domingo, 21 de abril de 2013

Happiness ou “protect me from what I want”

por Karin de Paula
Desde os primórdios da cultura humana, ser feliz talvez seja a promessa que mais fascine a todos. Em versões muito variadas, factíveis ou não, se não em vida, no post mortem, coisas impressionantes podem ser feitas em nome da expectativa de chegar à felicidade.

O cineasta americano Tood Solondz, em seu filme Happiness (1998), circunscreve a questão da busca pela felicidade de maneira emblemática e polissêmica ao situá-la no cenário do subúrbio de New Jersey, local e situação que ele conhece bem, ao ponto de fazer surgir, através de personagens caricatos, porém prováveis, as armadilhas desse projeto "tão superlativo".

Fato é que nos subúrbios norte-americanos -assim como fora deles- estão todos procurando a felicidade.

Certamente os pensamentos religiosos e filosóficos contribuíram para a discussão sobre a felicidade, pela via da abordagem da consciência. No entanto, tais discursos não esgotaram o problema. A conta da felicidade humana não fechou e acabou por deixar restos, que se tornaram matéria-prima de uma nova forma de pensá-la, desta vez, pela via do inconsciente, tal como Freud o formulou. Freud se interessou desde o começo pelos restos de uma clínica voltada àquilo que não interessava a muitos, pois deixou exposta a existência da dor de existir.

Vieram, então, as concepções que a clínica da histeria rendeu sobre as sobras do projeto humano de felicidade, a abordagem dos sonhos, a da psicopatologia da vida cotidiana e, assim, a produção do que o próprio Freud designou como a terceira ferida narcísica do humano, tendo sido a primeira, a de não ser a terra o centro universo (Copérnico) e a segunda, a do homem não descender diretamente de D’us, mas de símios (Darwin).

Três décadas após, suas primeiras elaborações teóricas e clínicas, Freud debruçou-se mais explicitamente sobre o tema “felicidade”, mais precisamente, num texto chamado “O mal-estar na cultura” (1930). De fato, este texto foi fruto de uma reflexão inicialmente acerca da plenitude do sentimento religioso, estabelecida por um diálogo, iniciado em 1926, que se deu entre Freud e seu amigo Romain Rolland.
Contrariamente ao amigo, Freud pensava que não seria possível reconhecer no "sentimento oceânico" com o mundo, mais do que a ilusão de completude, digamos, de felicidade.

Mas, como o título do mencionado texto freudiano de 1930 anunciava, há uma parcela de mal-estar a ser admitida, por todo aquele que venha a pertencer à comunidade humana.

Nesta perspectiva, segundo a leitura de Freud, o humano estaria envolvido em duas tarefas: a de buscar a felicidade e a de evitar o sofrimento, sendo que esta última, por sua vez, contaria com os métodos da intoxicação, da ilusão e o de tornar-se “homem ativo” no mundo.

Sobre as fontes do sofrimento, Freud acrescenta que estas provêm da iminência das forças da natureza, da fragilidade de nossos próprios corpos, digamos, sua degeneração e, por fim, do outro.

Freud não poderia ser mais acurado. De certo modo, nem Solondz.

Em Hapinness ficamos sob o impacto deste duplo esforço. Esforço que não é do outro, do norte-americano, mas de cada um de nós. Entusiastas e crédulos deste projeto, eles são aqueles que dão voz às nossas próprias ilusões...

Pergunto-me porque queremos tanto ser normais, ou enquadrados, quando nossa solução, que não é a "Solução Final", é a de nos fazermos sob as condições de singularidade que comportamos! Sim, tal medida é trabalhosa, mas... Não é mais trabalhoso cumprir o mandato?

Nesse cenário, o nosso é o da moldura da cultura que insistente e quer fazer com que todos caibam na forma?

Bom, então, este filme é sobre as sobras. Sobre tudo aquilo que não cabe no projeto de FELICIDADE/HAPPINESS.

É, então, que na sociedade americana, no subúrbio norte-americano, para o diretor deste filme, que lá nasceu e se criou, tais motivos se tornam oportunidade de questão...À todos.
Os personagens que nos são apresentados nos fazem pensar? Muito provavelmente, já que acompanhamos lá, os micros e os macros das violências que são feitas em nome da FELICIDADE.
No filme, a irmã perfeita só o pode ser, à custa da irmã fracassada, pois a imagem da segunda é o que confirma a da primeira, a irmã feliz. É como sair com alguém que julga feio, para parecer bonito. Que todos fiquem onde estão para manutenção da ordem e do progresso, para a permanência da ORDEM MUNDIAL.
E é assim que estão todos buscando os pares ideais, as situações ideais, os rendimentos, os proventos ideais, enfim, o gozo ideal.

Ao assistir Happiness, ficamos sob o impacto da frustração que este filme não inventa. Sabemos da nossa própria farsa, de nossos esforços na busca da tal FELICIDADE e na evitação do sofrimento. Reconhecemo-nos aí.

Lembremos: lembrar de algo é estar com este algo.

Happiness faz pensar: o que temos feito e faremos com nossas sobras, com nossos restos humanos, que não cabem no projeto de felicidade?

Tarefa árdua e necessária e que, me parece, a psicanálise acolhe prioritariamente. Mas não em condições de dourar a pílula. A condição é fazer o caminho, sem a propaganda de que exista um pote de ouro no final do arco-íris.

Se neste sentido como em outros, o barato sai caro, neste caso, o investimento pode valer o quanto pesa?
Não seria a psicanálise o lugar disposto ao I-MUNDO, como inventou Lacan, ao nosso lixo humano?

A despeito da tirania que sempre resta nas vozes do supereu, podemos inventar o possível. Fazer com as pulsões e com a imponência do Real, eis o derradeiro desafio.

