisa muito natural, parece ter uma base biológica e ser dificilmente evitável na prática. Não há motivo para se surpreender com o fato de eu levantar essa questão. Para o propósito de uma investigação como esta, poder-se-ia, talvez, permitir-se usar uma máscara de suposto alheamento. A resposta à minha pergunta será a de que reagimos à guerra dessa maneira, porque toda pessoa tem o direito à sua própria vida, porque a guerra põe um término a vidas plenas de esperanças, porque conduz os homens individualmente a situações humilhantes, porque os compele, contra a sua vontade, a matar outros homens e porque destrói objetos materiais preciosos, produzidos pelo trabalho da humanidade. Outras razões mais poderiam ser apresentadas, como a de que, na sua forma atual, a guerra já não é mais uma oportunidade de atingir os velhos ideais de heroísmo, e a de que, devido ao aperfeiçoamento dos instrumentos de destruição, uma guerra futura poderia envolver o extermínio de um dos antagonistas ou, quem sabe, de ambos. Tudo isso é verdadeiro, e tão incontestavelmente verdadeiro, que não se pode senão sentir perplexidade ante o fato de a guerra ainda não ter sido unanimemente repudiada.


... Penso que a principal razão por que nos rebelamos contra a guerra é que não podemos fazer outra coisa. Somos pacifistas porque somos obrigados a sê-lo, por motivos orgânicos, básicos. E sendo assim, temos dificuldade em encontrar argumentos que justifiquem nossa atitude.
Sem dúvida, isto exige alguma explicação. Creio que se trata do seguinte. Durante períodos de tempo incalculáveis, a humanidade tem passado por um processo de evolução cultural. (Sei que alguns preferem empregar o termo ‘civilização’). É a esse processo que devemos o melhor daquilo em que nos tornamos, bem como uma boa parte daquilo de que padecemos. Embora suas causas e seus começos sejam obscuros e incerto o seu resultado, algumas de suas características são de fácil percepção. Talvez esse processo esteja levando à extinção a raça humana, pois em mais de um sentido ele prejudica a função sexual;

...As modificações psíquicas que acompanham o processo de civilização são notórias e inequívocas. Consistem num progressivo deslocamento dos fins instintuais e numa limitação imposta aos impulsos instintuais. Sensações que para os nossos ancestrais eram agradáveis, tornaram-se indiferentes ou até mesmo intoleráveis para nós; há motivos orgânicos para as modificações em nossos ideais éticos e estéticos. Dentre as características psicológicas da civilização, duas aparecem como as mais importantes: o fortalecimento do intelecto, que está começando a governar a vida instintual, e a internalização dos impulsos agressivos com todas as suas conseqüentes vantagens e perigos. Ora, a guerra se constitui na mais óbvia oposição à atitude psíquica que nos foi incutida pelo processo de civilização, e por esse motivo não podemos evitar de nos rebelar contra ela; simplesmente não podemos mais nos conformar com ela. Isto não é apenas um repúdio intelectual e emocional; nós, os pacifistas, temos uma intolerância constitucional à guerra, digamos, uma idiossincrasia exacerbada no mais alto grau.

...E quanto tempo teremos de esperar até que o restante da humanidade também se torne pacifista? Não há como dizê-lo. Mas pode não ser utópico esperar que esses dois fatores, a atitude cultural e o justificado medo das conseqüências de uma guerra futura, venham a resultar, dentro de um tempo previsível, em que se ponha um término à ameaça de guerra. Por quais caminhos ou por que atalhos isto se realizará, não podemos adivinhar. Mas uma coisa podemos dizer: tudo o que estimula o crescimento da civilização trabalha simultaneamente contra a guerra.
Espero que o senhor me perdoe se o que eu disse o desapontou.

E assim, finalizou a conversa entre ambos, Freud e Einstein, visto que a exposição no museu também chegara ao fim e as luzes se apagaram.

PS: Esse encontro nunca ocorreu no Memorial, exceto na minha imaginação. Entretanto, essa troca se deu em cartas, de Einstein para Freud e de Freud para Einstein, em 1932.

Outono


de Rodolfo Coelho

Olhar, verso da tarde
tarde, tarde
que me faz mais tarde
Tardância, outono
Abril zero hora
Os frutos estão verdes
e aurora não brilhou ainda
São 5:15 e meu pensamento voa
não encontro quem me queira
foi incerto o dia
as arrumações, sua coxa
antevista e revista
sinais transgressos
reunião de fatores gradativos
entre o bem e o mal enfim chega.


