segunda-feira, 16 de maio de 2011

Léolo - de Jean Claude Lauzon

uma leitura psicanalítica sobre o filme
por Karin de Paula

Vou começar citando a última frase do filme: e eu repousei minha cabeça entre duas palavras no ‘l’avalée des avalés’ (assinado:) Léolo
Nesta frase estão condensados todos os elementos que quero trazer para nossa discussão sob    o tema “Psicose e Escrita”...
O filme começa com a narrativa de Léolo sobre o que dizem ser seu nome e sua nacionalidade, sua filiação...ou seja, ele”....diante do que declara: porque eu sonho, eu não o sou”

·   “porque eu sonho, eu não o sou”  é a frase de abertura do livro e “L’avalée des avalésonde, por fim, Léolo repousa entre duas palavras;
·   corpo e palavra: condição para a equação de psicose e escrita;
Poeticamente é possível admitir a idéia de “cabeça” repousada “entre palavras” e é isso que importa aqui...
·   Vamos aproximar:  poesia→Linguagem onírica →
delírio→teorias sexuais infantisteoria científica...
·   Não estaríamos fazendo outra coisa que incluir o pensamento freudiano...

com Freud:
1.   o sonho é uma psicose noturna    [...há os que não acordam...];
2.   o sonho realiza um texto
[de c.latentes→c.manifesto, há  uma escritura];
3.   ao se tornar texto, realiza a encenação de um desejo;

O filme traz também cada uma dessas referências: imagens e linguagens poéticas/oníricas/delirantes/ da sexualidade infantil/ e científica...

...então, ainda com Freud:
1.   os sonhos são fruto de um trabalho, não são plenamente um fato biológico;
2.   os sonhos são compostos por imagens (representações coisa) e por imagens acústicas (representações palavras)→ requerem as palavras;
3.   o motor dos sonhos, assim como de toda manifestação do inconsciente, é a mobilização do corpo (corpo despedaçado → sexualidade infantil→ funcionamento primário → várias ocorrências no filme  (cocô/pedaços de carne/rabo que cresce entre suas pernas/o gato), que se faz representar, que busca se inscrever, se escrever e, portanto, dependem da condição de linguagem;
4.   a palavra dá possibilidade de contorno/delimitação/representação ao corpo, à experiência de corpo.

·   Léolo tem um sonho/delírio sobre sua origem:
·   um esperma, estrangeiro sem face, fecunda sua mãe por via de um tomate “contaminado”.(teoria sexual infantil/ sonho/delírio)
·   diz ele: “DEPOIS DESTE SONHO, LÉOLO LOZONE”
·   a tentativa de inscrição de um nome próprio, que lhe renda um lugar / contorno/ delimitação;
·   Lauzon, Leo Lozon, Léolo Lozon, Léolo Lozone;
·   homofonicamente o que sobra é o “ne”;
·   estamos no/em francês: ne é nascido (corpo), ne é a partíula para a negação (nada);
·   palavra e corpo, mais uma vez.
·   onde Léolo buscou as palavras para dar-lhe contorno, possibilidade de representação de sua condição sexuada e mortal: o livro
·   onde Léolo tentou viver: nas palavras
·   onde Léolo capitulou: já sabemos. entre duas palavras de “l’avalée des avalés”...
·   o catador de versos: personagem emblemático, que catava-dor-de-versos mais emblemático se pensarmos em Ducharme, autor do livro, da frase “porque eu sonho, eu não o sou (parce que je suis, mois, je ne le suis pas...);
·   Decharme foi um personagem importante em Montreal, Quebec - Canadá - durante a “revolução tranquila”(1960-66); a figura do dompteur des vers: símile do pseudônimo de Ducharme, roch plante, artista da bricolagem,  do “assemblage”.
·   roch plante (semeador de pedras?), é aquele que procura inscrever um ethos outsider ; bricoleur, colhe materiais descartados nas cidades para realizar sua obra de assemblage, cata-dor;
·   Léolo é um autor da assemblage, Lauzon um artista dompteur de vers...
·   o termo assemblage é incorporado às artes em 1953, para fazer referência a trabalhos que  "vão além das colagens". O princípio que orienta a feitura de assemblages é a "estética da acumulação": todo e qualquer tipo de material pode ser incorporado à obra de arte. O trabalho artístico visa romper definitivamente as fronteiras entre arte e vida cotidiana; ruptura já ensaiada pelo dadaísmo. A idéia forte que ancora a assemblages diz respeito à concepção de que os objetos díspares reunidos na obra, ainda que produzam um novo conjunto, não perdem o sentido original. menos que síntese, trata-se de justaposição de elementos, em que é possível identificar cada peça no interior do conjunto mais amplo. nas artes visuais, a prática de articulação de materiais diversos numa só obra leva a esse procedimento técnico específico, que se incorpora à arte do século XX com o cubismo de Pablo Picasso (1881 - 1973). ao abrigar no espaço do quadro elementos retirados da realidade - pedaços de jornal, papéis de todo tipo, tecidos, madeiras, objetos etc. -, a colagem liberta o artista de certas limitações da superfície.
·   da mesma forma, o cata-dor de versos/vermes do filme de lauzon, passa recolhendo a dor de todos que tentam a descartar...
·   interlocutor ou duplo de Léolo/Lauzon?
·   Léolo descartava sua escrita. nunca tinha visto alguém ler ou escrever em sua casa;
·   o livro de Ducharme é o único livro;
·   o texto de Ducharme se mistura ao da narrativa de diário de Léolo/Lauzon no melhor estilo de assemblage;
·  o livro de DUCHARME, artista plástico e escritor conterrâneo de Jean Claude Lauzon, “L’avalée des avalés”/ “Os devorados pelos devoradores”, levado pelo DOMA-DOR DE VERSOS à casa de Léolo, imiscuído lá como calço de mesa da cozinha DA MÃE de Léolo, era lido e relido por Léolo, citado repetidamente no filme, com muita insistência,.
·   Vou indicar quatro passagens do filme onde podemos reconhecer o texto de DUCHARME e que me parecem bem significativas:
·  O primeiro já mencionado, é quase elemento central na construção do ritmo do filme, é a frase: Porque eu sonho, eu não o sou/estou”.
Já disse, esta frase se encontra na ABERTURA do livro de Ducharme.
·  O segundo trecho citado no filme que vou sublinhar é aquele colocado como declaração de Léolo sobre sua relação com os livros. Diz: “Não tento lembrar as coisas que ocorrem nos livros. O único que peço a um livro é que me inspire energia e valor. Que me diga que há mais vida da que posso abarcar. Que me recorde a urgência de atuar”. 
No livro de Ducharme, esta é uma fala de Berenice Einberg, personagem do L’ avalée des avalés... É interessante notar que a proposição citada indica a expectativa de que o livro o lembre –LHE FALE- de algo e não ele do livro. QUEM SERIA O SUJEITO DESTA PROPOSIÇÃO?

