domingo, 15 de dezembro de 2013

Puzzle - Compulsões Sexuais (toda compulsão é sexual)

de Arnaldo Domínguez de Oliveira

... a palavra em seu estado de representação...” Rui Filho
Uma compulsão é alguma coisa que empurra – zwang – à repetição de dizer, fazer ou pensar alguma coisa. Compete a nós, psicanalistas, “domar a compulsão de repetição” e transformá-la em motivo para recordação na ‘neurose de transferência’, uma neurose artificial.
Será também de nossa competência apoiar o fechamento do vão livre do MASP contra a invasão dos “craqueiros” e outros tipos indesejáveis? – lugar onde eu próprio conheci nos anos oitenta, um “Orixá” graças a cuja intervenção posso ainda estar neste país. Talvez sim. Hoje em dia eu nem frequentaria esse lugar urbano em horários impróprios.
Os humanos – segundo Freud em Novas Recomendações Sobre a Técnica, 1913 – somos a miúde adeptos à “política do avestruz”. Digamos, à razão cínica pela via da Bela Indiferença ou da Alma Bela. Seremos, então, os psicanalistas os domadores que colocaremos às rédeas da transferência nas pulsões indomadas? Entretanto, posto que o analisante não reproduzirá o esquecido ou recalcado como lembrança, senão que o atuará, ele não poderá se livrar da compulsão à repetição por ser o modo de recordar de que dispõe.
Em 1932, por ocasião das Novas Conferências apenas escritas em plena crise de falência da editora da IPA – quando esse autor acreditava produzir seu último livro – Freud associou os “sonhos de punição” ao supereu e os ”sonhos de angústia” à Compulsão de Repetição já ligada à Pulsão de Morte no Mais Além do Princípio do Prazer de 1920.
Ele próprio parece-me que se livrava da angústia da temporariedade numa compulsão pela escrita. (Tomara que nos contagiemos deste sintoma). E assim Freud enviou uma carta para Max Eitingon em 20 de março de 1932, onde dizia: “Sempre se deve estar fazendo alguma coisa, mesmo com o risco de ser interrompido – mais vale isso do que desaparecer em estado de preguiça”.
E por falar sobre a escrita eu assisti ontem (28 de novembro de 2013) no Teatro Paulo Autran, em São Paulo, o “Lado A” da peça “Puzzle”, dirigida por Felipe Hirsch. Um quebra-cabeça em três partes (A, B e C) apresentado para o Programa Brasil Convidado de Honra da Feira do Livro de Frankfurt neste mesmo ano. Um Brasil já não mais colorido, como àquele dos tempos de Carmem Miranda, senão o atual, em branco e preto.
Cíntia Moscovich na Zero Hora comentou: “’Puzzle’ mostra na Alemanha um Brasil tão de verdade que chega a ser constrangedor: sem concessão alguma”.
Hoje eu penso que Genet resulta quase ingênuo perante a “literobucetalidade” de uma escritora ou frente ao discurso de nossos guardiões da ordem estabelecida que gritam: “que se foda toda metapsicologia”. “A gente é burra mesmo!”. Aliás, “burros” porque somos machos!
Eu já havia redigido o texto que segue antes do espetáculo e vivi um déjavú ao experimentá-lo. Pois bem, vamos enfrente, não fui inibido por isso, senão que me senti empurrado: “O leitor abrirá Nossa Senhora das Flores como se abrisse um armário de um fetichista e encontrará ai, dispostas nas prateleiras, como sapatos que foram cheirados e beijados e mordidos cem vezes, as palavras úmidas e perversas que brilham com a excitação que elas despertam em outra pessoa e que nós não podemos sentir”. Jean-Paul Sartre
.Os sonidos do silêncio. As palavras a que Sartre se refere ao apresentar o livro de Jean Genet, “Nossa Senhora das Flores” (Ed. Nova Fronteira) são materializações de uma Wiederholungszwang (compulsão à repetição no dito ou na escrita), que se manifestam em letras substitutas dos objetos fetiches tais como seriam os sapatos mordidos. Digamos, então, que falar também é um gozo e que tais palavras gozadas podem comparecer na cena dialética para fornecer um brilho de excitação que muitos não poderemos sentir, mas poderemos escutar se suportarmos o silêncio presente nos meandros. Destas materializações Freud certamente condensaria em nota de rodapé nos Três ensaios: As fantasias claramente conscientes dos perversos (que, em circunstâncias favoráveis podem transformar-se em atos), os temores delirantes dos paranoicos (projetados em outrem num sentido hostil), e as fantasias inconscientes dos histéricos (descobertas por trás de seus sintomas através da psicanálise) e coincidindo até os mínimos detalhes em seu conteúdo. Entretanto, a teorização tantas vezes assumirá também um teor compulsivo invasor, por exemplo – em nossa prática psicanalítica – dos escritos, dos debates, das supervisões em grupo, etc., quiçá visando por um lado, preencher todas as frestas de angustia que o não saber produz em nós e por outro, provavelmente, seduzir o interlocutor quando posicionado nos extremos lugares de + 1 ou de não saber interessado (histérico). Seja como for, a clínica sempre se sobrepõe instrutiva para o bom escutador. Em nosso campo de investigação privilegiado pela relação transferencial a histérica insiste em nos tornar mestres e é expert em encurralar-nos contra a parede para exigir a produção de um saber. Decifra-me ou me devoro! Assim era enunciada a ameaça autopunitiva forjada pelos excessos de uma mulher obesa cuja demanda era endereçada a mim.
Em contrapartida, o perverso anuncia – pleno de mestria – seu direito ao gozo. Assim gravou uma mensagem em minha Caixa Postal do telefone fixo: “Yo tengo derecho a chuparte la pija y quiero saber quién será el hijo de puta que me podrá impedir!”, e essa enunciação de “direito” (do mal) representava o grito proferido depois que o paciente fora informado sobre meu recurso às leis jurídicas para me defender de sua ameaça erotomaníaca e de sua denúncia no Conselho Regional de Medicina alegando que eu o teria “seduzido no divã”, o que lho autorizava ao usufruto do caráter descrito por Freud (sem mencionar o Édipo): As Exceções. Antes do ato me fizera saber que, em sua adolescência havia perdido uma importante bolsa de estudos e fora detido (e humilhado) na delegacia de polícia ao ser encontrado praticando a fellatio no namorado da professora de Geografia (dele). Seu pai concordara plenamente com tal punição e sua mãe, que foi, durante a infância dele, amante do médico da pequena cidade utilizando-o como álibi perante as eventuais suspeitas do marido, desta vez não demonstrou a cumplicidade (devida) esperada por ele, pois se inverteu a dívida simbólica.
