segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

Um Sabor de Sal na Boca

de Rodolfo Coelho
Um sabor de sal na boca
gelo seco palmilhando a pele
frescor de sucesso,
- ai de mim,
nesta primavera intensa
submersa até a raiz
onde o olhar acusa,
onde o saber destrói
a saudade demais não
se cansa
de haver sido a causa
de tanta demora enfim
doce roçar de pernas
um sabor de limão na
língua
quero mais não saber
das horas que andei
à procura de ti
do inominado atol
das vagas, bromélias
o insensato rumor das
coisas.


Rodolfo Coelho, poeta urbano, é autor de seis livros:
RuAugusta com Creme – O Lobo Mau da Rua Augusta  - ]gnição – 
Táxi e Outros Poemas Inéditos – Salada Paulista - Poesia 100 Filtro

terça-feira, 18 de dezembro de 2012

Nossa Música : de Jean-Luc Godard

por Karin de Paula
Com um título desses, até os menos românticos são capazes de se animarem. Nossa música! Mas quem fazemos este “nós”? No escopo da cinematografia godardiana, trata-se de uma ambição derrisória, por evocar o coletivo humano em suas vísceras de crueldade e destruição... Homem de nem tantas palavras, Godard prima pela mostração:
É com Jean-Luc Godard que o cinema-ensaio chega a sua expressão máxima. Para esse notável cineasta franco-suíço, pouco importa se a imagem com que ele trabalha é captada diretamente do mundo visível ‘natural’ ou é simulada com atores e cenários artificiais, se ela foi produzida pelo próprio cineasta ou foi simplesmente apropriada por ele, depois de haver sido criada em outros contextos e para outras finalidades, se ela é apresentada tal e qual a câmera a captou com seus recursos técnicos ou foi imensamente processada no momento posterior à captação através de recursos eletrônicos. A única coisa que realmente importa é o que o cineasta faz com esses materiais, como constrói com eles uma reflexão densa sobre o mundo, como transforma todos esses materiais brutos e inertes em experiência de vida e pensamento.”.
(MACHADO, 2003: 10)

O 1º Reino: O Inferno
Então, são poucas palavras costuradas às muitas imagens. Imagens que nos assustam, nos impressionam, até mesmo nos aterrorizam, e nos revelam. Quem, que não nós mesmos, estivemos lá? Se não de corpo, mas de alma, ou por vestígios do outro em mim?
Assim, no tempo das fábulas, depois das inundações e do dilúvio, surgiram da terra os homens armados e se exterminaram...
Eles são terríveis aqui, com esta mania de decapitar as pessoas. O que surpreende é haver sobreviventes...
Fragmentos de violência, sob os riscos do Real. Obsceno, como diria Baudrillard...
Perdoem aos que nos ofenderam, assim como os perdoamos... Não de outra maneira.
Sim, como nós os perdoamos... Não de outra maneira...
Ficção e arquivo, mas não sem uma questão colocada sobre a morte: podemos encarar a morte de duas maneiras, como o impossível do possível, ou como o possível do impossível...
... “Você se lembra de Sarajevo?”...
Todo grande filme de ficção tende ao documentário e todo grande documentário tende à ficção e, quem optar por um, encontrará necessariamente o outro no fim do caminho” (Jean-Luc Godard)
... “Você se lembra de Sarajevo?”...

O 2º Reino: Purgatório
Algumas palavras, muitas imagens devastadoras -o que sobrou? O que sobrou de nós? Assemblage, bricolagem de nossos termos fragmentados – nossa música?-, tentativa de reconstrução, reconciliação entre perdas, ruínas, Roma, memória que não é só tua ou minha... afinal, a verdade tem estrutura de ficção. Ficção possível?
Segundo Machado (1999), Nossa Música é a versão godardiana da Divina Comédia, de Dante, e foi filmada a partir de elementos fragmentários da sociedade moderna, marcada pela guerra e pelo horror.
Segundo o rabino Nilton Bonder, e ao contrário da soberba humana, o perdão é a realização de uma perda grande... uma perdona...
Quando o imperativo categórico impõe a destruição, cabe nos interrogar a respeito?
Certa vez, ouvi um depoimento de um sobrevivente do Shoah, que já adulto dizia ter se surpreendido com um pensamento que lhe ocorrera no momento que se viu livre do campo de concentração quando criança. Teria pensado ele: Agora posso morrer! Para sua própria surpresa “temporária”, este, agora homem, realizara: Claro, morrer não é o mesmo que ser exterminado...
Assim, vimos nas imagens selecionadas por Godard, não só cenas de Memory of the camps (1985), mas também cenas lúdicas de batalhas infantis: arquivo e ficção...