O sonho é uma psicose noturna/ao acordar, o sonhador se serve das palavras (recalque) para organizar, tomar distância, daquela experiência de corpo...

O NEURÓTICO ENCONTRA MEIOS PARA HABITAR NA LINGUAGEM;
O PSICÓTICO É HABITADO PELA LINGUAGEM, ELA LHE FALA! 

· Léolo declara ter decidido “tomar o caminho mais curto”,
      “que voltar dos sonhos ao cotidiano era brutal” para ele;
· Léolo tentava fazer valer a dica do CATA-DOR DE VERSOS de que que havia um segredo nas palavras colocadas juntas... mas colocou seu próprio corpo neste espaço, “repousou a cabeça entre duas palavras do L´avalée des avalés...;

Outro exemplo da pena de Ducharme no filme de Lauzon, é o trecho grifado no exemplar do livro em poder de Léolo, que é mostrado em close no filme. Este trecho é indicado por Léolo/Lauzon como o caminho do início de sua leitura, por  onde ele começará a ler este livro. É a partir da narrativa deste trecho de Ducharme que, declarando sua decisão de ler repetidamente o que fora sublinhado por outro,  mesmo não  entendendo o que quer dizer, que Léolo começa a escrever sobre sua vida/história.

Posteriormente, o mesmo trecho é incluído como narrativa do próprio Léolo, como parte de seu diário: “Só encontro momentos felizes na solidão. Minha solidão é meu palácio. Aí tenho minha cadeira, minha cama, meu vento e meu sol. Quando estou sentado fora de minha solidão, sentado no exílio, estou sentado num país enganoso”.

Se a relação de Léolo com o livro se deu, segundo ele próprio, apesar de não haver figuras, mas apenas letras sobre letras... havia um outro objeto colocado em cena de assemblage, retirado do lixo,um outro tipo de registro de sons, quebrado e guardado embora não pudesse se escutado, e justamente pela imagem que exibia: o disco/LP de Jacques Briel;
·   momento antes de léolo capitular/se render ao “ porque eu não sonho, eu sou” , a “descansar sua cabeça entre duas palavras de ‘ l´avalée des avalés’ ” , juntar-se a linhagem da loucura familiar, segundo ele fundada por seu avô, cai do livro  o pedaço de vinil que completaria a circunferência do LP. Léolo o cola, o completa.
·   não tendo como fazer frente à convocação para apresentar-se potente, corajosamente ao seu amor por uma mulher, repousa a cabeça entre duas palavras no “l´avalée des avalés”...
·   as três palavras colocadas juntas (bianca, mon amour/curiosamente as mesmas colocadas na boca do personagem da mãe quando o apertou “contra suas banhas com cheiro de suor de cheiro reconfortante”) que trazia sua amada em condição de dessideração/desejo frente à luz, se tornou sideração/ silêncio.
·   a primeira vez que viu a luz→o tesouro→ “talvez soubesse que já estava morto”.

Karin de Paula é Psicanalista, Mestre e Doutora pela PUC-SP,  Pós-doutoranda na Paris 7, professora na universidade e em curso de formação de psicanalistas. Membro fundadora do umLugar – Psicanálise e Transmissão. Autora dos livros $em – sobre a inclusão e o manejo do dinheiro numa psicanálise”, Ed. Casa do Psicólogo e Do espírito da coisa - um cálculo de graça”, Ed. Escuta.