Vemos em Happiness, como a violência pode ser efeito da melhor intenção, aliás, que leva tantos ao inferno. Ainda não tenho opinião formada sobre o inferno, mas me atenho ao nosso inferno, tal como Godard o filmou em Notre Musique (2005).
Narcisismo das pequenas diferenças? Nazismo homeopático?
É, Melancholia (2011) é um planeta que existe, nos fez ver Lars Von Trier...

A sétima arte está aí para nos fazer pensar. E pensar não é o mesmo que racionalizar. Racionalizar passa por tentar fazer caber o corpo na versão e Isso não é possível.

Bem ao contrário, pensar, como nos ensinou Freud (1911), e colocado sob minha interpretação, é transformar corpo em palavra.
Recortar, cifrar o inapreensível de nossa vida do dia-a-dia, caminho este que uma análise deve percorrer.
Não é pouca coisa. Não é linear. Não encerra a questão, e por vezes, nem se quer é suficiente. Mas é efetivo.

Então, o que há, sim, é a possibilidade de, como disse certa vez François Leguil (1993), que o gozo se torne amigo do desejo, tornando viável, para cada um, querer o que deseja e prezar a viagem –advertidos de que a condição do desejo é a falta do objeto que o encerre.
São Paulo, abril 2013
Trailer

Karin de Paula é Psicanalista, Mestre e Doutora pela PUC-SP,  Pós-doutoranda na Sorbonne Paris Diderot (Paris 7), professora na universidade e em curso de formação de psicanalistas. Membro fundadora do umLugar – Psicanálise e Transmissão. Autora dos livros “$em – sobre a inclusão e o manejo do dinheiro numa psicanálise”, Ed. Casa do Psicólogo  Do espírito da coisa - um cálculo de graça”, Ed. Escuta.

domingo, 14 de abril de 2013

Filmes que Curam : “Santiago”