De A vida secreta das palavras, dirigido por Isabel Coixet:
Há poucas coisas: o silêncio e as palavras.
A pergunta é: Como alguém vive com o que aconteceu?
Eu sei, terão que ir para o futuro... Alguns não conseguem.
Outros se recusam. Recusam-se a admitir que estamos todos no fio da navalha que corta a visada do mundo .
Ter o privilégio de dizer das visitas ao Real: repetir-se e reinventar-se, eis o desafio.
E há os livros... protagonistas no purgatório de Godard, empilhados, esparramados e, até mesmo, tomados como bomba na bolsa vermelha de Olga, eles constituem o que mais precisamente parece fazer parte do mundo que tenta se configurar como válido e responsável pelas vidas que ainda vigoram, embora haja empecilhos...
No cinema e na vida, ponto e contra-ponto ex-istem como meio de reflexão possível.

O 3º Reino: Paraíso
No cartaz original de divulgação de Melancolia, de Von Trier, estava escrito sobre a foto de Justine disposta como Ofélia de Hamlet: “O fim será belo”... Mas, Isso será possível? O que podemos fazer com Isso? Ou Dizer dIsso? Perguntas de uma análise...
Se é sim, não o é sem passar pelo inexorável fim admitido, quando terá sido fundamental ter lançado mão, como em Melancolia, Nossa música, ou ainda, Divina Comédia, da “caverna mágica” estabelecida por um puro designo nominativo. Este é o lugar da aposta de que seja factível ficar com o possível do impossível...
SP/ Dezembro de 2012

Karin de Paula é Psicanalista, Mestre e Doutora pela PUC-SP,  Pós-doutoranda na Sorbonne Paris Diderot (Paris 7), professora na universidade e em curso de formação de psicanalistas. Membro fundadora do umLugar – Psicanálise e Transmissão. Autora dos livros “$em – sobre a inclusão e o manejo do dinheiro numa psicanálise”, Ed. Casa do Psicólogo  Do espírito da coisa - um cálculo de graça”, Ed. Escuta.

domingo, 9 de dezembro de 2012

A Árvore da Vida ou A Árvore do Pai?

de Henrique Senhorini
Bem que este filme poderia se chamar de acordo com esta segunda opção: A Árvore do Pai. E vou ficar nesse recorte que escolhi, a relação pai e filho apresentada nesta película, para tentar dizer algo sobre.

Mas, de que pai estamos falando ? Do pai biológico, do pai da nossa realidade compartilhada, do pai Imaginário? Daquele pai que faz a função paterna? Ou daquele que faz a suplência? De um dos avatares do Nome-do-Pai ? Ou do pai Simbólico, aquele que se faz presente no discurso da mãe? Trata-se do pai vivo ou do pai morto ? Este último é mais forte que o primeiro ? Ou podemos até pensar que se trata de Deus, o Pai de todos nós, o Pai que poderia estar no campo do Real, este último pensando com o auxílio da Françoise Dolto ?
Pois bem, assim como nós, neuróticos “normais(?)”, circulamos no entorno desse ponto de ancoragem – Nome-do-Pai - o filme também se desenvolve em torno desse significante, ou melhor, desses significantes pois, de acordo com Lacan - segundo Joël Dor, "os significantes Nome-do-Pai são múltiplos" e só se torna um significante primordial na medida em que, num dado momento, vem ocupar um lugar de destaque. Isso me faz supor, bem provável, que este filme fora feito por um, no mínimo, neurótico “normal”, também. Entretanto, é bom ressaltar que não é da minha prática analisar o autor através de sua obra e sim analisar a obra do autor.

E o filme trás bem isso, a relação de um pai (O'Brien - Brad Pitt) com seu primogênito (Jack - Sean Pean). Esse pai que se mostra forte, talvez por repetir o modelo de seu próprio pai ou pela formação militar rígida que recebera passando por uma guerra e sobrevivido ou ainda por ambas? E ele passou por mais do que isso, pois sua guerra foi a Segunda Grande Guerra Mundial, onde os homens foram testados até seus limites como o Jó da Bíblia, cujos provérbios são mencionados no início do filme. E, apesar de tudo, conseguiu se inserir no “american way of life”. Será que, por conta de sua história, O´Brien supôs ter a verdade? Eu sei o que é melhor para você !!! Sabia mesmo? A propósito, alguém sabe o que é melhor para o outro ???