Escreveu Freud nos Três Ensaios: “O caráter histérico permite identificar um grau de ‘recalcamento sexual’ que ultrapassa a medida normal... Esse traço de caráter, tão essencial na histeria, não raro escapa à observação casual, ficando encoberto pelo segundo fator constitucional da histeria, ou seja, o desenvolvimento desmedido da pulsão sexual;... enigmática contradição – par de opostos – uma necessidade sexual desmedida e uma excessiva renúncia ao sexual”.
Não podemos esquecer que, para Freud, a fantasia (fantasma perverso) é positiva (consciente) na perversão e negativa (inconsciente) na neurose.
E na psicose retorna desde fora onde foi projetada de maneira hostil: uma paciente que vinha regularmente às sessões em que estava terminantemente proibida (por ela e por seu delírio) a emissão de qualquer som ensinou-se duramente a dar suporte a todo o seu silêncio constrangedor e ajudou-me a constatar que eu poderia suportar o meu próprio silêncio. Por outro lado, uma analisante de elevada formação intelectual me advertiu durante uma sessão: - Não leve tão em sério as minhas arguições. Elas, muitas vezes, se exibem usando lingerie vermelho!
Contudo, suportar os silêncios não é tarefa muito simples. Ainda mais, quando eles se apresentarem na forma de desafios, pois nestes casos competirá ao analista fazê-los falar ou calar, dependendo da motivação. Cito como exemplo, o torpedo enviado por outra analisante que disse: - Desculpe, eu não vou... desculpe por perturba-lo... Agradeço mais não vou... Eu só quero desaparecer e silenciar
E essa proposta de silêncio seria um grito de desespero ou uma constatação suicida? Há um ruído que pode ser ensurdecedor nestes silêncios. Os humanos somos muito ruidosos porque a pulsão sexual, mesmo surgindo na calada da noite, é sempre barulhenta. Apesar de que quando se mostrar charlatã pode também nos enganar com uma roupa que não conseguiremos ver se não pudermos fechar os olhos (da pulsão) onde o rei está nu!
Primum non nocere!
Os antigos celebravam a pulsão e se dispunham a enobrecer com ela até mesmo um objeto inferior, enquanto nós menosprezamos a atividade pulsional em si e só permitimos que seja desculpada pelos méritos do objeto”, Freud, Três Ensaios – Nota de rodapé acrescentada em 1910.
O tema do diagnóstico em psicanálise é sempre um assunto de grande relevância, sobre tudo, para que não provoquemos surtos psicóticos por imperícia. Mas, muitas vezes, tal debate pode apresentar-se qual um modo de tamponar o que falta: o não saber. No discurso da sexologia oitocentista e persistindo ainda na teoria freudiana, a perversão referia-se às condutas sexuais cuja finalidade era diferente da procriação. O avanço promovido pela psicanálise consistiu em torna-la um elemento sempre presente seja de maneira negativa ou positiva, em todos nós.
Para Lacan, no Seminário IV (As relações de objeto), a perversão está considerada em relação ao falo e à identificação. O paradigma é o fetichismo, pois o fetichista se identifica com o falo como objeto imaginário que completa o desejo materno. Primeira fase do Complexo de Édipo (Seminário V, As formações do inconsciente). Ser ou não Ser, 1957/58. No Seminário X, sobre a Angústia, o falo será o significante do desejo, causa do desejo: objeto ‘a’ e muda assim o estatuto do fetiche que passou de “ser o falo” a ser o “objeto causa do desejo”. No Seminário XVI (De um outro ao Outro), Lacan eleva a perversão ao grau de estrutura. Posição do sujeito perverso: identificação com o objeto ‘a’ para servir, de tal maneira, como instrumento do Gozo do Outro. Um bom exemplo disto é o discurso de Feliciano no atual comando da Comissão de Direitos Humanos no Planalto Central do país com cinco mil alto falantes!
Eu acrescentarei aqui, a estes critérios lacanianos para pensarmos sobre a perversão, a constatação discursiva da negação da alteridade e, em consequência, da subjetividade que constitui o outro enquanto tal, diferente de mim, indo, assim, do sexual ao social.
Digamos como exemplo, Maluf ao relatar sua lua de mel ocorrida há 58 anos antes da entrevista diz: eu me casei em tal data, viajei para tais e tais lugares, fiquei em tais hotéis, etc. Parece-nos que a esposa não participou dessa experiência, ao menos no discurso dele não há lugar para isso. É o UM de dois.
Pois bem: sob a desconfiança diagnóstica de “perversão” foi apresentado, numa “hora clínica” (no CEP), um recorte referente ao atendimento de uma mulher casada com seu primo irmão quem também tinha um caso amoroso com a cunhada (irmã da esposa) dentro da residência do casal. Ela, por sua vez, iniciara um relacionamento com um Policial Militar, guarda da creche onde deixava o filho. Os encontros sexuais aconteciam pela manhã e dentro do carro dela. O marido, desconfiado, colocou uma escuta no carro e descobriu tudo. Depois disso, ele ficou ainda mais apaixonado e excitado o que o fez procurá-la sexualmente a toda hora. Assim, entre o policial pela manhã e o marido à tarde e à noite, ela chegou à análise chorando e se queixando:
- Não aguento mais transar!
Porém, não conseguia parar, afinal, o marido afirmara: “Você é uma mulher muito gostosa para ser somente minha!”. E a analista pensou: “o homem se reconhece amando quando sente ciúmes”?
Não conseguir parar coloca a questão desta mulher numa dimensão temporal. É o tempo que não para!
Conforme Hegel, o primeiro monista, a temporalidade está incluída na razão no pensamento ocidental. Na origem do ser se encontra o espírito (existência em si). Para ir em direção a si o ser tem que se expressar: dirigir-se à matéria> natureza> história> homem> consciência> filosofia> e por fim, numa elipse recuperar a história do espírito. Em Hegel, o desejo é sempre desejo de desejo (Fenomenologia do espírito). Já para Marx o espírito surge como expressão da consciência humana e não como a origem. Lacan demonstrou como o Eu vem de fora, no Estádio do Espelho, sendo uma ilusão na qual eu me alieno para poder me reconhecer: quem sou eu?
Quero dizer com isto que “o princípio de identidade é diferente para a psicanálise e para a ciência, com o qual digo que a psicanálise não é uma ciência” afirmou Graciela Brodsky em Córdoba (16 de outubro de 2006) ao falar sobre “A diferença sexual na experiência analítica”.
