domingo, 25 de novembro de 2012

7 Dias em Havana

de Luiz Fabio Antonioli
Assisti hoje e recomendo o filme "Sete Dias em Havana / Siete Días en La Habana". O filme é transnacional, produção cubana, espanhola, francesa. São sete capítulos, cada um nomeado e ambientado em um dos dias da semana, e dirigido por um diretor diferente. Nessa composição, é de se esperar um resultado irregular, mas apenas um dos episódios pareceu fora de contexto. Ainda que mais não fosse, vale pelas imagens de Havana em 2012. O próprio formato de várias narrativas fez lembrar o "Suíte Havana" (dir.: Fernando Pérez, 2003). A diferença é que em Suíte Havana cada personagem interpretava a si próprio.

a. "Lunes" (episódio: 'El Yuma') é dirigido pelo ator porto-riquenho Benício del Toro, idealizador e coordenador do projeto. Assunto: um jovem norte americano recém-chegado a Cuba para estudar cinema vai passear pela cidade; seu motorista/guia vai apresentando realidades com as quais um americano jamais sonharia. Mesmas ruas, dois olhares de lugares diferentes. O final do episódio é muito bem desenvolvido e particularmente engraçado, quando a pessoa que acompanharia o jovem em uma "noche loca" sai do hotel - e se despede do porteiro, com toda a dignidade.

b. "Martes" (episódio: 'Jam Session') é do argentino Pablo Trapero, o mesmo de "Carancho / Abutres", "Elefante Blanco" e "Família Rodante". Assunto: um diretor de cinema sérvio vai a Havana para receber um prêmio. Mas não consegue estar lá: passa todo o tempo bêbado, tentando sem sucesso um contato por telefone celular com a Sérvia para resolver um problema com a namorada... a música cubana vai fazer a ancoragem desse estrangeiro, por fim. O diretor sérvio Emir Kusturica, que também tem uma banda musical, interpreta a si próprio (totalmente autobiográfico). Bela fotografia para as cenas musicais espontâneas das "descargas" (
jam sessions) cubanas.

c. "Miércoles" (episódio: 'La Tentación de Cecilia') é do espanhol Julio Medem, de "Lucía y el Sexo". Assunto: a linda cantora Cecília vai ter de escolher entre a sua vida de dificuldades, ao lado de seu companheiro cubano, ou aceitar o convite tentador de um empresário (o ator Daniel Brühl, de 'Good-Bye, Lenin') para ir se apresentar na Espanha. O interesse de Cecilia pelo empresário é pessoal? Ou ela estaria mirando aquilo que ele representa (a possibilidade de deixar para trás sua vida difícil em Cuba)? A tentação de Cecília encontra uma resposta, provisória, no fim deste episódio - mas só se resolve em outro episódio ('Dulce Amargo'), no qual o personagem já não é central.

d. "Jueves" (episódio: 'Diary of a Beginner') é do palestino Elia Suleiman, de "O Que Resta do Tempo". O diretor interpreta a si mesmo: um palestino que chega a Havana para entrevistar o presidente Castro. O segmento inteiro diz respeito à situação da espera. Contemplativo e intimista, bela fotografia. Enquanto espera a tramitação burocrática, Suleiman passeia pelo Malecón, pelo zoológico e pelos corredores do Hotel Nacional... apenas para se deparar com pessoas estáticas, até mesmo de costas para seu campo de visão, ou animais escondidos. Mas essa primeira mirada não dá conta do todo de sua experiência cubana já em andamento: a questão se resolve quando o personagem se dá conta de que a espera não é algo estático, e percebe já ter encontrado respostas para as perguntas que ainda nem havia feito. Ou então, ter se deparado com novas questões.

e. "Viernes" (episódio: 'Ritual') é do francês Gaspar Noé, de "Irreversible". Na minha opinião, ele não foi feliz nessa participação. Escolheu uma abordagem exótica, com aquele olhar de europeu que não entende nada para além dos seus limites de conhecimento. Se alguém tiver de ir ao banheiro durante o filme, essa é a hora. A iluminação do ritual afro é ruim, a trilha sonora "exótico-pitoresca". Tedioso e previsível, na linha "Macumba para turista". O inesperado casal de meninas até pode convocar a resposta dos pais de uma magia ritual africana... mas, que eu saiba, os orixás não são ortodoxos quanto à heterossexualidade. Oportunidade perdida.