de João Moreira Salles
por  Christian Ingo Lenz Dunker

Há uma crítica que aponta como a psicanálise muitas vezes se serve da arte apenas para confirmar ou ilustrar suas próprias ideias e conceitos. Creio que no caso de Santiago, e de outros filmes correlatos, trata-se de entender sua eficácia terapêutica de certas experiências estéticas. Trata-se de descobrir como certos filmes conseguem obter efeitos de cura, análogos aos de um tratamento pela palavra. Desde a tragédia grega sabemos que experiências de catharsis podem induzir transformações subjetivas ou favorecer processos criativos ou sublimatórios. Mas isso não explica por si mesmo como funciona a catharsis. Ademais a redução da catharis a uma ab-reação de afetos, conforme as primeiras intelecções freudianas sobre o assunto, terminou por encarcerar este conceito no âmbito da técnica e da terapia, esquecendo-se que na origem a tragédia tem que ver com a ideia de cura.
Quando discuti o filme com João Moreira Salles, em 2008, percebi o que podia significa a expressão “cinema de autor”, geralmente usada para designar filmes dos anos 1960 na França (Godard, Truffaut), ou dos anos 1950 na Inglaterra (Hitchcock) ou ainda nos Estados Unidos dos anos 1970 (Casavettes, Scorcese, Polanski) ou no seu último remanescente Woody Allen. O cinema de autor sugeria um processo inteiramente dominado pelo diretor que possuiria autonomia e ingerência em cada parte do processo de produção, desde o casting até a trilha, desde o roteiro até a montagem. O cinema de autor é considerado, por alguns críticos, como a única forma de cinema na qual a psicanálise pode ter alguma contribuição, porque neste caso temos a individualização necessária para transportar elementos de um campo a outro. Como se a ficção de unidade, representada pelo diretor, fosse necessária para interpretar a identidade estética da obra. Contudo, ao escutar João Salles falando do processo do filme, o que emerge de modo saliente é justamente o contrário. O “poder” do diretor é tremendamente inerme diante da força do objeto fílmico, das restrições estéticas, das contingências de produção. Em Santiago a vítima, ou seja, o mordomo que funcionaria apenas como suporte indefinidamente maleável para o processo de rememoração da infância, do agora adulto diretor, escapa ao controle. E escapa apesar da infinita boa vontade de Santiago. Ora, nada menos demiúrgico do que esta “resistência do material”. O mito do diretor-soberano não deve ser derrogado porque o cinema é um processo coletivo de interesses e compromissos múltiplos (produtores, indústria do entretenimento, público, crítica, afora os processos de realização do filme), mas porque mesmo sem uma instância central ela pouco pode contra a coerção dos processos de linguagem e de força inerentes à matéria do cinema. Ou seja, exatamente como na metapsicologia psicanalítica, na qual o indivíduo egológico é apenas uma ficção para dar unidade a uma gramática de divisões subjetivas, o cinema na sua forma “normal” de indústria cultural prescinde de uma unidade psicológica para tematizar seus próprios processos.
Mas, a despeito disso há filmes que curam. E é preciso saber como eles fazem isso. A primeira questão é saber do que este filme nos cura. Da tensão de classe entre patrões e empregados? Da discrepância entre sonhos de infância decepções do adulto? Dos conflitos familiares e do ressentimento social? Dos impasses da história “interrompida” do cinema no Brasil? Da relação que faz de toda criação uma reparação (no sentido Kleiniano, mas também no sentido do filme e do livro “Desejo e Reparação”? Ou talvez a cura seja a cura do complexo de Ozimandias, do qual sofre todo aquele que cria?
Lembremos que Woody Allen inventou, aliás, muito propriamente, o complexo de Ozimandia, extraído da poesia de Shelley, para descrever a trágica descoberta, feita pelo artista, de que mesmo a maior perfeição de sua obra não o salvará da morte e do desaparecimento. A referência aqui é o imperador babilônico Ozimandias que manda erguer uma imensa estátua de si mesmo, o que não a impede de desaparecer sob as areias do deserto como uma ruína esquecida. Contudo, não seria este mesmo o processo que faz equivaler a cura com a dissolução do eu? Processo cultural, como pretendia Hegel, que resulta na formação de um objeto que contém e nega a sua história.
Talvez seja inerente aos processos de cura enfrentar a própria indeterminação do nome daquilo que deve ser curado. Quiçá a cura termine com a nomeação, e ao mesmo tempo comece pelo reconhecimento da insuficiência de todos os nomes. E se a cura for apenas o enlace precário entre as diferentes formas de mal-estar que nos governam? E o que Freud chamava de fusão e desfusão das pulsões, de vida e de morte, possa incluir o sofrimento do que ainda não tem nome e do sintoma está saturado de nomeações .
O filme Santiago (2008), de João Moreira Salles nasce como um filme “potencial” sobre a viagem de sua mãe à China durante a Revolução Cultural. Ele sucede uma série de documentários que tem por traço comum a tensão entre o estético e o político. Entreatos (2004), narra a trajetória de Lula, Nelson Freire (2003) fala da criatividade de um pianista, Notícias de uma Guerra Particular (2000) aborda a estetização da violência, Futebol (1988) examina o fenômeno catártico das massas.
Seriam estratégias afins com a psicanálise, pois ambas perguntam qual passado para qual futuro a partir de qual presente? Ou simplesmente porque o gênero do documentário exige a reconstrução da experiência, tal qual esperamos de nossos analisantes? Ou seria, além e depois disso, porque se trata da engenharia particular pela qual ficção e realidade se misturam na produção temporal da verdade. A verdade da história ou a história da verdade? Tal como nos deparamos com esta mistura entre lembranças, fantasias, evidências e deformações, o cinema recorre ao indeterminado “inspirado em fatos reais” ou “qualquer semelhança com fatos ou pessoas terá sido mera coincidência”. Pode-se ainda argumentar que o documentário é um gênero impossível não porque tudo é relativo e a ficção é um espaço de liberdade gratuito, pelo contrário, nada menos restrito do que a relatividade de cada fantasia, ou de cada fantasia ideológica. Mas o documentário não é um gênero impossível (como A mulher é outro gênero impossível) porque ele é relativo aos pontos de vista presumidos, mas porque nele, mais do que em outros gêneros confirmamos a tese de Eisenstein de que a essência do cinema é o corte. Se há cinema há corte, e se há corte há um real que fica “contornado” pelo discurso fílmico.
Por ser muito pessoal, as pessoas têm a impressão de que cada dia na ilha de edição era uma sessão de psicanálise, que eu saia chorando. Agente realmente ria muito, até pelo ridículo de meu comportamento que o material bruto revelava. Não sei direito porque falam em coragem.” (João Moreira Salles - Entrevista à Folha de São Paulo 13/08/2007)
Mas é exatamente isso que se deveria esperar de uma psicanálise? Não apenas choro e agonia, mas a possibilidade de fazer um documentário da própria vida de tal forma a levá-la menos a sério e mais a sério, ou seja, rir-se dela. O humor é uma das poucas estratégias tematizadas por Freud, como eficazes contra esta espécie de síndico do Mal-Estar na Civilização, ou seja, o superego. ”aquela” reza que não volta mais, mas também “aquela” reza que cura, ao inventar outro futuro possível, pela profunda experiência do presente.
Não tinha a noção de que, na verdade, não fiz um filme sobre Santiago, mas sobre a minha relação com ele. Não havia ali uma relação de documentarista e de documentado. Havia uma relação de patrão e mordomo, de, em última instância, chefe e criado. (Thiago Camelo)
Santiago é um percurso que se inclui a si mesmo, um filme sobre o filme, mas não todo. Ele não é um filme alegórico. Em geral filmes alegóricos são de amargar pela sua covardia. Santiago é um filme de formação, como se diz em relação ao gênero, florescente no século XVIII, um romance de formação, que incluía a narração da experiência como parte da própria experiência. É um filme dialético no sentido em que coloca em sincronia um conjunto de contradições: os sonhos Brasil anos 50 e a casa abandonada dos anos 90. Promessa e decepção se resolvem em uma espécie de saudades de um tempo em que o Brasil quis pensar a si mesmo, como um adolescente que descobre-se em aguda necessidade de separação. Se o lugar do Brasil mudou mesmo, o cinema perdeu seu lugar como voz desta transformação?
Estão ali as questões clássicas dos intérpretes do Brasil: a vida privada e a vida pública (sincretismo brasileiro), o conflito de classes miniaturizado, o “grupo maldito” e os outros grupos, o apelo às dinastias monárquicas em casa de burguesia, o argentino-italiano (sozinho) em solo brasileiro. Mas o filme que poderia ter sido a casa e o mordomo transforma-se em um filme sobre duas pessoas e uma experiência impossível: uma relação impossível.