Por outro lado, será que esse modelo adotado pelo pai, um misto de sargento do exército com Deus, significava falta de amor para com seus rebentos ? Ou simplesmente achou que era o melhor que poderia oferecer para se tornarem um “vencedor” como ele? No mínimo, era assim que ele se apresentava, isso quando não se travestia de senhor Deus do universo, do seu universo familiar.
E assim procedeu criando seus filhos, que começaram a enxergá-lo como um ser supremo, primeiro amando-o para em seguida temê-lo, o que estaria de acordo com o discurso de algumas religiões.

Jack tentava fazer a sua parte, se esforçando ao máximo para agradar esse pai insaciável no quesito perfeição.
Deus - o verdadeiro? - era testemunha do esforço de Jack em querer ser um bom filho aos olhos desse pai, de querer ampliar sua tolerância, suas limitações humanas, pois recebia suas preces pedindo-lhe mais paciência e resignação.
Apesar disso, por mais que tentasse, seu pai não reconhecia seu valor. Este exigia mais e mais e mais perfeição. Não sei qual perfeição O'Brein pretendia que seu primogênito alcançasse, pois ele próprio - apesar de esconder isto da família e, quiçá, muitas vezes de si mesmo - sabia que, assim como qualquer outro mortal, era imperfeito, era incompleto.
Como no carteado que frequentava, estaria esse pai apoiando-se numa cosmovisão e nela apostando todas suas fichas? Seria cosmovisão científica ou cosmovisão religiosa ou conforme a música ele escolhia a que melhor dançasse?
Estaria ele com um Royal Street Flash nas mãos ou com um simples parzinho mínimo? Tratava-se de um blefe?

Em 1936 sai publicado a 35ª Conferência, na qual Freud aborda o tema “Westalnschauung” (mais conhecido entre nós como Cosmovisão) e diz: “entendo, então, que uma cosmovisão é uma construção intelectual que soluciona todos os problemas de nossa existência, uniformemente, com base em uma hipótese superior dominante, a qual, por conseguinte, não deixa nenhuma pergunta sem resposta e na qual tudo o que nos interessa encontra seu lugar fixo.” e mais, “...acreditando-se nela, pode-se sentir segurança na vida, pode-se saber o que se procura alcançar e como se pode lidar com as emoções e interesses próprios da maneira mais apropriada.”.
Freud fala também sobre as diferentes visões do cosmo, a científica e a religiosa, e por se posicionar como um homem das ciências - que era - alinha sua criação, a Psicanálise, com a cosmovisão científica, mas sem se esquecer de apontar as dificuldades em situá-la junto com as outras ciências positivistas, justamente por conta dos inúmeros pontos divergentes, provavelmente a começar pelo principal, o Inconsciente.

Mas, retornando ao filme, percebemos - na medida que o primogênito crescia, crescia também a rigidez de O'Brien, a disputa do amor da mãe, a rivalidade fálica diante dessa mãe, o peso do poder fálico paterno que mantinha todos na sua ordem, todos sob seu jugo - que o amor de Jack por seu pai começava se dissipar. Pior que isso.

Ah, tem na cena do almoço um quase “closer” no prato de comida com porções que não se misturam (cliché)... seriam indícios de uma neurose obsessiva que o diretor quis passar?

Pois bem, novamente voltando.... a sujeição que esse poderoso pai exigia era tão violenta que o amor de outrora, ou o que restava deste, foi - como numa metamorfose - se transformando em puro ódio. Alguns dizem que é o outro lado da mesma moeda, será mesmo?
Ódio esse que não ficou restrito ao pai, mas se espalhou atingindo os outros, os amiguinhos, os vizinhos, os animais, enfim a sociedade, o mundo (Ah... também dizem que a família é a célula mater da sociedade) e acabou atingindo até a própria mãe.
Será porque esta aceitava o poder opressor do pai sem contestação, sem proteger seus filhos desse algoz? Aliás, ela se subjugava a qualquer demonstração de poder fálico advindo do Outro. Vocês lembram da cena na cidade, a da policia humilhando seus detentos? Falando nisso, perceberam como Jack se identificava com os oprimidos? O detento, o menino que sofrera queimaduras...

Eu queria ficar restrito ao recorte pai-filho, mas não consigo me conter: quando olho essa mãe não dá para não pensar numa forma de masoquismo, num masoquismo moral, ou dá???