Para a psicanálise freudiana, o espírito que age inconscientemente na sobredeterminação do funcionamento do Eu é a Fantasia Inconsciente - o Fantasma - realidade do inconsciente enquanto sexualidade (falta em ser). E é próprio da lógica do Fantasma que os sujeitos inventemos um lugar incestuoso que funcione qual “identidade” destinada a negar a falta. Nesse caso relatado pela paciente foi: a “gostosa”.
A proposta do fantasma é a realização do incesto e como múltiplos fantasmas em massa constituirão o social e possível supor que a realidade social em que estamos inseridos tenha estrutura fantasmática regressiva, ou seja, contra a lei. Podemos afirmar que esse social seja um estado de exceção: de destruição. Ou, pelo menos, um estado pleno de direitos (sem deveres) para alguns “eleitos” representantes da Vox Pópuli. Um estado de perversão. Por isso é fundamental, de acordo com Freud, que exista ao menos uma lei reguladora que controle o mal estar na civilização: não matarás! Entretanto, essa lei falta (falha) em muitas circunstâncias em nossa cultura o que faz com que nos tornemos cada vez mais “matáveis” conforme afirma Giorgio Agamben em seu escrito sobre o Homo Sacer e a vida nua.
Ao dizer de Albert Camus sobre o mito de Sísifo, é essa dor sem escolha (dor de existir) que o obriga a realizar um trabalho inútil e sem esperança e o transforma em proletário dos deuses, trágico porque consciente: “a tragédia começa no momento em que se sabe”. Daí a importância que eu outorgo ao citar sempre o imperativo categórico formulado pela mãe romena do meu amigo Schlomo: melhor você não sabe! A paixão pela ignorância que pretende defender pela via do verleugnung (desmentido) que A vida é bela!
E eis que começou a tragédia dessa analisante “gostosa” porque veio para construir um saber. O que também a situa dentro da perspectiva ética do desejo. Veio em busca da lei do desejo para escapar da lei do gozo.
Comparemos, então, este breve relato clínico com uma matéria publicada na http://revistatrip.uol.com.br/revista/179/reportagens/Ruth-pega-geral.html, em 01/10/2013 e que me foi sugerida pelo jornalista Romulo Osthues, a quem agradeço profundamente.
Ruth pega geral: Ruth, 52 anos, professora, transa com até 41 homens numa noite sem cobrar e sem perder o tesão. São sessões de gang bang. Durante a reportagem um homem sai cambaleando da suíte nomeada “O cantinho da Ruth” e desabafa: “Porra, merrrmão, foi surra de boceta, foi surra!”. Quem bateu no grandalhão foi Ruth! Escreve Lino Bocchini na revista, como se fosse um espetáculo de luta. E talvez o seja, não?
Novamente o tempo: “A celulite já está aparecendo, e as ruguinhas também... mas os peitinhos continuam em pé e a bundinha, durinha, fazendo o maior sucesso. A vontade de trepar segue no auge, e minha resistência para ser fodida diversas vezes seguidas não diminuiu. Aliás, acho que aumentou!”
Ela se tornou uma celebridade na cena swinger carioca e na internet ganhou fama como Ruth36. O marido explica que é por ter transado com 36 homens numa noite só, mas já bateu o recorde. Agora são 41.
A explicação de Ruth sobre as origens desse espírito erótico está na infância, quando brincava de médico com os meninos do prédio. “Hoje eu adoro quando tem uma meia dúzia de homens em torno de mim, me usando e abusando”. Festas liberais! Sou total flex! (Homens e mulheres), afirma Ruth.
As pessoas podem assistir tudo o que rola dentro do Cantinho da Ruth através de um vidro e sentadas confortavelmente em uma sala de estar.
Ruth aguarda com ansiedade as quintas feiras, quando tudo acontece e ela tem que estar “gostosona”. Gosta de se definir como uma “exibicionista completa”. Conta com alegria como teve um caso amoroso com oito fuzileiros navais ao mesmo tempo. De acordo com o repórter, narra isto com a mesma naturalidade com que poderia falar sobre o café. Na última quinta – diz – morreu de prazer durante um gang bang anal com 15 homens.
Todavia, considera que as melhores transas da noite são, depois, com o marido que não tem ciúmes em absoluto. Porém, faz uma ressalva: evita o sexo quando está menstruada.
A matéria esclarece: se trata de um casal de vida social normal, profissionalmente bem sucedido, pais dedicados e, além disso, muito educados e simpáticos.
Mas o marido alerta: “Ela gosta de carinho, de cuidadinho. E não gosta dessa história de tapa na bunda, que puxem o cabelo ou apertem o bico do peito muito forte. Isso corta o barato dela”.
E assim falava Ruth VIP: a Very Important Puta.
Finalmente a reportagem dá a palavra aos psicanalistas, que explicarão: relação anaclítica, Mauro Hegenberg, sem querer ser politicamente incorreto. Insaciabilidade e voyeurismo constituiria o casal, sendo o único limite, a menstruação. Sueli Gevertz. Ruth oferece de graça aquilo que a sociedade de consumo cobra, diz Jacob Pinheiro Goldberg. Ruth tem uma compulsão, conclui Luiz Alberto Hans. E postula uma contabilidade que para mim soa estranha: transar com cinco é uma coisa, já com 30 é outra. (?)
Os psicanalistas também gostamos muito de falar e às vezes beiramos pelas bordas de certo exibicionismo. Quiçá seja porque o dispositivo nos obrigue a permanecer tanto tempo em silêncio. Todavia, neste caso, Ruth não quer saber (não demandou nenhuma explicação, pois ela “sabe” gozar) e é provável até que se divirta com os disseres dos peritos. Porque, para Ruth (a despeito de Lacan) a Relação Sexual existe! E é nessa tão estranha contabilidade incompreendida por Hans – para ela, certamente, um pequeno Hans – que ambos (ela e seu marido) realizam em Áurea Proporção, o encontro com o Número de Ouro da substância gozante: o objeto “a”. E a perspectiva da Castração apenas acena marcada numa existência temporal (futura) que será postergada enquanto a bundinha e os peitinhos permanecerem duros. Ou seja, enquanto possa se manter – dentro de uma lógica masculina – a Idade Viril.
Eu desconfio que seja dentro desta lógica que assim caminhe a humanidade globalizada. E que esta represente a tal corrida contra o tempo proposta pelo capitalismo tardio, pós-modernidade, globalização, neoliberalismo, para todos os proletários, atuada por Ruth36 às quintas feiras num jogo incessante de repetição que não resulta tão estranho se nós levarmos em consideração a parte que nos cabe neste latifúndio da existência contemporânea. Como define Bauman, tão líquida. Tanto, que escorre pelo vão de nossos dedos entrelaçados. Afinal, embora ainda não fôssemos capazes de inventar algum novo discurso eficaz sobre o amor, já tornamos a enobrecer a pulsão, como os antigos, mas quiçá só gozemos degradando o objeto. 