Em Santiago, ao contrário dos romances de formação clássicos como Jovem Meinster de Goethe, ou o Sobrinho Rameau de Diderot, as contradições que não se resolvem em um final triunfante. Mas em Santiago as contradições são postas e construídas, mas não dissolvidas e superadas. Elas também não são deixadas ao ar, com aquele sabor moral do apelo fácil ao estúpido inefável da existência. A sua forma já é seu acabamento, sua captura do tempo é o próprio trabalho que faz a experiência se completar com sua narrativa, tal como ocorre no processo da cura. A cura é sempre a cura do que poderia ter sido, das outras vidas dentro da vida, do conflito insuperável entre o possível e o impossível, entre o necessário e o contingente. Daí as expressões “cura de um grande amor”, “cura de uma perda”, “cura da angústia”, “cura das ilusões”, ou seja, a noção de cura convoca impasses que não são exatamente problemas, mas condições existenciais, experiências refratárias, mas nem sempre traumáticas. Aliás, o impossível e a contingência são das duas figuras lógicas maiores do Real em Lacan. E o que Santiago mostra é justamente esta impossibilidade de “refazer” a experiência perdida da infância, e por outro lado como esta impossibilidade é realmente “refeita” se reconhecemos as contingências que o sobredetermina. Isso ocorre necessariamente pela intercessão do tempo. O primeiro filme, que poderia ter sido sobre a infância feliz de uma família e de um projeto de Brasil. Seu fracasso, sua irrealização, a morte de Santiago são vividos inicialmente como impotência, denunciada pela cólera do diretor em fazer a realidade constranger-se ao que ele tinha “em mente”. O segundo filme retoma o primeiro explorando o seu fracasso não mais como uma impotência (do montador, dos recursos dramatúrgicos de Santiago, da astúcia da direção), mas como uma impossibilidade. Finalmente, há o terceiro filme, que é o que o a recepção constrói ao interpolar a aventura de Santiago neste momento histórico que é o seu, transformando-o em um encontro contingente.
Em sentido inverso e regressivo, Santiago faz parte do chamado cinema da Retomada, no duplo sentido: retomada do processo brasileiro de produção e filmes e retomada da história do cinema brasileiro, de certa maneira “interrompido” após o Cinema Novo e o Cinema Marginal dos anos 1960. A Retomada não é apenas na chave da história política, mas também da chave estética e mais ainda na chave pessoal. Aqueles que querem reduzir a leitura psicanalítica do cinema à interpretação de personagens deveriam rever o papel do herói desde a tragédia antiga, não apenas como senhor e artífice individuado de seu destino, mas também como proto-agon, como protagonista, ou seja, aquele que vive em si o agon (o conflito), mas de tal maneira que ele pode ser percebido como universal. Há aqui uma confusão entre interiorização de conflitos sociais e a negação de conflitos sociais por meio de sua psicologização.
Santiago é uma cura para o ressentimento. Não uma cura reconciliatória (do necessário ao possível), mas uma catharsis desintegrativa (do impossível ao contingente). O seu verdadeiro problema é como recusar suas formas mais simples e brutais de exercício do poder, que se infiltram e se disseminam em ambições e decisões estéticas.
"Tinha vontade de editar esse material com duas ou três locuções diferentes. A primeira seria eu, que não apareço no filme, falando sobre as imagens. A outra seria de um personagem que está no material, pensando naquele momento sobre a viagem. E a outra, de um personagem periférico. É sempre o mesmo material, que adquire sentidos diferentes. Não é nada novo, original, mas está um pouco mais no caminho do que me interessaria fazer."
O enquadramento opressivo, formal, o “controle da cena”, a repetição das falas, traz para o interior do filme aquilo que deveria ser ocultado pelo corte e edição. Os ensaios, as imitações de naturalidade, a construção do personagem. Este tensão entre montagem visível e a montagem invisível não consagra-se a demonstração de que “o mordomo, afinal um agregado, era só um espelho”, como disse Inácio Araújo. O mordomo sai de seu lugar e desfoca a imagem. A beleza da morte (“la gran partita”); a grandioloquência da relação com o destino (“en cem anos estarão todos muertos”) diante da praia de Copacabana, a importância da “arquivística”, como tática de sobrevivência simbólica e esforço de pertencimento se manifesta na ênfase nos pequenos gestos metonímicos: os arranjos de flores, o fraque na casa deserta, na música de Beethoven. É pela lógica do “pequeno detalhe que o filme se mantém vivo”, como afirmou Cezar Migliorin. Na posição “impossível” diante a morte e no acolhimento da contingência da vida, Santiago é o testemunho moderno de uma experiência trágica.
A loucura genealógica de Santiago, que refaz criteriosamente as famílias reais dos mais diferentes países e épocas, jamais é reduzida a uma psicose bem organizada, assim como a sua orientação sexual, apesar da sutil autodeclaração em contrário, não é patologizada. Se a genealogia é um delírio, ela aparece no filme muito mais como uma tentativa de cura. E a loucura está para a cura assim como a psicose está para o tratamento. Só que enquanto a psicose nos traria a experiência particular de Santiago, a loucura nos traz este grão de verdade universal, que nos concerne a todos, em nossa própria racionalidade genealógica.
A interpolação de fragmentos de um filme em Super 8, com filmagens “naturalísticas” das lembranças de uma família, brincando na piscina (em silêncio) não funciona para dar maior realismo e portanto fidelização do espectador ao valor da lembrança, mas ao contrário, concorrem para enfatizar o fracasso que é a estrutura mesma do filme, como deveria ser a de qualquer processo de cura. Um fracasso bem realizado, um fracasso produtivo, isso é o de que se trata no filme. Isso é o que se espera da psicanálise.
Em meu último livro “Estrutura e Constituição da Clínica Psicanalítica” procurei valorizar a noção de cura em psicanálise. A cura - Kur em alemão, cure em francês – não deve ser confundida com o tratamento (Behandlung) e com a terapia (Therapie), se bem que os três procedimentos concorram no interior da prática psicanalítica e na história de sua formação. Alguns objetam que a noção de cura descende da medicina e deve ser descartada, pois na psicanálise não curamos pessoas como se cura uma gripe. Outros criticam o termo porque ele soa religioso demais, como as curas que ocorrem em Fátima ou Lourdes (sempre mulheres?), ou as curas mais ou menos metafísicas que ouvimos falar em nossos tempos new age. Apesar destas duas raízes cercarem a noção de cura, podemos recuperar um terceiro sentido, quiçá descendente da antiga noção grega de catharsis, ou seja, a ação transformativa que as obras de arte exercem sobre o espírito humano. Há, no interior da noção de cura, uma combinação entre exigências estéticas e políticas para as quais deveríamos prestar mais atenção. Não me refiro à política como sistema institucional de partidos e gerência do bem comum, mas da política como encruzilhada impossível entre as exigências para governar (exercer o poder sobre si e sobre outrem) e para recusar o poder (forma como a autoridade simbólica usualmente se cria e se propaga). A cura não é a negação desta relação, como sugere a noção de cura de uma doença e a cura também não é a elevação desta contradição à dimensão metafísica, como sugere a noção de cura mágica. A cura é o reconhecimento e colocação desta contradição em uma forma que aspira sua universalidade em uma sociedade por vir.
Devíamos, neste sentido, corrigir a afirmação de Guatarri de que o cinema é o divã do pobre, para o cinema é a cura, no sentido do reconhecimento, de que existem pobres e ricos, existem homens e mulheres, existem gregos e romanos, existem senhores e escravos. Mas qual a natureza ontológica deste regime de existência? Neste ponto Lacan ofereceu uma resposta diferencial: entre homens e mulheres ocorre uma “não relação”, contudo entre mestre e escravo, entre professor e aluno, entre a histeria e seu mestre ou entre analista e analisante o que ocorre é uma “relação impossível”. A “não relação” e a “relação impossível” são duas figuras do que Freud chamou de Mal-Estar na Civilização e que Lacan abordou com o conceito de Real. Ora, se o Real “veio para ficar”, se ele é a posição insuperável, qual é seu destino? O que fazemos com ele? Deleuze disse que isso levava a psicanálise a uma moral da resignação. Ora, faltava a Deleuze, como a Guatarri, a idea de cura. Se o Real não tem tratamento (mitigar o sofrimento), nem terapia (consolar se com a impotência), ele passou a ser designado como o “incurável”. Portanto, o real é o negativo da cura e por ela se define. Assim como o desejo do analista define-se pela negação do “desejo de curar”, portanto presume a cura, o Mal-Estar define-se pela negação do Bem-Estar e presume o estar. Isso nos leva ao lema freudiano: Wo Es war, soll Ich werden”, ou seja, “Onde Isso estava o Eu deve advir”, ou seja, estar, veir a ser, advir, por vir. O Mal-Estar que se aborda pela cura é o que aproxima a prática da psicanálise de uma experiência estética.
Christian Dunker é Psicanalista, Professor Livre Docente do Depto de Psicologia Clínica-IPUSP, Analista Membro de Escola da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano, Membro da Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental, Doutorado (IPUSP) e Pós-Doutorado pela Manchester Metropolitan University (UK). Autor de vários livros, entre eles o vencedor do Prêmio Jabuti 2012: “Estrutura e constituição da clínica psicanalítica: uma arqueologia das práticas de cura, psicoterapia e tratamento” (ed. Annablume, 2011)