f. "Sábado" (episódio: 'Dulce Amargo') é do diretor cubano Juan Carlos Tabío, de "Morango e Chocolate". Um grande corte no dia a dia de uma família cubana comum, com suas dificuldades e as maneiras de superação. A mãe da família combina seu emprego formal com atividades informais (a muito custo) para manter a família, em meio a apagões e desabastecimentos em um quadro de embargo econômico... além disso, administra um marido alcoólatra, uma filha que parece apenas interessada em assistir televisão, e outra às voltas com uma decisão secreta; como se fosse pouco, ela também atua como comentarista regular de um programa televisivo, falando sobre... como se manter zen em meio às atribulações cotidianas. Ou seja, quem foi ao banheiro ou foi comprar pipocas no "Viernes", que esteja de volta para o "Sábado", que vale por dois dias!

g. "Domingo" (episódio: 'La Fuente') é do diretor francês Laurent Cantet, de "Entre os Muros da Escola". Podia ser no Brasil, tranquilamente: doña Marta sonha com a Virgem, que lhe revela que é preciso fazer uma fonte, para aí instalar seu altar, para então realizar uma grande festa em sua homenagem. Mas, sendo Cuba tão igual ao Brasil, a Virgem (católica) é uma dublê da Oxum (africana): grandes mães de duas matrizes tão distintas de pensamento, em sobreposição tranquila e sem problemas.  Aqui, o corte no cotidiano cubano já não é no nível familiar, mas na pequena comunidade de um prédio, envolvida no mutirão para atendimento do pedido dessa mãe de todas as mães.

Vários personagens entrecruzam as narrativas, o que parece ainda mais interessante para indicar que as estórias de uns não excluem as de outros. Bem, se eu escrevi tanto é porque recomendo muito. Não gosto de espiar o que vai acontecer antes da sessão de cinema, e só consulto os sites dos filmes depois; mas isso é critério de
 cada um.

Luiz Fabio Antonioli é arquiteto, formado pela FAU-MACK e mestre em Projeto, Espaço e Cultura,
pela FAU-USP. Atualmente, pesquisa a produção de espaços urbanos para exposição de arte (ECA-USP)
e, paralelamente, a produção de arte em espaços urbanos (FAU-USP), sempre na perspectiva de
abordagens transdiciplinares para a investigação do fenômeno arquitetônico.

sábado, 17 de novembro de 2012

Macabéa: uma promessa de ser

de Silvia Helena Facó Amoedo
filme A Hora da Estrela - roteiro adaptado do romance homônimo de Clarice Lispector
 Macabéa: uma promessa de ser
Só no ato do amor - pela límpida abstração de estrela
do que se sente - capta-se a incógnita do instante...
Clarice Lispector