Itaquaciara, 16 de novembro de 2013

Arnaldo Domínguez de Oliveira é Psicanalista e Professor do CEP - Centro de Estudos Psicanalíticos, fundador do PROJETO ETCÉTERA E TAL... Psicanálise e Sociedade, conselheiro da Biblioteca Popular de Itaquaciara D.Nélida e médico de formação.

domingo, 1 de dezembro de 2013

Em “Um Homem Sério” dos Irmãos Coen: Neurose Obsessiva e Produção de Indeterminação

de Christian Ingo Lenz Dunker
1. A Função do Amor na Neurose Obsessiva
O filme “Um Homem Sério” (A Serius Man) dirigido pelos irmãos Coen (2009) é uma releitura do livro de Jó à luz da proverbial experiência suburbana de um professor de classe média, Lawrence Gopnick (Michel Sthulbarg).
A atitude de obediência e impassividade do protagonista serão expostas crescentemente a uma experiência de indeterminação sentida inicialmente como insensata, depois como indeterminada e finalmente como irrepresentável. Desta maneira podemos argumentar que a gramática do sofrimento obsessivo oscila, em seu estado natural, entre a necessidade e a possibilidade, como modalizações da demanda associada ao estado de angústia flutuante. A crise de gozo, que normalmente induz a produção de novos sintomas, ou de sintomas secundários com a eles se referia Freud, ocorre pela emergência de uma contingência. Temos aqui a angústia de segundo nível. Finalmente, é pelo encontro com a impossibilidade, como gramática fundamental do desejo obsessivo que a angústia real (Real Angst) pode ser tematizada.
A abertura e o fechamento do filme ligam-se à trilha sonora Somebody to Love, gravada em 1966, pelo grupo de rock Jefferson´s Airplane. O estribilho insiste em três perguntas e uma recomendação:Don´t want somebody to love?” (Você não quer alguém para amar?) “Don´t need somebody to love? “ (Você não precisa de alguém para amar?). “Wouldn´t you love somebody to love?” (Você não amaria ter alguém para amar?). “You better find somebody to love” (É melhor você encontrar alguém para amar). E aqui se concentram muitas das perguntas que levam o amor ocupar uma posição específica na economia do desejo obsessivo. Querer e precisar de alguém para amar é forma de demanda de autorização (amorosa) do outro para sustentar seu próprio desejo. Se o outro me ama, meu desejo está garantido. Contudo, se meu desejo está garantido ele não é mais desejo, mas apenas demanda.
2. A Religião Individual
Gopnick representa um ótimo exemplo desta transformação anunciada por Lacan de que as neuroses clássicas, como a fobia, a histeria e a neurose obsessiva iriam ser substituídas pelo incremento das neuroses caracteriais, neste caso neuroses narcísicas. A principal diferença que podemos notar entre a neurose obsessiva clássica e sua variante narcísica dos anos 1960 é a redução do papel central ocupado pela dúvida no primeiro caso, substituída pela atitude de complacência funcional e conformada do segundo contexto:
A produção da incerteza é um dos métodos que a neurose obsessiva emprega para retirar o enfermo da realidade e isolá-lo do mundo, o que constitui, por certo, uma tendência de toda perturbação psiconeurótica. Também aqui é muito nítido o tanto que os doentes colocam de si para esquivar-se da certeza e poder aferrar-se a dúvida (...)” 1
Contra esta expectativa de coloca o Outro na posição de conceder, autorizar ou legitimar o desejo como ato, nosso protagonista situa-se em uma espécie de suspensão continuada do ato. Como em o “Anjo Exterminador” de Luiz Buñuel, no qual um grupo de burgueses não consegue levantar-se das privadas, nas quais estão sentados em um interminável jantar repleto de conversação vazia, ou como em “O Segredo de seus Olhos” no qual Ricardo Darin não consegue dizer “te amo”. A falta da letra “a” em sua máquina de escrever faz com que ele se prenda ao “Te mo” que adia indefinidamente seu ato.
Lawrence Gopnick quer saber antes de agir, quer entender onde está seu erro, para poder corrigir-se diante do destino. O filme se desenrola em torno do encontro e da história de quatro Rabinos, com os quais nosso herói se encontra ao longo de sua relação com sua relação ao desejo.
Freud já havia postulado este paralelo estrutural entre a neurose obsessiva e a religião. A neurose obsessiva é uma religião individual, assim como a religião é como neurose obsessiva coletiva universalizada. Pode-se atribuir esta afinidade entre a obsessão e a religião ao fato de que as religiões voltam-se frequentemente para a exploração de temas cuja solução é indeterminada:
A predileção dos enfermos obsessivos pela incerteza e a dúvida se converte em motivo para aderir-se seus pensamentos, preferentemente, a aqueles temas nos quais a incerteza dos homens é universal, nos quais nosso saber ou juízo permanecem por natureza expostos à dúvida. Estes temas são, sobretudo: a filiação paterna, a duração da vida, a vida depois da morte e a memória, na qual podemos acreditar sem possuir a menor garantia de confiança.” 2
O personagem Lawrence Golpnick em nenhum momento parece tomado pela dúvida. Não lhe ocorre que ele deve agir. Sua disposição é antes para saber daí sua demanda dirigir-se a advogados e rabinos. A verdade, que ele declara a cada momento, sem se dar conta de suas consequências trágicas, é simples e nominalmente declarada como “eu não fiz nada”. Sua convicção neurótica baseia-se no fato de que se alguém “não faz nada” nada de mal, de responsável ou de culposo pode advir.
Inversamente, há uma aura de cinismo nos personagens que envolvem o protagonista, como se todos eles simplesmente “não quisessem saber” das implicações e consequências de seus atos sobre Golpnick. Eles vivem um trâmite funcionalizado da demanda. Não há amor, promessa ou compaixão e mesmo nos momentos mais tristes do filme, como uma única exceção que comentaremos mais adiante, ninguém experimenta uma relação autêntica de piedade pelo nosso inocente incidental.
Aquele que demanda saber e compreensão para justificar seus atos, antes e em vez de praticá-los, estará condenado a receber em escala invertida a violência requerida por seu próprio masoquismo. O ato é um ato, porque ele é “sem saber”, caso contrário ele seria apenas obediência desimplicada. É por isso que Golpnick não é um Homem Sério. Ele pode ser um homem bom, um homem inocente, um homem piedoso, um homem que “não fez nada”, um homem que “tentou ser um homem sério”.