domingo, 7 de abril de 2013

Cosmópolis : Esquadrinhando a Contemporaneidade

de Rosália Maia

Pela janela do quarto
Pela janela do carro
Pela tela, pela janela

Quem é ela, quem é ela...
Eu vejo tudo enquadrado
Remoto Controle



Esquadros, Adriana Calcanhoto (1982)



Esquadrinhando a Contemporaneidade
A compressão pós-moderna do tempo-espaço colocou em questão nossa capacidade intrínseca de perceber, interpretar e lidar com várias realidades que se nos revelam a todo instante. Encontramos um crescente desmerecimento da percepção humana em prol da realidade tecnológica. Temos vivido um impacto significativo desta intensa compressão sobre a economia, a política e a vida sociocultural. A aceleração do giro na produção e no consumo vem influenciando as formas de pensar, sentir e agir do indivíduo.

Consequentemente, presenciamos a crescente volatilidade e efemeridade de modas, produtos, ideias, valores e práticas sociais. O instantâneo e o descartável permeiam nossa experiência, desde os recursos que empregamos no dia-a-dia até nossa maneira de nos relacionarmos com o tempo objetivo, compartilhado, medido pelos relógios e ciclos da natureza; e o tempo subjetivo, cuja experiência e medida dependem da história de vida, do funcionamento mental e da cultura em que cada sujeito está inserido.

Hoje, não identificamos mais nenhum valor perene que sirva de referência às práticas socioculturais e pessoais: estamos diante de um processo de fragmentação e ruptura do que denominamos sociedade.

É com este cenário que David Cronenberg revela a fascinante, dura, e às vezes nauseante realidade contemporânea em seu último filme: Cosmópolis. Baseado no livro homônimo de Don DeLillo, considerado o primeiro livro a retratar de forma fiel o século XXI, refletindo sobre as importantes alterações nos paradigmas do espaço e do tempo na contemporaneidade. Dirige a nossa atenção para um ponto, fundamental: a tecnologia de que dispomos hoje interfere de maneira direta em nossa relação com o tempo, na medida em que pretende, em última instância, reduzir o tempo entre o aparecimento de uma necessidade e o encontro com o objeto de sua satisfação.

Cronenberg carrega suas tintas ao retratar não só o mundo corporativo, mas especialmente a volatilidade dos mercados globais, a presença dos gênios que viraram milionários ainda muito jovens e o vazio interior que resulta na busca incessante por novas emoções.

Vemos uma rua onde inúmeras limusines brancas estão estacionadas e um jovem muito bem vestido começa um diálogo, a curta distância, com o chefe da sua equipe de segurança. O curioso é que apesar de próximos, eles se utilizam de pontos intercomunicadores inseridos em suas orelhas. Este é Eric Packer (Robert Pattinson), o menino de ouro do mundo financeiro, milionário, que diz ao chefe de segurança que quer cortar o cabelo.

Começamos a perceber a personalidade arrogante de Eric quando ele ouve o alerta de que as ruas de Manhattan estão tumultuadas, algumas fechadas porque o presidente está na cidade.