Freud afirma que “os escritores criativos são aliados muito valiosos, pois eles costumam conhecer toda uma vasta gama de coisas entre o céu e a terra com as quais a nossa vã filosofia ainda não nos deixou sonhar”. Clarice Lispector concebe a obra de arte como uma loucura diferente, um ato de loucura o qual germina como não-loucura e abre caminho.·.
A hora da estrela é um livro feito sem palavras, como diz o narrador da história. É uma fotografia muda, um silêncio; enfim, é uma pergunta, que me conduziu, a partir da história da protagonista, Macabéa, história de uma inocência pisada, de uma miséria anônima, a formular algumas observações sobre a constituição do sujeito em referência àquilo que o causa, o objeto a, objeto causa do desejo. O objeto a foi introduzido por Lacan para designar o objeto desejado pelo sujeito, não é um objeto do mundo. Não é representável como tal: ele é inarticulável na palavra,
é uma letra fora da fora da cadeia significante. No entanto pode ser identificado como falta-a-ser, ou sob a forma de fragmentos
perdidos do próprio corpo - o seio, as fezes, a voz e o olhar.
Clarice Lispector descreve o inexpressivo que sempre foi a sua busca cega e secreta, e nos conta como entrou naquilo que existe entre o número um e o número dois, como viu a linha de mistério e fogo, que é linha sub-reptícia. Diz ela: Entre duas notas de música, existe uma nota, entre dois fatos, existe um fato, entre dois grãos de areia, por mais juntos que estejam, existe um intervalo de espaço.
         O sujeito, segundo Lacan, constitui-se no campo do Outro e só é representado num intervalo de espaço, por um significante para outro significante, pois “o significante se produzindo no campo do Outro faz surgir o sujeito de sua significação. Mas, ele só funciona como significante reduzindo o sujeito em instâncias, a não ser mais que um significante, petrificando-o pelo mesmo movimento com que o chama a funcionar, a falar, como sujeito”. Assim como uma fotografia muda, o sujeito exilado de sua subjetividade “ex-siste”, ou seja, quando aparece como sentido em um lugar, em outro desaparece, e o objeto a é causa da divisão do sujeito, é o que resta de irredutível nesta operação de separação entre dois: o Outro e o sujeito. É uma perda do próprio corpo, antes mesmo de existir. Por isso o sujeito não sabe qual objeto a ele é para o Outro e se pergunta, como condição absoluta de existência: “O que quer o Outro de mim?”- pergunta para qual não há resposta, restando apenas o silêncio de ser.

Caminharei, para falar do sujeito, com a protagonista Macabéa, seus encontros e desencontros com José Olímpico de Jesus, passando por Glória - a conexão da personagem com o mundo – e, finalmente, chegando ao último encontro, com a cartomante, quando Macabéa é atropelada pela promessa de ser.
Sobre a vida pregressa dessa moça, conta-se que nascera de maus antecedentes, fruto de um cruzamento de o quê com o quê, de uma idéia vaga, e que já não sabia mais ter tido pai e mãe. Tinha esquecido os seus nomes e o gosto de tê-los. Desamparada no mundo, nada sabia do seu não saber, da sua história, do seu lugar. Quando criança perdera o apetite, conservando, como sua única paixão, a descoberta do sabor de goiabada com queijo, interditados, muitas vezes, como castigo, pela tia, encarrega de sua educação após a morte de seus pais.
Para além da satisfação da necessidade, o que o sujeito demanda é o amor. E dar amor, segundo Lacan “é não dar nada que se tenha, pois é justamente por não se ter que se trata de amor”. No mais-além da demanda - demanda incondicional de amor -, encontra-se o desejo, com sua excentricidade em relação à satisfação. Em última instância, “aquilo com que o desejo confina [...], em sua forma pura e simples, é a dor de existir”.

Sem saber o porquê, Macabéa foi morar no Rio de Janeiro, ocasião em que conheceu José Olímpico de Jesus e, sem saber que sabia, soube o que era desejo: fome - mas não de comida -, o não-sei-o-quê. “O desejo, seja ele qual for, em estado de desejo puro, é algo que, arrancado do terreno das necessidades, ganha uma forma de condição absoluta em relação ao Outro. Ele é a margem, o resultado da subtração, por assim dizer, da exigência da necessidade em relação à demanda”.