E vem também a perda do amigo (que morre afogado) contribuir no aumento de sua raiva, de sua indignação. 
Aqui cabe mencionar uma frase de Freud naquela mesma conferência. Diz, mais ou menos assim, que - de acordo com a cosmovisão - as garantias de proteção e felicidade estão ligadas aos requisitos éticos e que somente os que cumprissem estes requisitos seriam recompensados e os que não cumprissem seriam punidos.
Com a morte  por  afogamento do amigo,  a verdade do pai - deus O´Brein cai de vez como ruínas para Jack. Bons e maus sofrem das mesmas vicissitudes da vida. O mundo era injusto !!! Provocação: é mesmo ???

E com o ódio transbordando sobre aquele que exercia poder soberano, assim como na horda primeva do mito científico freudiano Totem e Tabu, o parricídio seria somente uma questão de oportunidade para sua concretização. E essa hora propícia chegou com a cena do carro... que tentação (quem tenta-a-ação?) bastava soltar o macaco que sustentava o carro sobre o pai para sua vez chegar. Chegar a hora e a vez de assumir o lugar de O'Brien, de assumir o poder sobre os demais. Na sua fantasia, seria a hora de ter o falo ou de ser o falo?

Mas, caso o matasse, como ele ficaria sem esse pai ? Como ele ficaria, na sua fantasia, sem os limites impostos de forma impiedosa por esse pai? Esses limites que o barrava, porém, concomitante, o protegia principalmente de si mesmo, do seu lado obscuro?
De repente, o medo pode ter contido o assassinato do pai, visto que a cena presenciada na cidade (a da policia) provavelmente causou desdobramentos. Talvez, percebera que um Outro poderia tomar o lugar do pai, um Outro vestido de policial que não usasse a Lei simbólica do pai imaginário e sim a lei do estado que, aos seus olhos, poderia ser mais insuportável e cruel que a de O'Brien. Optou pela Lei simbólica do Pai.

Porém, logo percebeu que nem precisou matar seu pai para este morrer, pois o mesmo cometeu uma espécie de Harakiri. A morte simbólica desse pai-deus imaginário foi anunciada pelo próprio O´Brien, quando relata quão tolo havia sido, talvez por acreditar em demasia no “american way of life”, no estilo de vida americano. Até hoje alguns ainda creem nisso e ou sofrem disso ou por conta disso?

Bem, a notícia que o rei estava nu, mais a queda do bezerro de ouro, parece que suscitou em Jack uma autorização que ele poderia ultrapassar esse pai desempregado. Um fracassado na visão norte-americana. Termo esse já adotado, também, em terras tupiniquins. E assim o fez, se tornando bem sucedido – e reconhecido - naquilo em que seu pai mais se apoiava e falhou, no capital.
Jack chegou no topo, atingiu o Olimpo do capitalismo. Estava enfim no Nirvana? Porém, não conseguia sentir-se assim completo. A completude fugazmente se mostrou como alucinação, pois algo faltava.... algo sempre iria faltar. E, de repente, seu irmão morto começou a se fazer mais presente na sua ausência... De repente, Jack começou a desconfiar que escolhera, talvez, o desvio equivocado.
Tem a sensação que precisa desconstruir para poder reconstruir um novo, um diferente. Semelhante ao processo de análise, recorda, revivi e elabora. Liga para o pai, numa tentativa de reconciliação. Uma reconciliação com seu passado para modificar seu próprio futuro? Com seu pai?
Ressignificar sua história, suas lembranças parece ser sua nova aposta, uma nova escolha ? Talvez, seja necessário chegar até o ponto do desvio, ou um pouco antes, para enfim escolher outro rumo, um outro destino para sua história?

Escutei uma vez que reconhecemos um bom marinheiro naquele que passou por mares revoltos e não por mares calmos. Será ?