“– De qual presidente estamos falando agora?” Pergunta Eric ao chefe de segurança. Ele diz não se interessar pelo presidente do país e simplesmente exclama: “– Eu preciso cortar o cabelo”! Qual é o meu carro? Pergunta ele em meio a limusines, todas brancas, aparentemente iguais!

Mas... a sua limusine certamente está no páreo, competindo com todas as outras: blindada, à prova de som, equipada com os mais sofisticados aparelhos tecnológicos, ali ele monitora tudo e a todos e igualmente é monitorado pelos seus agentes de segurança.

Eric Packer vai recebendo pessoas e dialogando com elas, enquanto cruza uma Manhattan agitada por movimentos anticapitalistas, em busca do barbeiro que conhece desde a infância. Vivendo em um microcosmo, Eric parece não possuir habilidades relacionais, parece um “objeto” que troca informações com outros objetos. Não conseguimos perceber nenhum traço de afetividade nele.

Existe uma riqueza exuberante, excessiva, nos diálogos mantidos entre Eric e seus visitantes.

Levando para a perspectiva do simbólico virtual dos dias de hoje, constatamos que na tecnociência e no tecnocosmo contemporâneos, o papel da linguagem propriamente dita é cada vez mais limitado e dissociado entre a pura extensionalidade e a pura metaforicidade, que, tanto uma quanto outra não permitem uma autêntica relação ontológica de sentido. A informatização da ordem simbólica afeta todos os aspectos da linguagem natural a ponto de ser substituída por outra coisa que é conforme as exigências do reino técnico. A natureza material da linguagem é transformada: de vocal ou gráfica (dócil à audição e à visão), o signo se torna eletromagnético e, simultaneamente, torna-se transmissível nos meios radicalmente diferentes do meio natural do homem.

Em “O Mundo Sem Limite” de Jean-Pierre Lebrun, que é um marco para a clínica psicanalítica do social, vamos encontrar questionamentos graves acerca da contemporaneidade: “A sintaxe se alinha no registro binário”, diz ele. O discurso informático faz funcionar a máquina, organiza o crescimento do reino técnico: não ajuda o homem a estar no mundo, ele o integra no reino técnico como um vetor, um elemento funcional deste. O computador é fundamentalmente não dialético, está fundado no princípio exclusivo de não-contradição. Com o sistema binário é preciso escolher, é constantemente sim ou não.”

Citaremos para continuar nossas reflexões, Hannah Harendt, que é conhecida, sobretudo por seus trabalhos sobre o totalitarismo; ela afirma que: “Uma das características fundamentais do sistema concentracionário não é o fato de que “tudo é permitido”, mas de que “tudo é possível”!” Ela dá destaque especial à capacidade do homem do sistema totalitário de se cortar da experiência que, no entanto, dá consistência e sentido ao pensamento. Essa emancipação do pensamento com relação a si mesmo, que equivale a uma saída da condição humana, será paga com um pesado tributo: a ruína de sua faculdade de julgar.

Voltando ao filme, enquanto a limusine de Eric Packer vai atravessando as ruas de Manhattan, ele vai recebendo ali mesmo, em um espaço minúsculo e sofisticado, os seus visitantes, que parecem ao nosso olhar, oráculos contemporâneos que tentam interpretar o mundo para ele.
As cenas vão transcorrendo como o funcionamento psíquico do processo primário que caracteriza o inconsciente: a energia psíquica escoa livremente, passando de uma representação à outra, (de um quadro a outro, de uma cena à outra) pelos mecanismos de deslocamento e condensação, visando à satisfação imediata do desejo.

Existe uma riqueza de informação nos diálogos que Eric mantém com seus consultores. Percebemos uma pressão ansiogênica sempre perpassando a trama, expressa por exemplo, no diálogo que tem com sua chefe de Teoria: “Precisamos viver no futuro, Eric!” “É o cibercapital que cria o futuro!” “Tempo é um ativo corporativo!” Entretanto, começamos a perceber a condição de desamparo em que ele se encontra, pois não percebe que não há garantias definitivas para o que diz respeito à linguagem, sendo esta incapaz de fornecer uma resposta última e inequívoca para questões essencias como a da fragilidade da existência.

Cronenberg revela em Cosmópolis o desamparo (hilflosigkeit) correspondente à dimensão de fragilidade da linguagem, a sua precariedade fundamental, dado que esta nunca consegue fornecer de uma vez por todas as bases estáveis e definitivas de um mundo simbolicamente organizado. A linguagem só é capaz de criar um mundo à condição de continuamente recriá-lo.

Com uma preocupação desproporcional com sua saúde, Eric faz check- up todos os dias. Ele tem uma relação ambivalente e fragmentada com o seu próprio corpo. É surreal a cena em que o médico examina sua próstata, enquanto ele conversa com sua analista de finanças (lembrando que a cena se desenrola dentro da limusine). Ao receber o diagnóstico, o pobre rapaz rico fica preocupado: sua próstata é assimétrica!
E é, justamente por não perceber a assimetria da vida, por estar olhando o tempo todo para o próprio umbigo, que a decadência de Eric se torna possível. Vivendo de especulações financeiras, parte para uma aposta de uma terrível incerteza na bolsa de valores, e a trama do filme vai mostrando as angústias e contradições de viver em um mundo dominado pelo fascismo econômico.

Eric simboliza o que o capitalismo tem de pior. Em uma das cenas, fica evidente a sua ganância e o quanto o outro não lhe importa.
Sua consultora de arte, interpretada por Juliette Binoche, lhe oferece um quadro de Marc Rotko. Packer não se interessa pela obra de arte. É pouco. Ele quer comprar a capela inteira (onde está o quadro), que pertence ao mundo.
A cena de sexo entre sua consultora de arte e Eric, é no mínimo curiosa! Vivem em um universo desenfreado de gozo, o que só revela a outra face de suas experiências de desamparo. A limusine é um mundo bizarro! Ali ele faz transações comerciais, transações filosóficas, tem relações sexuais, bebe alcoólicos, come amendoins! Há uma miscelânea de tudo! Contrariando um velho ditado mineiro que diz: "Onde se ganha o pão, não se come a carne!”.