É na angústia da dor de existir que Macabéa atenua com aspirina a sua história feita pelo quase-nada que ultrapassa as palavras, por um sopro de vida quase ilimitado. Macabéa depara-se com a questão do ser: Quem sou eu? Interroga -se. E, hesitante a respeito do seu ser, diz: já que sou, o jeito é ser. Não sei bem o que sou, me acho um pouco... De quê? Quer dizer... não sei bem quem sou. Sou datilógrafa e virgem, e gosto de coca - cola. Enquanto sujeito, Macabéa é diferente de como se enuncia. É um efeito do significante, sem substância, só podendo ser representado assim, como eclipse de uma estrela binária, no apagamento instantâneo de uma estrela por outra.
Macabéa não sabe o que está dentro do seu nome; sabe apenas que o recebeu devido a uma promessa feita por sua mãe a Nossa Senhora da Boa Morte, para que ela alcançasse o seu fim, a vida. Conheceu, desde o nascimento, a morte, ainda que sob a forma de desconhecimento, o que a fez acreditar que ela seria diferente, que nunca morreria. Seu próprio nome aponta para um contraste, pois ela não se aproxima em nada da índole heróica dos lutadores macabeus. O nome da personagem, ao ser, algumas vezes, referido pelas sílabas iniciais – Maca –, mantém uma analogia com o fato de que Macabéa seria - quer no plano metafórico (pela doença, pobre, sem conhecimento) quer no plano efetivo, conforme se concretiza no final do texto - portadora da morte.
Com a promessa de morte inscrita em seu nome pelo desejo materno, a única coisa que lhe restava era garantir a sua vida inspirando e, ao mesmo tempo expirando a vida, sem se indagar o porquê, como se o mundo fosse fora dela e ela fora do mundo. Saber o porquê afastava Macabéa da vida, aproximando-a da morte.
Desse modo, dentro ou fora da vida, ela falava, sim, mas era extremamente muda: muitas vezes não perguntava com palavras, apenas com os olhos, porque sabia que não havia respostas, senão: é assim porque é assim, e assim vivia defendendo-se da morte com um viver de menos.
Gostava de ruídos, de anúncios comerciais, do tic-tac-tic-tac, dos sons das coisas, sons que a protegiam do determinismo que lhe imprimiam as palavras vindas do Outro, que interpelam o sujeito, fazendo-o dizer mais do que pretende.
A realidade inacessível de Macabéa era demais para ser (a)creditada, embora a moça acreditasse em tudo - o que existia e o que não existia. Macabéa não tinha: era simplesmente desprovida. E sua falta apontava para a falta de José Olímpico de Jesus, que, representando-se como vence(dor) tentava preencher a falta de Macabéa. Ele falava coisas grandes, mas ela só prestava atenção em coisas insignificantes como ela. Insignificâncias que constituíam o seu esplendor de estrela cadente.
Macabéa insistia com suas perguntas sem respostas, ou seja, demandava amor – “demanda daquilo que não é nada, nenhuma satisfação particular, demanda do que o sujeito introduz por pura e simples resposta à demanda". Ao endereçar a sua demanda a José Olímpico, a moça tornava-se alguém e, com suas questões sem respostas, punha-o no lugar de causa de seu desejo, equivocando-o em seu saber suposto. O que queria saber Macabéa com suas perguntas? O acesso ao desejo não é pela referência ao objeto, porque não há intersubjetividade. Ela buscava em José Olímpico o lugar de seu desejo na medida do que lhe faltava e ele não sabia. Ele, ao responder as perguntas de Macabéa com a falta, pois não sabia, apontava para ela o lugar do desejo e o seu enigma. José Olímpico de Jesus compara Macabéa com um cabelo na sopa, o qual tira a vontade de comer. Assim, sai da vida da moça sem desvelar o seu enigma, o seu sexo, a sua marca, a sua sensualidade lasciva, atrofiada - como os seus ovários -, nascida como um girassol num túmulo, enfim, a sua feminilidade.

Macabéa era feliz porque achava que a pessoa era obrigada a ser feliz. Vivia imaginariamente de si mesma. Na separação, deparou-se com a dor de existir, com a falta no/do Outro, reconhecendo que o Outro é barrado e que nunca vai poder preenchê-la. O Outro não é completo.
Glória, a mulher desejada por José Olímpico, despertava, com sua gordura, o ideal secreto de Macabéa: a formosura. Com a separação de José Olímpico de Jesus, Glória tornou-se a sua ligação com o mundo, e por intermédio dela, Macabéa foi buscar o seu destino nas cartas. Era a primeira vez em que vislumbraria um futuro.
Macabéa supõe que a cartomante tenha o saber sobre o seu desejo e a põe na posição de sujeito suposto saber, para responder a sua questão: quem sou eu? A cartomante ocupa o lugar do Outro e responde com promessas de completude à demanda de amor endereçada por Macabéa. O objeto causa do desejo do sujeito não pode ser articulado na palavra, mas, para além da cartomante, Macabéa capta a incógnita do instante e é atropelada pela promessa de ser.
Em resposta ao tudo, já não mais existe como sujeito do desejo, sujeito dividido por estrutura, porque tudo é um oco nada. Assim, desvela-se a sua falta-a-ser, e dessa forma, a verdade que existe anteriormente ao sujeito extingue-se no saber. No âmago do seu ser, Macabéa verbaliza a(s) última(s) palavra(s): eu sou, eu sou, eu sou.
Silvia Helena Facó Amoedo é Psicanalista. Membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano – Brasil / Fórum Natal. Mestre em Psicologia pela Universidade Federal do Ceará.