3. O Falso Rabino:
O dybbuk  é um demônio ou espírito presente na mitologia judaica. Ele se apresent como uma forma de possessão por meio da qual um espírito malicioso se apossa do corpo de um morto recente. O dybbuk opõe-se ao  ibbur  ("impregnação") que acontece com o consentimento do possuído e geralmente orientado para boas ações.
As formas da loucura na antiguidade judaico-cristã baseiam-se quase que exclusivamente na oscilação entre perda e recomposição da fé. É a relação com a lei, que articula o paralelo entre bom-mal e dizem “quem você é”. A loucura é indeterminação entendida como falta de determinação (de fé, de nomeação, de fidelidade à lei).
O caso greco-romano é quase o inverso. São os deuses que se apossam dos homens e seus desígnios desconhecidos que comandam nossa ação. A loucura é indeterminação entendida como excesso de determinação (perda de autonomia, supressão do ato). Os deuses gregos se apossam dos heróis e fazem com que eles executem atos valorosos ou desmerecedores, sábios ou incautos.
Por isso a figura do dybbuk, assim como a excepcional narrativa de Jó, constitui uma exceção a esta regra. Ele coloca um problema moral que é “como saber?”
O conto polonês que se encontra na abertura do filme dos irmãos Coen retrata um camponês que volta para casa em meio a uma nevasca quando a roda de sua carroça quebra. Azar. Mas é justamente nesta hora que aparece um velho rabino que se oferece para ajudá-lo e em recompensa o camponês o convida para sua casa. Mas chegando em casa sua esposa desconfia que o rabino seja de fato o rabino. Ela acha ele é na verdade um dybbuk que se apossou do corpo do rabino. Mas então: como saber? Se se tratar do rabino um prato de sopa quente fará a recompensa merecida e a gratidão do sábio, uma benção. Mas e se se tratar de um dybuk ela terá deixado entrar em sua casa a semente da maldição. A reposta da esposa se dá em ato, enfiando um punhal no peito do dybbuck que sai sangrando da casa, nevasca a dentro, não sem um riso enigmático.
O dybbuk, no caso da esposa do conto Polonês, coloca à prova a dimensão da fé, dividida entre o testemunho da autoridade humana e a crença nos sentidos imediatos. Uma amiga da irmã contara à esposa do camponês que o Rabino Traitle Groshkover havia morrido de tifo. Ela devia, portanto, confiar na amiga, e por extensão na comunidade oral à qual pertencia, ou em seus próprios sentidos que lhe mostravam o Rabino diante de seus olhos?
O marido camponês retrata a presa na “crença fácil”, que confirma nossas expectativas de um destino protetor, ao passo que a esposa representa o princípio da “crença difícil”, que é capaz de suspender a complacência do saber que se confirma por si mesmo. A solução da esposa coloca o ato adiante do saber. Ela não pode de fato saber diante de quem está, mas deve agir assim mesmo. Esta é a solução que Gopnick não consegue engendrar.
4. O Método das Cenas Cruzadas e o Objeto Entrelaçado
O método do filme baseia-se na montagem de cenas sempre em paralelo, que se encontram em um elemento convergente cujo sentido é insensato, contingente e irrepresentável. Por exemplo, na sala de aula, o filho de Gopnick tenta enganar o professor de hebraico ouvindo “Somebody to Love”, em seu fone de ouvido. É pego e seu rádio é apreendido pelo professor. Junto vão-se os 20 dólares que ele havia tomado da irmã, para pagar o traficante na escola.
Ao mesmo tempo na sala de exame seu pai está sendo examinado pelo médico. Este apalpa, pergunta e introduz um iluminador em seu ouvido. O ouvido da primeira cena se fundo com o ouvido da segunda cena, dividindo o sentido das cenas cruzadas: será suficiente ouvir? Será preciso ainda realizar um Raio X.
O método das cenas cruzadas, com um objeto dividido que as articula, pode ser descrito como um entrelaçamento de sentidos no interior do qual emerge uma incerteza. Por exemplo, no famoso experimento mental proposto pelo físico Erwing Schrödinger em 1915, e mencionado na primeira aula de Gopnik, um gato é encerrado em uma caixa contendo uma substância que pode ou não ter um de seus átomos decaídos. Isso pode acontecer a qualquer hora ou simplesmente nunca acontecer. Sabemos com certeza que se abrirmos a caixa o gato estará morto, mas não sabemos se dentro da caixa está um gato vivo, um gato morto, ou um gato com partes igualmente vivas e mortas3. O gato de Schrödinger é a extensão do princípio da incerteza de Heisenberg e exemplifica o conceito da física quântica chamado de Verschränkung (entrelaçamento).
É típico destes casos que uma indeterminação originalmente confinada ao domínio atômico venha a transformar-se numa indeterminação macroscópica, a qual pode então ser resolvida pela observação direta. Isso previne-nos de tão ingenuamente aceitarmos como válido um "modelo impreciso" para representar a realidade. Em si mesma esta pode não incorporar nada de obscuro ou contraditório. Há uma diferença entre uma fotografia tremida ou desfocada e um instantâneo de nuvens e bancos de nevoeiro.”4
O domínio da incerteza articula ciência e religião, por exemplo, na figura novamente irônica do “Mentaculus”, o mapa de probabilidades do universo, desenvolvido pelo irmão de Gopnik e utilizado para ganhar dinheiro com o jogo, mas que em verdade corresponde a garatujas sem sentido.
Também a sabedoria dos Rabis aparece como um “repertório de problemas e soluções comuns dentro de uma tradição que são transmitidos”, mas ao mesmo tempo como um conjunto de truísmos de obviedades que questionam a natureza das perguntas mais do que sugerir respostas.
Outra sequência que se presta a ilustrar o método do entrecruzamento ocorre quando nosso herói aparece filmado em posição superior, uma vez que subiu ao telhado para consertar a antena de televisão. Lawrence Gopnick no alto de sua casa depara-se com a sensual vizinha, Mrs. Samski, tomando sol, nua. A cena seguinte mostra seu extasiado irmão, filmado na mesma perspectiva ascendente, saindo da água com a mirabolante ideia de “engarrafar o ar daquela praia”. Entre as duas cenas o ar puro e a sensação ascensional de dominação ... inútil. Freud utiliza a noção de entrelaçamento em Pulsão em suas Vicissitudes (1915):