Com as palavras de Plastino (2002), “A ambivalência entre Eros e destruição, característica da natureza humana, delimita o contexto conflitante no qual se insere a experiência do homem, tornando imprescindíveis as práticas sociais capazes de, por um lado, permitir a administração democrática dos conflitos e, por outro, orientar o processo de socialização dos indivíduos de maneira a buscar a hegemonia do movimento erótico. A inserção social do sujeito humano supõe a aceitação, obviamente mais afetiva que racional, da alteridade, vale dizer, a compreensão da existência de um outro diferente que constitui um limite para a onipotência narcísica do sujeito.” No vínculo primitivo, o sujeito constrói seu narcisismo, indissociável da figura materna, na indiferenciação do eu ideal. Quando não superada, essa posição inicial, o sujeito inibe seu processo de socialização. Socialização que convém pensar como um processo cujo ponto de partida é o eu ideal, seu percurso, as sucessivas experiências de castração sofridas pelo sujeito, e seu desfecho, a substituição do eu ideal pelo ideal do eu. Nessa perspectiva, a experiência de castração é vista como humanizante por meio do qual o sujeito é levado a abandonar a exclusividade do investimento libidinal em seu próprio eu, a fim de aceitar a alteridade e os limites representados por ela.” É aqui que percebemos o comportamento anômalo de Eric.

Freud, em “O mal-estar na civilização”, diz que o desamparo é uma condição psíquica em que o sujeito não pode contar com a proteção da figura do pai. Sentindo saudades dessa proteção que um dia ele experimentou, o sujeito deve transpor um limiar crucial sem contar com seu apoio, uma vez que a figura do pai, aquele que gera amparo, é o representante psíquico do sistema normativo instituído.

Eric busca reviver esse momento de proteção no esforço obstinado para chegar ao barbeiro do outro lado da cidade, onde o seu pai o levava desde criança

Aqui faremos um recorte: se antes buscávamos a eternidade pela adoração dos Deuses, hoje acreditamos encontrá-la ocupando o lugar da própria divindade. A mídia que, no mundo globalizado, fornece informações aos quatro cantos do planeta, em uma velocidade espantosa, nos confere a ilusão da onisciência. A tela do computador e a internet permitem que estejamos em vários lugares e com várias pessoas ao mesmo tempo, o que nos faz acreditar em nossa própria onipresença. A capacidade de criar e recriar rapidamente novos objetos leva-nos a crer em nossa ilimitada onipotência.

Pensamos que a presença ausente de um governante (presidente) no filme nos remete a algumas reflexões: algumas vezes somos levados a crer que o saber leva espontaneamente ao poder, esperamos que se encontre em posição de autoridade aquele cujo saber é o mais competente, erroneamente produzindo a crença de que esse saber esclarecido é a melhor garantia para bem governar.
Entendemos, conclusivamente, que nenhum saber, mesmo que amplamente esclarecedor, pode autorizar o lugar do governante. Quando o sábio tem acesso ao poder, se torna rei; troca de ofício e deixa de ser sábio, pois o lugar do saber não é o lugar do poder.

CULTIVAR O MAL-ESTAR OU CIVILIZAR A CULTURA?
"Deixa-me sofrer o tremendo
castigo de minha temeridade!
Por muito que eu sofra,
nunca serei privada de uma bela morte."
Sófocles - Antígona, I, 20

 Eric Packer tem algo estranho do “macho-alfa” e do pai da horda primeva. Ele casou-se com Lucile sem conhecê-la direito, mas como era um bom contrato familiar, já que a família dela é muito rica também, dá-nos a impressão de ter sido um “bom negócio”. Percebemos que o sexo com sua esposa é raro, mas ele busca, ao mesmo tempo, fazer um exercício frenético de sua sexualidade com outras mulheres, como por exemplo, com a agente novata de sua equipe de segurança pessoal. Eric quer viver intensamente as emoções, mesmo que elas sejam sórdidas. Depois de um contato sexual com ela, ele tenta convencê-la a atirar nele com uma arma de alta voltagem, querendo antecipar a sensação mortal. Ao mesmo tempo que desafia a morte, ele sente que tem o controle sobre ela.

Vamos acompanhar uma cena onde um ativista acerta uma torta com chantilly no rosto de Eric. É interessante este manifesto. (Lembrei-me do “beijoqueiro dos anos 80”) O confeiteiro Andre Petrescu quer mostrar ao mundo as falhas de segurança e acertar os ícones do capitalismo, representantes da ordem em vigor. Ele relata que já alvejou várias personalidades. É curioso o olhar de gozo desse confeiteiro! Ali a intenção é de exposição e lançamento do sujeito no grotesco. “A minha missão é sabotar o poder e a riqueza.” “Eu deixei passar o presidente para te acertar! Você é um manifesto importante, difícil de mirar! Sou um pintor gestual das tortas de creme! Estamos diante daquilo que Birman chamou de sociedade do espetáculo.