sexta-feira, 16 de novembro de 2012

O Olhar de Camila Sé

O olhar fotográfico de Camila Sé é,
para todos, universal, e para cada um, singular *
Parabéns Camila Sé !!!







Camila Sé é fotógrafa free-lancer e é colaboradora do melhor banco de imagens do Brasil, o SambaPhoto. Formada em jornalismo, estagiou com o renomado fotógrafo de natureza Araquém Alcântara. Especializou-se em fotografia de natureza e turismo. Tem suas fotos publicadas em revistas, guias, catálogos, etc. Reside na Austrália desde 2004 e possui um grande arquivo de fotos do Brasil, Austrália e diversos outros países.

*  pego de empréstimo  em Quinet, “Um olhar a mais”.


domingo, 4 de novembro de 2012

Não Amarás - de Krzysztof Kieslowski

de Leila Oliveira
Este filme faz parte do “O Decálogo", série de 10 episódios baseados em cada um dos dez mandamentos da Bíblia.
Um filme concebido para ser uma vingança de uma mulher mais velha, contra um adolescente voyeur, que lhe atazanava a vida, mas acabou sendo recebido como um grande filme sobre o amor, não só no Brasil onde venceu a Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, em 1998, como em todo mundo.
Kieslowski é mais conhecido do publico pela Trilogia das Cores: A Liberdade é Azul, A Igualdade é Branca e a Fraternidade é Vermelha.
Me chamou a atenção o nome original do filme: “Pequeno filme sobre o amor”, um titulo de filme com o nome “filme”.
Em português, “Não Amarás”. Duas palavras que também me chamaram a atenção: O tempo do verbo: 2ª pessoa do futuro e o seu corte: Não.
O que vem presentificar o sujeito além do verbo. O imperativo Não, da ordem do predestinado, do definido vai sendo observado em vários aspectos do filme.
Temos a mulher como foco principal. Ela é vigiada, observada com um olhar certeiro e certo de um rapaz de 19 anos, através de uma luneta emoldurada pelas janelas tanto de um lado quanto do outro.
Ela é ao mesmo tempo presença/ausência. Presença buscada com tempo e hora marcados através desta lente, guiada e controlada nas suas pequenas necessidades, na sua rotina e enganada com falsos bilhetes, avisos ou sinais que vem do outro sem que ela saiba. Todos esses aparelhos como a luneta, o relógio, o telefone, a janela, circunscreve em torno dela um campo de gozo decifrado pelo olhar de Tomek. que despertado pelo suposto excesso de gozo que ela usufrui (a cena de sexo com o namorado) desperta nele esse gozo escópico, para usufruir dele também.
Saber do gozo do outro. Lacan interroga: O que é o gozo? O gozo é aquilo que não serve pra nada, ele é apenas uma instancia negativa. O gozo do outro não é signo do amor.
O que Tomek pode saber do gozo de Magda? E Magda do gozo de Tomek? Não é possível saber, mesmo assim é preciso que o sujeito tente construir sinais em torno disso;
O signo é um efeito daquilo que se supõe, enquanto tal, de um funcionamento do significante. Este efeito é o sujeito. Signo não é portanto signo de alguma coisa, mas de um efeito. pag.68, mais ainda.
Mas os aparelhos de Tomek operam e insistem em um constrangimento constante e crescente, cada vez mais, aproximar da mulher, e ela se vê de repente desalojada de sua alienação ao cotidiano onde não havia lugar para o amor. Mas o amor se impõe com todos os seus aparatos e ela não pode recusá-lo. Ela se vê apreendida pelo outro em seu desejo, esse outro que sabe muito bem de sua vida, de sua solidão, de sua falta (cena do choro diante do leite derramado) e aí ela começa a responder tentando apreendê-lo com seu saber. Até então, mulher da vida, mulher imagem, mulher de nome ou nome de mulher? Pois seu nome anterior era “BLMM”, bunda linda mexe muito”, até ser nomeada como Magda.