Pode ocorrer que um mesmo objeto simultaneamente sirva para a satisfação de diferentes pulsões, o caso do entrecruzamento pulsional (Triebeverschränkung)”
Na primeira sequência o ouvido une e separa as duas cenas, a da sala de aula e a da sala de exame. Ao final isso se revelará na inversão entre o tato e ao ouvido. Ele está com saúde, diante do olhar e do tato do médico, mas o Raio X mostrará um sentido pior que nos escapa. Na segunda sequência trata-se do olhar que também se mostrará divisão entre potência de dominação e a futilidade de seu sucesso.
5. Divórcio e Suborno
O filme aplica o método do entrelaçamento a dois problemas que articulam a trama. Como professor de física ele recebe um aluno coreano (Clive) que se queixa que não sabia que era necessário saber matemática para fazer a prova de Física. Gopnick explica que isso é evidente, mas ele não se conforma e entrega um envelope contendo dinheiro, supostamente para que o professor o aprove. Aceitar ou não o suborno, denunciar ou não o aluno, em meio às tratativas para ser contratado como professor permanente na universidade constroem o dilema moral da primeira série. Mas ele parece não estar de fato em dúvida, ele apenas adia as providências que poderia tomar.
A segunda série é composta pelo pedido de divórcio feito pela esposa de Gopnik, que se envolve com o compreensivo e ardiloso Sy, viúvo há três anos. Ela quer o get (consentimento ritual para que o novo casamento siga a ordem religiosa), sugere que Gopnik vá morar em um Motel nas redondezas e posteriormente retira as economias do casal do banco. Tudo isso sem que Gopnick se mostre indignado, irritado ou perca a sua paciência de Jó.
A lógica do caldeirão furado, explicitada por Freud, exemplifica esta possibilidade de “entrelaçamento” dos motivos que desconhecem a contradição posto que dependentes do inconsciente. O que o entrelaçamento produz é um efeito de “desubjetivação” diante do ato. Uma versão do caldeirão furado aparece na cena com o estudante coreano: “Dê uma chance assim não perco minha bolsa” diz o estudante. Diante da firmeza do professor o pai do estudante vem interpelá-lo:
a. você difama meu filho (ao acusá-lo de propor suborno)
b. você é corrupto (ao aceitar o dinheiro do suborno)
c. você está agindo sob “choque cultural”
Outra versão do mesmo problema aparece no impasse sobre o divórcio. Sua esposa pede: “Dê o get assim posso casar com Sy Eableman”. Sy, difícil não ser atraído pela assonância irônica com Psychologist, Psychoanalist, Scientist. Acrescido de Ableaman, ou seja,Homem Capaz”.
6. A Indeterminação como Entrelaçamento (Verschränkung) do Possível
Um acidente de carro mata Sy Ableman – “A Serius Man, symply” solucionando o problema do divórcio. Enquanto ele bate o carro, ao xingar Clive, o estudante coreano, ele descobre que estão cobrando por uma coleção de discos que ele não pediu. Como ele “não fez ao nada” ao receber, agora estão a lhe cobrar. Esta é a máxima que torna a experiência moral incompreensível para o neurótico obsessivo: o fato de que ele não fez nada deveria imunizá-lo contra a culpa ou responsabilidade sobre os acidentes do mundo. No entanto é exatamente porque ele não fez nada, que ele é punido.
O filme é uma crítica à moral da inocência e sua ligação com o giro paranoico na Neurose Obsessiva. Ele gira em toro da ideia de que “não fazer nada” é justamente “fazer alguma coisa”. Confia-se assim numa inanidade, em uma extraterritorialidade que é diferente da “Bela Alma que assiste a tudo de fora do mundo. Parece-se mais com um espectro que participa deste mundo sem dele se apropriar. O dibbuck, portanto, é uma grande imagem, irônica e ilustrativa, para estes seres sem alma, em ausência, em distância, como espectadores em relação à própria realidade. Dispostos que estão para se “apropriar de um cadáver”, que se lhes afigura como um “personagem” do qual não conseguem se separar.
Exatamente por que ele não fez nada, e lembremos que o nada é um dos objetos a, descritos por Lacan, que trata-se de pedir uma autorização ao Outro para desejar. O neurótico obsessivo está preso entre o gozo contingente (deduzido do necessário) e o desejo impossível (deduzido do possível). Seu sofrimento está duplamente determinado: pela necessidade (cuja negação não lhe habilita chegar ao exercício da contingência, mas da coerção insabida, da obediência, como no sonho do encarceramento no caixão) e pela pela possibilidade (cuja negação não lhe habilita chegar ao reconhecimento da impossibilidade, mas apenas da impotência).
Como ele diz: “Eu não sou um homem mal”, “Eu não fiz nada”, “Eu tentei ser um homem sério”. Ao contrário de Sy que se declara como tal, Gopnick, apenas tentou.
Em um filme sem piedade ou compaixão Gopnick procura consolar o irmão na cena da piscina. Irmão que o inveja. Ele tenta ajudar o irmão a chegar ao Canadá, mas é abatido pelo vizinho e seu filho (de porte e apresentação racista). Para “ajudar o outro” ele acaba usando o dinheiro do “suborno”, tornando-se se assim objetivamente culpado. Isso explica a virada sensacional que o filme imporá nas suas sequências finais. A religião obsessiva se alimenta de seus próprios fracassos, ao transformar toda indeterminação em déficit de determinação.
1   Freud, S. (1909) A propósito de um caso de neurose obsessiva (O Homem dos Ratos), 181-182.
2  Freud, S. (1909) A propósito de um caso de neurose obsessiva, 181-182
3  Um gato é trancado dentro de uma câmara de aço, juntamente com o dispositivo seguinte (que devemos preservar da interferência direta do gato): num tubo contador Geiger há uma pequena porção de substância radioativatão pequena que talvez, no decurso de uma hora, um dos seus átomos decaia, mas também, com igual probabilidade, talvez nenhum se decaia; se isso acontecer, o tubo contador liberta uma descarga e através de um relé solta um martelo que estilhaça um pequeno frasco com ácido cianídrico. Se deixarmos todo este sistema isolado durante uma hora, então diremos que o gato ainda vive, se nenhum átomo decaiu durante esse tempo. A função-Ψ do sistema como um todo iria expressar isto contendo em si mesma o gato vivo e o gato morto simultaneamente ou  dispostos em partes iguais.” Schrödinger, Erwin (1935). "Die gegenwärtige Situation in der Quantenmechanik (A situação Atual da Mecânica Quântica)". Naturwissenschaften.

