sábado, 20 de setembro de 2014

A Pergunta dos Seus Olhos

de Aline Fiamenghi


O filme em questão nessa edição é “O Segredo dos Seus Olhos” de Juan José Campanella, maior audiência nos cinemas argentinos em 35 anos. Ricardo Darín interpreta Benjamín Espósito, que aposentado escolhe para tema de seu livro o caso criminal que mais marcou a sua carreira no Tribunal de Buenos Aires. Na organização dos fatos rememorados, ele revê o homicídio investigado em 1975 e termina por repensar as decisões feitas no passado.


Discutiremos a saga do protagonista na busca pela letra do seu desejo. Na oportunidade de escrever o romance de sua vida, ele percebe, como em um jogo de espelhos, como os personagens movidos por olhares, intenções e paixões, se denunciam. 


Entre o homem e o amor,

Há a mulher.

Entre o homem e a mulher,

Há um mundo.

Entre o homem e o mundo,

Há um muro”  

Antoine Tudal


O muro

Impacta o impedimento que Espósito vive em relação ao amor. Como se houvesse um muro, quase palpável para o espectador, o protagonista se aliena da sua condição desejante. Essa (im)possibilidade angustia.

Espósito se apaixona por Irene na primeira vez que a vê, quando ela ocupa o cargo de chefia em seu cabinete. Desde então eles mantém uma relação estreita, mas ele é claramente ambivalente em relação a ela.

O protagonista fica paralisado perante o pedido de amor.


O amor


TEMO, é a palavra que acorda nosso protagonista no começo do filme e o faz estranhar-se. O que há nisso? É como ele soubesse, sem saber, que havia algo ali. Na palavra, uma brecha, uma fissura, que o faz movimentar-se. O que há por trás da vontade de escrever o livro? Ele é o autor de que história? 


É nesse ponto e com essas perguntas que seguiremos o percurso do bilhete: TEMO. 


Somos levados a pensar que o remetente é algo ou alguém em Espósito, ele próprio autor e endereço dessa mensagem. A saga segue no sentido de recuperar a “letra enigma”, a letra “a” faltante tantas vezes em sua escrita e em sua máquina de escrever.


A letra que foi perdida, mas que paradoxalmente, está lá o tempo todo, pedindo um leitor, olhos que a leiam. Talvez essa seja “a pergunta de seus olhos”, nome da novela de Eduardo Sacheri que deu origem ao filme, oportunamente reeditado. Em castelhano e em português o pronome possessivo “seus” não indica gênero, pode ser dele, dela, de outro, ou dos demais.


Os olhos circunscrevem um lugar, diferente do olhar, circunscreve um campo de experiência, de tensão do não-dito: sua intensidade, sua atmosfera, sua melodia, a espessura do vivido, e assim, denunciam o impedimento, a inibição, a paixão.


Podemos dizer que esse é um filme sobre paixões: a de Espósito por Irene, a de Morales por Liliana, a de Sandoval pela bebida, a paixão pelo futebol. “Podemos mudar tudo na vida, menos mudar de paixão”, nessa fala a pista que ajuda Sandoval e Espósito a capturarem o assassino. Por que não muda-se de paixão? Onde ela captura? No objeto perdido, o objeto a, que causa.


Espósito se identifica com Morales, que para ele é o homem que realmente ama, ele diz sobre Morales: “ele está sempre em um estado de amor puro, posso ver em seus olhos”. Mas o que será esse estado puro, absoluto que é visto por Espósito no olhar de Morales? Espósito quando fala de Morales, fala de Espósito não de Morales... No olhar algo do insconsciente está posto.


O amor puro só poderia ser a morte, a prisão que encarcera o carcereiro junto ao assassino. Já que a justiça não garantiu pena justa a Gomez, Morales resolve fazer justiça e dá sua medida ao castigo: prende o assassino e o priva de sua palavra. Nessa recusa da palavra, o apagamento do sujeito. É como se Morales quisesse negar existência a Gomes, mas não com a morte, com a prisão perpétua da morte em vida, o que é muito pior.


Ao se deparar com a miséria da prisão imposta pela paixão do carcereiro e do assassino, Espósito se depara com a própria prisão-paixão e consegue sair dessa posição. Recupera a letra e então pode lê-la, por “mais complicado que possa vir a ser”, ele não se importa mais: de TEMO à TE(A)MO, o percurso para uma condição desejante.

São Paulo, 29 de Julho de 2010

Trailer Oficial do Filme

Endereços/links para filme completo com legenda:   https://www.youtube.com/watch?v=03QTWAd9qtg
e   https://www.youtube.com/watch?v=e6Yb_FP7hMY


Aline Fiamenghi é praticante da psicanálise, mestre em psicologia clínica pela PUCSP, coordena o trabalho de Imaginação e(m) Movimento a partir de seus conhecimentos em consciência corporal, movimento autêntico e dança contemporânea. Participa da rede de pesquisa Sintoma e Corporeidade no Instituto da Pele - UNIFESP e das Formações Clínicas no Fórum do Campo Lacaniano - SP.