A mulher mais velha, a mãe do amigo de Tomek, parece comandar o destino dele, ou melhor, do homem. Mostra o Miss Polônia na Tv, lhe dá permissão para levar alguma garota em casa, fala da namorada árabe do filho e etc. Mas tudo isso em um duplo sentido pois teme que ele a abandone em sua solidão. Ela tenta barra-lo na paixão que sente com relação á aquela estranha mulher, impedindo, dificultando seu acesso ás informações sobre o fato ocorrido, sobre o hospital, até mentindo sobre o telefone, que diz que lá não tinha telefone.
Curiosas são suas palavras a Tomek, quando pergunta porque as pessoas choram. Ela responde: Choram porque não aguentam mais... a vida. De que vida ela fala? Uma vida de renuncias que precisa ser suportada no exilio, na solidão, na vida que não arrisca á contingência do amor? É preciso arriscar ás contingencias do amor para que ele subsista como necessário: aí então, o amor se impõe no caminho do sujeito desejante. Lacan diz isso.
Apesar de todos os aparatos que Tomek usa, ele quer chegar mais perto, ver sem aparelhos, sentir de perto aquela mulher, rompendo a moldura. Passa a entregar o leite como uma possibilidade de estar frente a frente com esta mulher.. Ele não recusa, não recua, sustenta sua investida, mesmo correndo o risco de perda total.
E neste momento do encontro onde é forçado a dizer o seu nome, não sabe explicitá-lo. Ele só quer amar, mais ...ainda.
Amar e ser amado? Tomek se posiciona frente ao desejo e arrisca ao convite do sorvete e mais outro convite de ir á sua casa. Ele conta como a espiona, e as estratégias para vê-la de perto, ou seja toda a aparelhagem do seu amor: Lacan diz: “Não é do defrontamento com esse impasse, que é posto á prova o amor?” pag.197
Ela tenta ensinar-lhe na posição de dona da verdade e diz: “Pois então aí está tudo o que representa o amor” Frente a isso ele não suporta a vida, se esgota em sangue corta os pulsos.
O gozo vence o sujeito, é preciso instaurar de novo o “Não”, atuado pela tentativa de suicídio, e pelas interceptações da velha mulher: Não, não, não.
Ao final há uma troca de posições : Tomek agora é que vive nas fantasias de Magda, ocupando o lugar dele, toma distancia de seu drama e se coloca no lugar do outro na tentativa de saber sobre a verdade do amor. Marcado pelo não, pela fantasia, o amor testemunha a verdade do sujeito.
Belo Horizonte, 27/10/2012
Leila Oliveira é Psicanalista
Trailer do filme 

quinta-feira, 1 de novembro de 2012

Declaração Universal dos Avessos Humanos

de Isloany Machado

Considerando que o desprezo e o desrespeito pelos avessos humanos resultam em atos bárbaros que ultrajam a inconsciência da humanidade,
Considerando fundamental que os avessos humanos sejam protegidos pela liberdade de fala, para que o homem não seja compelido, como último recurso, à rebelião contra a tirania e a opressão racional,
Considerando essencial promover o desenvolvimento de relações amistosas entre as instâncias psíquicas,
Considerando que uma compreensão comum desses avessos é da mais alta importância para o pleno cumprimento desse compromisso,