Eric vivencia a experiência do sinistro (estranho), quando percebe que pode estar em ameaça real de assassinato. A angústia do real se produz pelo desmapeamento provocado no registro do eu. Sua subjetividade entra na incerteza e na imprevisibilidade, uma vez que não pode mais contar com seus operadores de regulação. Inicialmente percebemos Eric entrando em um processo de despersonalização e desrealização, desmapeando os enunciados instituídos sobre ele e o mundo.   
A primeira vez que percebemos alguma emoção em Eric é quando ele se enfurece com o confeiteiro. Ódio. Um ódio que irrompe com toda força e o torna violento. Então ele surra Petrescu. E... estranhamente, ele experimenta do chantilly que ainda ficou em seu rosto.
Quando ele percebe que não tem controle sobre os códigos de segurança das armas compradas para protegê-lo e que está assujeitado à proteção e ao risco simultaneamente, ele se vê sem saída e comete um assassinato: na suspeita persecutória de que seu chefe de segurança também pode querer matá-lo, ele o mata primeiro!
Quando chega ao barbeiro, encontramos um fato: ali, naquele cenário, nada mudou! Tudo está como antes esteve: a barbearia, o barbeiro, as cadeiras, espelhos, calendários na parede, tudo ali permanece da mesma forma de quando frequentava o local com seu pai.
Enquanto está ali, o barbeiro lhe conta que seu pai o obrigou a entrar no carrinho (um brinquedo sobreposto à cadeira de barbeiro para distrair crianças) e ele se recusou a entrar ali. Então ele foi colocado em uma cadeira tradicional para adultos e permanecer ali enquanto seu cabelo é cortado. Aqui entra uma questão: ele reconhece ou não a lei? Onde entrou ou não o interdito paterno?

Na contemporaneidade, não podemos mais nos ater a noções estanques de passado, presente e futuro. Vivemos, sobretudo, de relações dialéticas entre os vários estratos do tempo. O presente é futuro do passado; o futuro é o presente-passado de nossas fantasias; o passado é matriz de todos os outros tempos e, como toda mãe, nos acompanha pela vida afora.

Quando seu motorista denuncia a ausência do chefe de segurança, o barbeiro preocupa-se e lhe oferece uma arma. Eric diz que precisa sair, sem se importar com o próprio cabelo que está cortado apenas de um lado, ficando assimétrico!
Eric agora não se preocupa mais em apostar contra as moedas nas bolsas ou perder sua fortuna. Ele parece obstinado a encontrar quem quer matá-lo. Nesse ponto do filme nos perguntamos quem quer promover o assassinato de Eric e por quê? Ele sabe que existe alguém espreitando-o, que o conhece e que sabe quem ele é, o que faz, sabe tudo sobre sua vida. Mas, quem é esse outro desconhecido para ele mas que o conhece tão bem? Conhece seus sistemas de defesa e segurança? Quem decifrou seus códigos e deixou-o vulnerável?
Quando o motorista vai guardar a limusine porque a noite já vai alta, Eric o acompanha, ele quer saber o que acontece quando todos dormem. Para onde vão as limusines?
E aqui entramos em um momento de clímax do filme.

Na rua, um tiro ecoa pelos ares e acerta um táxi perto de Eric. Ele “sabe” que está perto de encontrar seu antagonista.
O cenário é desolador: miséria, decadência, caos e suspense.
Eric, agora, vai perseguir aquele que o ameaça.
Vamos entrar com ele em um prédio imundo... e arrombar uma porta. Com a arma em punho Eric vê um homem com um pano na cabeça sair de um banheiro! Ele é Richard Sheets. Sheets, com a devida tradução para o português: merda! (Aqui é Paul Giamati, em uma interpretação magistral.)

"O que faz aqui?” Questiona Packer.
Não é essa a pergunta!” Diz o homem.

A cena é fascinante pois o homem, tal como a Esfinge para Édipo, propõe um enigma à Eric !

Quero matá-lo para fazer algo importante na vida! Você não me reconhece? Diga quem pensa que sou.”

Eric não sabe. Ele diz que ele próprio havia se tornado um enigma.

Não consegui perceber uma tendência... Não consegui entender o Yuan!(nome de uma moeda e que naquele momento tem a supremacia sobre as outras)”

Então você pôs tudo a perder? Questiona Richard Sheets que não suporta ser chamado por este nome, e quer ser um outro, Benno Levin.

E o diálogo vai seguir um curso sobre a vida e a morte.
Este homem, na verdade, trabalhou com análise de moedas na Packer Capital, era funcionário das empresas de Eric, diz que de qualquer maneira precisa matá-lo, tem motivos justos para isso, a começar pela opinião de que ele é repulsivo e insanamente rico.

O crime não tem consciência! Seu crime está na sua cabeça! A violência precisa de um fardo!

Aqui Eric ardilosamente vai procurando palavras para operacionalizar Sheets, como se fosse sorrateiramente acessando seus significantes de maneira a controlá-lo.
Surpreendentemente, Eric atira na própria mão! Fazendo-se então estigmatizado!
Richard prontamente pega um tecido para ajudar a estancar o sangue. E diz que Eric fez as análises do Yuan seguindo os padrões da natureza, a harmonia cruzada, o número áureo. E diz que Eric não conseguiu enxergar que a resposta estava em seu próprio corpo, a resposta estava em sua próstata! O Yuan não tinha nenhuma tendência de simetria! O yuan era assimétrico como sua próstata e ele não conseguiu perceber.

“Mas o meu fungo manda matá-lo!" Grita Sheets.
Você conversa mesmo com seu fungo? Eu já vi pessoas que conversam com Deus!..." Manipula perversamente Packer.
Eu queria que você fosse o meu Salvador!" Exclama Richard.
Nesse ponto, Sheets, mesmo armado, já foi capturado pelo narcisismo aspirante de Eric, que num ato, em um simulacro, se torna um deus! Conseguiu acesso aos códigos delirantes dele. Eric, com um estigma na mão, com um furo no real se identifica com o próprio Salvador dos Cristãos

Concluindo para não concluir
Cosmópolis retrata toda a dimensão trágica da experiência humana do sofrimento – pathei mathos, um sofrimento que comporta a possibilidade de transformação do vivido em sabedoria.

Rosália Maia é psicanalista, psicóloga. Especialista em Teoria e Clínica Psicanalítica. Pesquisa as novas formas de subjetivação na atualidade.