Rodolfo Coelho, poeta urbano, é autor de seis livros:
RuAugusta com Creme – O Lobo Mau da Rua Augusta  - ]gnição – 
Táxi e Outros Poemas Inéditos – Salada Paulista - Poesia 100 Filtro

domingo, 20 de maio de 2012

O Édipo Invertido

de Arnaldo Domínguez


Quiçá morramos nesse instante em que nos demos conta, em que admitimos que o mal tem uma estrutura lógica” (Santuário) – Osvaldo Lamborghini, fevereiro, 21, 1983. Carta à César Aira.



A feminilidade insuportável.
Esses amos e seu séqüito obediente!
Não podemos perdoá-los quando não sabem o que dizem.
O fato é que os humanos somos cruéis (nem sempre frios) com relação à fragilidade própria ou dos ditos semelhantes e sofremos de propensão ao bullying. Entretanto, nossa condição temporária na existência – entre o gozo e a dor e, nos extremos fundamentalmente, inter faeces et urinas – é cercada por fragilidade e desamparo, oriundas dos mundos interno e externo intimamente inter-relacionados.
Buscamos o aconchego do outro (Outro) através de vias amorosas e/ou sexuais. Isso também se compra. E, tantas vezes – quando fixados na compulsão à repetição – encontramos a série do sofrimento e da desilusão. Muitos/as gozam disso desabonando o novo que emergir. Dentre os quais, certamente, os fundamentalistas que promovem a fidelidade absoluta do/ao Grande Outro. Amor extático ao morto, pois ele seria o único capaz de cumprir as promessas. Lamentavelmente este Ser mítico – meio touro – nada nos prometeu. Em seus planos criadores não previu a nossa felicidade terrena.
Inqüestionável e obscuro – pela via da negativa e da projeção – exige em sacrifício um humano expiatório. Razões promotoras de transformação de sujeitos em objetos (fóbicos, fetiches, melancólicos, instrumentalizados para o Gozo do Outro).
Convertidos em signos denotativos do mal e da banalidade.

Curto circuito.