Quântica)". Naturwissenschaften.


trailer do filme



Christian Dunker é Psicanalista, Professor Livre Docente do Depto de Psicologia Clínica-IPUSP, Analista Membro de Escola da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano, Membro da Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental, Doutorado (IPUSP) e Pós-Doutorado pela Manchester Metropolitan University (UK). Autor de vários livros, entre eles o vencedor do Prêmio Jabuti 2012: “Estrutura e constituição da clínica psicanalítica: uma arqueologia das práticas de cura, psicoterapia e tratamento” (ed. Annablume, 2011)

sábado, 16 de novembro de 2013

DO FILME “AMOR”; DAQUILO QUE PERMEIA A VIDA E A MORTE.

de Olivan Liger

     Escrever sobre o filme “Amor” na tentativa de fazer uma análise do seu conteúdo sob uma perspectiva psicanalítica começa pela sensação que senti ao deixar a sala de projeção: algo incômodo e inquietante... algo que não se traduz, indizível por si só... que não se simboliza, mas dilacera... dilacerante como o próprio filme. Algo que induz a uma inquietação silenciosa, sombria que me fez, por minutos, me sentir sem saber se descia ou subia a Rua Augusta e onde tinha deixado meu carro.
Um filme de Michael Haneke para ser engolido a seco... sem trilha sonora...longas pausas escuras de espera, como a vida é. Um filme que fala de amor, de vida e de morte... ou melhor, um filme que fala do amor que permeia a vida e a morte.

     “Se começo (e termino) pelo amor, é que o amor é para todos, por mais que o neguem, a grande coisa da vida” (Baudelaire): é o começo quando o amor que faz suplência à relação sexual; é o meio através das repetições e tentativas de aprisionar o amor perdido nos primórdios, é o prêmio que nos é conferido quando aprendemos a conviver socialmente e também é o fim... quando não há mais saída e nos submetemos à castração final... é ai que buscamos reconciliar com o mundo e confessar os amores não ditos por uma vida toda, portanto o amor permeia a vida e a morte. O amor é a promessa daquilo que falta.