E, aproveitando, alguém saberia dizer, ou melhor, poderia afirmar e apontar qual o melhor caminho para o Jack seguir ? Reformulando: há alguém que possa escolher pelo outro sem tirar-lhe a competência - e a responsabilidade - de escolher por si próprio? Alguém se habilita ???

domingo, 2 de dezembro de 2012

O PERFUME : História de um assassino

de Aline Elizabeth Marino de Oliveira


O filme que escolhi como tema é uma adaptação do livro best seller de Patrick Süskind. Ele me fez pensar na questão da volatilidade do eclipsado objeto do desejo, de difícil controle, domínio e tão fugaz quanto os aromas. O que há por trás do objeto desejado que tanto nos escapa? Por que é tão difícil mantermos a mesma intensidade de desejo por algo já conquistado? Ora, se a falta que suscita o desejo persiste a conquista do objeto desejado e, então, o sujeito segue desejando, desejaríamos a falta?
Na visão psicanalítica, a concepção de objeto é visto sob três aspectos: enquanto correlativo da pulsão, enquanto correlativo do amor ou do ódio, enquanto correlativo do sujeito. (LAPLANCHE e PONTALIS)
O objeto do desejo para Freud é um objeto perdido, que desliza infinitamente numa cadeia marcada pela falta e que continua presente como falta. Ele não constitui algo da ordem do concreto que se oferece ao sujeito e sim da ordem do simbólico. Antes de ascender ao plano do simbólico o desejo se realiza no plano do imaginário. (GARCIA-ROZA)

No transcorrer da história, o desejo de Jean Baptiste parecia ser controlar o desejo do outro. E no final, de posse do desejo do outro, ele se depara com a sua ausência de desejo por esse outro. Junto com o poder permanecia a falta. Falta de que? De quem?
Cabe aqui, então, um retrocesso.
Jean Baptiste quando chega ao mundo não é recepcionado pelo desejo de sua mãe. Mas de que desejo estaria eu falando? Ele é expelido como qualquer um dos dejetos fabricados pelo corpo dela e seria recolhido ao final do dia juntamente com as tripas dos peixes e lançado ao rio. No entanto, ele não quis que fosse assim. Ele escolhe viver e grita, anunciando ao mundo sua existência. Sobrevive ao parto e ao abandono, contrariando o esperado e subvertendo a ordem. “O primeiro som que sai da sua boca leva sua mãe para a forca”. Xeque-mate na rainha! Jean Baptiste segue em sua aposta solitária, carregando consigo seu primeiro crime? Uma culpa primordial e quiçá a insígnia de assassino? Teria ele então se condenado e se calado por cinco anos, vivendo enclausurado em sua prisão interna, ensimesmado, recolhendo seu cheiro, sua existência, permanecendo “incluído de fora”, como um sonâmbulo a vagar pelos espaços que lhe eram destinados? Eu me lançaria nessa hipótese como uma das muitas possíveis.

Quem como ele havia sobrevivido às condições de seu nascimento não cedia tão facilmente seu lugar no mundo. Seu corpo sobrevivia com um mínimo de comida e de roupas e a sua alma parecia de nada precisar. Ele se apresentava imune à dor e com a resistência de uma bactéria, sendo visto como um “extra” terrestre. Sua presença causava estranhamento e repugnância. Era como se pertencesse a outra realidade; ficava ausente para as pessoas e objetos que o cercavam e que, para ele, eram como que transparentes, desprovidos de sentido. Sua forma de reconhecimento e relacionamento com o mundo se dava através do olfato. Teriam os odores ocupado o lugar simbólico deixado vago pela mãe? Sua voracidade em buscar e colecionar novos aromas teria alguma relação com um registro mnêmico do cheiro de sua mãe?

O que mais poderíamos dizer do encontro de Jean Baptiste com o mundo externo? Desde a tenra idade, suas relações foram pautadas pela questão da utilidade x valor monetário, e, em dado momento, a experiência de ser descartado se repetia. O mundo que vai se descortinando além de hostil, não comporta experiências de afeto, amor, compaixão, estabilidade. A frouxidão dos laços gerava níveis de insegurança, propiciando a criação e o isolamento em um mundo interno paralelo onde ele podia se sentir seguro. Um mundo com linguagem própria (a dos odores), em que ele era o senhor absoluto, controlando e criando novas experiências e sensações: Jean Baptiste acumulava, no seu íntimo, uma quase infinidade de experiências olfativas e, a partir de suas decomposições, realizava novas combinações e criações que não existiam no mundo real.
A par de sua aparente renúncia ao desejo de descoberta do mundo e de si mesmo, poderíamos considerar seu interesse e curiosidade pelos aromas um ponto de ancoragem com a realidade dos outros seres humanos?

Jean Baptiste deseja vorazmente algo que ele não sabe o que é, e que eu penso estar deslocado e condensado para essa questão do domínio do aroma. O que ele traz em seu discurso é a necessidade de aprender a capturar e manter o aroma, sendo este, para ele, a alma do ser humano. Para que? Para nunca mais perder, para poder reprisar. Qual seria a representação de alma para ele?