A diferença homem – mulher não pode ser inserida no inconsciente, afirmou Freud, ao referir-se à dimensão sádica do coito quando descreveu as teorias sexuais infantis. Entretanto, a saída do Complexo de Édipo se daria pela via da identificação às instâncias parentais (ou substitutas), constituindo o núcleo do super-eu, crítico e imperativo.
Chamou recentemente a minha atenção o relato de muitas analisantes que sucedeu ao último “dia das mães”. Seus maridos “estragaram” a comemoração. Num dos episódios (referidos na clínica), tal situação conflitiva desencadeou a ruptura definitiva da relação.
Pode ocorrer – escreve Freud em Psicologia das Massas – que o pai, numa postura feminina, seja tomado como objeto, do qual as pulsões diretamente sexuais esperam sua satisfação, e assim a identificação com o pai se torna precursora da ligação objetal com o pai. O mesmo vale, com as substituições pertinentes, para a filha pequena”.
O pai: que se gostaria de Ser. Que se gostaria de Ter.
Tal assertiva freudiana é, digo eu, assaz ambígua e contraditória. Penso que Lacan ultrapassou-a ao afirmar: Nem to be nem not to be. Ter (o falo simbólico), a condição adulta para gozar da vida.
Voltando à clínica e sua soberania.
Um homem que sofria de grave sintoma fóbico vinculado à chuva – e que, curiosamente, havia escolhido para morar uma região serrana, chuvosa – quando se 'armava a tormenta', corria ao berço do bebê, seu filho, e encostava sua cabeça no peito do infante. Quem pudesse observar concluiria que esse pai era um herói protetor. Todavia, muito envergonhado, confessou-me que – em verdade – buscava nesse abraço a proteção do filho.
É isso que eu chamo de “Édipo Invertido”. Quando o pai rivaliza com o filho, mesmo que tal abuso monte uma cena terna, equiparando-se e lhe roubando o lugar que ele merece de fato e de direito. “Meu pai me abraça, meu pai me ama”, acreditará. Não só de espancamentos se constituem as perversões.
Há algo desta ordem nos estragos da comemoração materna. E parece mais freqüente do que gostaríamos de admitir, forçando-nos a reatualizar a teoria da sedução abandonada (?) por Freud em 1897.
Quero aproveitar, aqui, para homenagear e agradecer devidamente ao meu pai, quem, nessas datas simbólicas, combinava comigo o secreto com o que eu surpreenderia a minha mãe – afinal, criança e sem mesada... - deixando assim a constância de que o lugar de filho me pertencia. Digamos que corrigiu o estrago narcísico do nome (que demorei a torná-lo próprio). Nem tudo pode dar certo. Porém, eu pude escolher o cartão que tinha inscrita a dinâmica estrutural: “madrecita mía”. Mulher dele.
Dinâmica esta facilitadora da ambivalência afetiva bilateral fundamental ao Complexo e sua dissolução e que me habilitou para amar homens, mulheres, bichos e a terra, planeta água. Claro que não tod@s!
Amar, como disse Rilke aproximadamente, sendo o encontro das fragilidades que em lugar de se hostilizarem, se protegem.
Contudo, há – em todos os pais – um quê de inversão edípica. Experiência revivida em cada nova filiação, assim como os analistas revivemos algo da própria análise em cada atendimento. Contratransferência calculada, digamos. Tem outra, a incalculável.
Que pode tornar-se negativa e daninha. Sobre tudo quando insiste qual interesse exclusivo.
O interesse exclusivo do homem pela mulher também é algo que merece esclarecimento psicanalítico. Como tudo o que for excludente e forçado. Ou, ou.
Sempre pode ocultar algo da ordem do fetichismo para além do investimento parcial embutido no amor. Ou do canibalismo, primeira identificação. Decifra-me ou te devoro! (Uma analisante demandava ameaçadora ao sujeito do suposto saber: decifra-me ou “me” devoro! E eu situei ali o ativo esforço da satisfação masoquista).
Analistas que se “chocam” - ou que temem uma reviravolta em suas cenas primárias quando se deparam com certas montagens fantasmáticas dos analisantes, cada vez mais atuadas no mundo da janela virtual - e que prefeririam envia-los/as para além-mar para ver se encontram por lá – bem longe – seus destinos funestos, como escrevera Freud ao triestiano Weis referindo-se a seu primo irreverente, também inscrevem-se nesta categoria da inversão.
Isso não significa que minha proposta seja a de atingir o extremo (masoquista) de suportarmos qualquer coisa. Risco que sempre corremos com nossa oferta-demanda na posição de objeto.
Há limites! Isto disse uma analista ao expulsar um analisante que, ao depois, concluiu comigo a sua análise. E ali soubemos que os limites dela esbarraram na moral de um curto circuito. O que também representa uma das aporias perigosas deste nosso método nada inofensivo.
Finalizo com uma questão inspirada em Collete Soler e transformada por mim.
Porquê não seria possível, um homem, oferecer-se como objeto para outro – o mesmo vale para uma mulher e outra – sem que com isto se busque o sofrimento?
Será sempre uma perversão?
Não existirá a perspectiva de que o amor seja por outro? Semelhante na falta (duas carências), mas, definitivamente, outro. O que implica em não negar as diferenças.
E então, por fim, tenhamos que chamá-los de “héteros” apesar da famigerada e combatida “homosexualität”. A mais abominável das perversões.
Restará, para nossa sorte, um ponto cego – de hamartia – na psicogênese e no genoma que batem no coração da condição humana, demasiadamente humana.
E com isso tod@s teremos que savoir e faire.
Itaquaciara, Itapecerica da Serra, 19 de maio de 2012.

ARNALDO DOMÍNGUEZ é psicanalista e professor do CEP - Centro de Estudos Psicanalíticos, fundador do PROJETO ETCÉTERA E TAL... Psicanálise e Sociedade, conselheiro da Biblioteca Popular de Itaquaciara D.Nélida, colaborador da Escola da Causa Analítica e integrante do Instituto Tempos Modernos Brasil e Argentina.

domingo, 6 de maio de 2012

Amor e Ódio

um filme de Roselyne Bosh/2010
por   Heloisa Grobman

Amor e Ódio é um filme que retrata a ocupação nazista na França, ambientado em Paris no ano de 1942. Na bela cidade o contraste entre a alegria anterior dos judeus franceses e o golpe de Hitler sobre eles, negociado com o governo francês.

A crença nos ideais franceses e a luta por estes havia assegurado estas famílias de enfim estarem acolhidas e protegidas pelo país. É exatamente isto que dificulta o reconhecimento e fuga da situação apesar das notícias, um sentimento de esperança, que vai atravessar o enredo, personagens e público, do início ao final do filme.

Dos personagens, alguns marcam "corpo e alma" da ocasião, como o ex-combatente que acredita na gratidão e proteção francesa à sua família, sua mulher judia e seus filhos dos quais um irá sobreviver,” Jo” . De outro grupo familiar, a mãe morre durante a ocupação e de seus filhos, o pequeno "Nono" também será personagem que marcará os sentimentos de esperança e de amor que persistem durante o processo.