    O filme começa mostrando um casal, Anne e George, que se confunde numa platéia de um concerto de um ex-aluno de Anne. O amor vai se delineando no filme nas cenas que mostram o cuidado e gentileza de um para com o outro, no deleite pela música, pelo bom vinho e na cumplicidade expressa no olhar profundo e amoroso, no compartilhar um apartamento parisiense onde cada tela na parede, cada cd ou livro na estante articula a história desse casal.
      A história vai se revelando e mostrando o casal de aposentados, desfrutando a vida e o amor (um pelo outro, pela música, pela vida) e lentamente vai escancarando a precariedade da ordem do humano através da lenta aproximação de Thanatos cumprindo a máxima: A finalidade de toda a vida é a morte. Inseparável companheiro de Eros, um não pode existir sem o outro, assim como George parece não poder existir sem Anne. Thanatos é o invasor metaforizado na tentativa de arrombamento do apartamento. É o que invade, que chega de surpresa ou furtivamente para tirar algo do outro, é sempre o desconhecido... aparece também no sonho de George, no qual alguém chama à sua porta, mas é alguém que não pode ser visto, que não pode ser representado, alguém que lhe toma de surpresa levando-o ao terror.

    O filme pode ser dividido em três partes distintas, mas interligadas: o casal octagenário saudável e desejante num primeiro momento e em flashes de lembranças durante o filme; o segundo momento inicia-se com a primeira isquemia de Anne, a dificuldade de aceitar sua limitação, seu isolamento e dependência relativa; e o momento final na qual a perda da fala, a perda do controle dos esfincteres e a entrada da metáfora delirante parece mostrar momentos que oscilam entre a cessação do desejo e a expressão do mesmo, a vida começa a se esvair do corpo e o desejo do psiquismo.

     A cena inicial do filme é justamente o seu fim ilustrando que o ínicio da vida, o princípio de nirvana perdido é algo a ser encontrado no final. Tudo começa onde tudo termina ou tudo termina onde tudo começa.
       O casal é tomado de surpresa por algo que se interpõe ao desejo: a primeira isquemia de Anne e as sequelas de sua cirurgia. Anne pede a George que prometa não levá-la mais a um hospital. Compromete George através do Amor. Mas sendo o amor uma promessa de algo que não se tem, Anne, diante da limitação física, implícita na promessa que pede de George, a segurança que lhe falta diante da sua limitação. A dificuldade de Anne em aceitar sua limitação é perfeitamente compreensível diante do trauma, da surpresa daquilo que não se espera e que torna o sujeito impotente e incapaz de evitar. É o momento em que Anne se perde e se torna a própria doença, esquiva-se de falar sobre si mesma, isola-se e parece não se dar conta do que realmente lhe aconteceu. Tenta resgatar sua independência deixando a cadeira de rodas quando George está no funeral do amigo Pierre e caída no chão do vestíbulo é encontrada por George. É nesse momento que Anne é chamada a confrontar a sua finitude. Pede a George que lhe conte sobre o funeral de Pierre... um funeral bizarro, desorganizado, cheio de improvisos, constrangedor... um funeral que se assemelha ao seu estado... Ao se dar conta de si, Anne diz: - “ Não há razão para continuar vivendo”. Ainda um sujeito desejante, que vislumbra na antecipação da morte a saída para sua impotência diante da própria finitude.
     A vida é vivida através das lembranças da infância de George e dos álbuns de fotos de Anne. Uma vida virtual na impossibilidade do resgate do momento anterior à enfermidade.

     O momento final começa com a perda do controle dos esfincteres e uma segunda isquemia que toma de Anne a palavra falada; aquela que mediava a relação de Anne e George; que em forma de sussurros apaziguava a angústia da filha Eva, assegurando-lhe a união dos pais; que convocava um ao outro e que nos momentos finais de Anne, a palavra de George era um apaziguador para algo que doía. E na metáfora delirante, Anne repetia várias vezes - “dói...dói”, mas o que doía não era físico, talvez por ser indizível, estar fora da representação do inconsciente, nenhuma outra palavra foi encontrada para contar sobre a proximidade da morte. O casal se isola do mundo externo sugerindo uma estase da libido. A pulsão é oscilante e frágil, a dependência do outro é total, a dor de um é a dor do outro, o delírio de Anne se torna o delírio de George quando asfixia Anne para evitar a dor... a dor supostamente sentida por Anne diante da sua impotência? Ou a sua própria dor diante do vislumbre da morte psíquica da amada? A morte física se torna uma opção para evitar a dor da morte psíquica.
     A respiração que é o primeiro ato de independência do ser humano é também a razão da sua morte quando desta privado (ou privado da sua independência relativa?)

     E qual é o amor que o filme nos propõe ver? Este significante que une vida e morte está presente na filosofia, na antropologia, na psicologia, na psicanálise e em todas as ciências humanas.
   Para a sacerdotisa do amor, Diotima de Mantinéia, Eros é um intermediário entre os homens e os deuses, era sua função interpretar e transmitir aos deuses o que vinha dos homens e aos homens o que vinha dos deuses. Eros era o que completava o todo unindo as partes. O amor não se dirigia ao belo, mas a geração e a gênese do belo. Para Bauman, não é desejando o belo que o amor se manifesta, mas encontra seu significado no estímulo de participar da gênese das coisas, do belo, o amor é visto como a transcendência. E quando esta possibilidade de vivenciar o amor é tomada, a vida se extingue.

     Para George, o amor transcende... transcende a vida física quando veste e enfeita o corpo sem vida de Anne. Quando amando, delira. Um amor que se constitui pela falta. O filme nos propõe ver Amor e não o amor.

trailer oficial "Amor"
Olivan Liger, psicanalista, presidente do ILPC - Instituto Latino americano de Psicanálise Contemporânea, analista e supervisor institucional. Autor da obra: "Um olhar psicanalítico sobre a contemporaneidade e suas emergências" - Ed. Livre Expressão, RJ.