O dicionário da língua portuguesa Houaiss, define alma como o “princípio vital; a sede dos sentimentos, da vida afetiva, a natureza moral e emocional de uma pessoa”.
De acordo com Jean Baptiste quem controla os aromas, controla o coração dos homens. Se pensarmos o coração simbolicamente como a sede das emoções, estaríamos falando de um desejo de controlar o amor e o ódio? De um modo de defesa relacionada à perda de pessoas significativas, que de alguma forma haviam deixado uma inscrição, uma marca em seu psiquismo?
O que estaria por trás dessa necessidade de controle? Caberia pensarmos em uma pulsão de dominação?
Quando o cheiro da vendedora de ameixas invade suas narinas, ele se sente fortemente atraído, completamente absorvido, sendo tocado de uma forma tão avassaladora e doce como, aparentemente, nunca fora, pela crueza de sua realidade. Algo de uma beleza tão sutil e ao mesmo tempo com um poder tão grandioso que desperta o gigante adormecido, que só existira de forma animalesca, voltando-lhe o olhar para o externo. Ele, então, o persegue até encontrar a fonte, mas inadvertidamente, “sem querer, querendo”, comete seu segundo assassinato. O que teria nesse cheiro que o deixou tão desorientado? Por que ele não conseguia retê-lo, sendo que tinha a capacidade de recordar e sentir, a qualquer momento, o cheiro dos milhares de odores específicos arquivados em sua memória?

A experiência na caverna propicia a Jean Baptiste um maior contato consigo a partir do qual ele se percebe como alguém sem odor e insignificante para os outros, temendo o próprio esquecimento. A partir desse momento, os crimes cometidos, que até então me pareceram involuntários, passaram a ser premeditados. “Eu simplesmente precisava dela” responde ao pai inconsolado com a morte de sua filha. Nesse momento eu me questionei: Quem fala e de quem se fala? Seria o Isso falando?
Cabe aqui uma observação: o sujeito está dividido e não centrado no eu. Temos, portanto, “o sujeito do enunciado, (...) portador do discurso manifesto, porém desconhecedor do sujeito da enunciação e do conteúdo da mensagem; (...) e o sujeito da enunciação (...) que não é expresso ou significado no enunciado, mas recalcado e inconsciente.” (GARCIA-ROZA)
Nosso protagonista viveu a angústia de não ser conhecido por quem o gerou, de não ser visto, de não existir. Ele, então, cria uma alma Frankenstein, composta de treze essências femininas, que lhe possibilitaria existir e saciar sua fome ininterrupta de ser alguém no mundo. Por instantes, a sensação parecia ser de triunfo. “Ele consegue criar para si a aura mais radiosa e eficaz da face da terra sem dever a ninguém: a um pai, a uma mãe e, menos ainda, a uma divindade benfeitora. Ele era, na realidade, o seu próprio deus” (SÜSKIND). Aos seus pés estavam o bispo e toda a população. No entanto, por detrás da máscara do melhor perfume do mundo, persistia sua total ausência de odor, de desejo por si e pelo outro. Então, qual era o sentido?
Ele remonta a cena em que encontra a vendedora de ameixas, mas dessa vez, ela o vê, o abraça, o deseja. A cena é bruscamente interrompida pela imagem do corpo morto e, pela segunda vez na vida, ele chora. Teria ele se dado conta que o objeto de seu desejo estava para sempre perdido?
Então ele se retira, sendo levado por suas memórias olfativas ao local do seu nascimento. Ele derruba o perfume sobre a sua cabeça e se deixa devorar pelos ali presentes, que se sentiram “tomados por uma felicidade infantil, pois, pela primeira vez na vida, acreditavam ter feito algo puramente por amor”.
Vieram a mim as seguintes questões:
    - Jean Baptiste quando chega ao mundo não é recepcionado pelo desejo do Outro, mas, de alguma forma, teria ele com o perfume reproduzido no outro a voracidade do seu desejo de ser desejado e conseguido, pelo menos, se retirar do mundo por essa via?
    - O ato de se deixar devorar pela multidão presente no local de seu nascimento seria uma tentativa de retorno para o ventre de sua mãe, de se sentir completo, pertencente, parte de, na simbiose, na alienação?
    - O que estaria por trás, ou na frente, da 13ª essência?

Aline Elizabeth Marino de Oliveira é Psicóloga Clínica em processo de contaminação pela psicanálise.