Retirados de suas casas, mais de 20 mil judeus, crianças, mulheres, idosos e mesmo aqueles que estavam hospitalizados são levados a um ginásio em Paris, onde passam alguns dias até que as negociações entre Hitler e o governo francês chegam a cabo, quando então são levados para campos de concentração ao leste da Europa. A trajetória até o extermínio passa pela separação de homens, mulheres e crianças e assim as famílias se desfazem e a cada passo vão percebendo seu destino cruel .

Momentos de alegria e soltura entre os personagens, enquanto juntos no ginásio e no primeiro campo de concentração, são bem retratados em cenas nas quais as crianças brincam, as famílias jogam cartas e dançam os casais e crianças empolgados pela música, em meio à fome e a repressão dos soldados, exemplo do sentimento de amor e esperança nutrido pelos ideais franceses nos judeus que moravam neste país na ocasião. Este detalhe se torna fio condutor da história, e nos faz questionar as diferentes vivências do holocausto, em acordo com as diferentes culturas de cada povo judeu na Europa, levado ao extermínio por Hitler.

Personagens fundamentais no enredo, o médico judeu que levado no grupo para a mesma finalidade, tem a permissão de tratar os doentes, e a enfermeira protestante que acompanhará as crianças até o penúltimo momento, quando se perde delas e do pequeno Nono.

O final comovente com alguns sobreviventes fugitivos, personagens que melhor representavam os sentimentos de amor e de esperança, quer pela íntegra oposição aos  nazistas ou pela total inocência do que viviam.

No “pano de fundo”, Hitler é interpretado em constantes festas e reuniões sociais, é menos fanático e mais consciente do que faz do que costumeiramente representado em outros filmes e documentários. As relações com os governantes franceses revelam a preocupação destes quanto à imagem que abalada traria perda de poder e abalo econômico para França, que até então cedia sua população judia em nome de uma pretensa barganha de liberdade temendo os próximos avanços nazistas no país, que de fato ocorreram.

Lançando um olhar foucaultiano, vemos um discurso intrínseco centrado no anti-semitísmo, e além , fazendo “borda”, uma disposição extradiscursiva  determinante do  evento histórico, ou seja, comparando com outros eventos de segregação e perseguição na história, os mesmos  interesses econômicos, políticos e religiosos como condições de possibilidade.

Este olhar sobre crime e doença com origem em determinantes sociais, é coincidente com o entendimento de Lacan (1966):

                    “Nem o crime nem o criminoso são objetos que possam ser concebidos fora de uma referência sociológica”
(em Os Escritos –“ Introdução teórica às funções da psicanálise em criminologia”).

Podemos considerar neste sentido os aspectos econômicos da Alemanha pós 1ª Guerra, sua necessidade de reerguer-se economicamente, como condição para a inversão do sentimento de inferioridade em exacerbação nacionalista, a “raça ariana” sonho enaltecido por Hitler entra como aspecto “religioso” visto por este ângulo, no sentido em que faz efeito de verdade sem crítica, capaz de doutrinar os soldados e forças de guerra alemãs às maiores barbáries e crimes contra a humanidade.

A sociedade européia neste clima, após a 1ª Guerra, ofendida em suas condições “civilizatórias”, em sua lógica burguesa, organizada desde a consolidação da burguesia enquanto classe política e economicamente dominante; permite o crescimento do nazismo, e assim o papel de “bode-expiatório” para os judeus, enquanto de fato é no interior de cada país e no conjunto destes em desenvolvimento capitalista, que as diferenças sociais ameaçam a própria estabilidade das classes dominantes.

Vemos este fenômeno bem representado pelo comportamento dos soldados no filme, muitas vezes empáticos com os judeus aprisionados, com o mesmo sentimento de dominação e sujeição, próprio da hierarquização militar.
Ressaltar o aspecto político-econômico como condição tanto para a 1ª como para a 2ª guerra, torna-se necessário para o entendimento mais aproximado das figuras de “corpo e alma” daquele momento, atravessadas pelas formas sociais, civilizatórias e de religião, produto e produtoras de subjetividades.


Cada personagem em Amor e Ódio oferece um recorte subjetivo, e nesta multiplicidade o espectador pode identificar-se e realizar, ou seja, ter uma percepção quase própria do que foi vivido no Holocausto, mais do que conhecer apenas como fato histórico e passado.  

Heloisa Grobman é Psicanalista com experiência em Psicopatologia, Filosofia, Desenvolvimento Infantil e em Políticas Públicas com ênfase na Saúde Mental.