A teoria psicanalítica proclama:
A presente Declaração Universal dos Avessos Humanos como o ideal a ser atingido por todos que forem povos desejantes, com o objetivo de que cada sujeito, tendo sempre em mente esta Declaração, se esforce, através do desejo de saber, por promover o respeito a esses avessos.
Artigo 1º
Todas as pessoas nascem desamparadas. Não são dotadas de razão e consciência a priori, pois ambas são construções sociais, e deveriam agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade, depois de sofrerem as consequências da civilização recalcadora.
Artigo 2º
Toda pessoa pode gozar dos avessos, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, alíngua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição.
Artigo 3º
Toda pessoa tem direito ao avesso, à pulsão de vida/morte e à insegurança pessoal.
Artigo 4º
Nenhuma palavra será mantida em escravidão ou servidão; a escravidão das palavras será proibida em todas as suas formas. Deve-se falar o que vier à cabeça, sem censura.
Artigo 5º
Ninguém será submetido à tortura do sintoma, nem ao tratamento ou castigo cruel do gozo.
Artigo 6º
Toda pessoa tem o direito de ter avessos, em todos os lugares, reconhecida como sujeito perante a lei do pai.
Artigo 7º
Todos são desiguais perante a lei paterna e não têm direito, sem qualquer distinção, de bulir com a mãe da horda primeva.
Artigo 8º
Toda pessoa tem direito a procurar remédio, nem sempre efetivo, para seus sintomas ou atos próprios ou alheios que violem os avessos fundamentais que lhe sejam reconhecidos por esta Declaração.
Artigo 9º
Ninguém deveria ser calado pelo recalque, detido ou exilado de si, mas todos são. Ninguém é dono de sua própria morada.
Artigo 10º
Toda pessoa tem direito a uma audiência imparcial por parte de seu analista, o que não válido para o julgamento feito pelo superego, para decidir sobre seus avessos ou do fundamento de qualquer autoacusação.
Artigo 11º
§1. Toda pessoa acusada de um ato delituoso, delirante ou não, tem o direito de ser presumida culpada até que a sua inocência tenha sido construída de acordo com as elaborações em análise, em julgamento privado.
Artigo 12º
Ninguém será sujeito a interferências na sua vida privada, nem mesmo pelo analista.

Artigo13º
§1. Toda pessoa tem direito à liberdade de locomoção, ainda que sofra de conversão histérica.
§2. Toda pessoa tem o direito de deixar qualquer lembrança para trás, mas nada garante que possa a estas regressar.
Artigo 14º
§1. Toda pessoa, vítima de perseguição alucinatória, tem o direito ser ouvido.
Artigo 15º
§1. Toda pessoa tem direito a uma irracionalidade.
§2. Ninguém será arbitrariamente privado de sua desrazão, nem do direito de mudar de opinião.
Artigo 16º
 Os homens e mulheres de maior idade, sem qualquer restrição de raça, nacionalidade ou religião, têm o direito de entrar em análise. Gozam de iguais avessos, pois o sujeito do inconsciente não envelhece.
§1. A análise não será válida senão com desejo dos analisantes.
§2. A família é o núcleo social e fundamental da neurose.
Artigo 17º
§1. Toda pessoa tem direito a sonhar, só em sociedade com o infantil.
§2. Ninguém será arbitrariamente privado de sonhar.
Artigo 18º
Toda pessoa tem direito à liberdade de associação e inconsciência; estes direitos incluem a liberdade falar sem selecionar o que vier à cabeça.
Artigo 19º
Toda pessoa tem direito à liberdade de opinião; este direito inclui a liberdade de, sem interferência, procurar, receber e transmitir informações sobre psicanálise.
Artigo 20º
§1. Ninguém pode ser obrigado a fazer associação livre, é preciso desejar.
Artigo 21º
§1. Toda pessoa tem o direito de tentar tomar parte no governo de seu sintoma, diretamente (se conseguir) ou por intermédio de um analista livremente escolhido.
§2. O desejo inconsciente será a base do processo analítico; este desejo será expresso em atos falhos, chistes, sonhos, sintomas, transferência, etc..
Artigo 22º
Toda pessoa, como membro da sociedade, tem avesso e, portanto, sabe do mal-estar inerente a ela.
Artigo 23º
§1. Toda pessoa tem direito ao desejo, à livre escolha de analista, a condições justas de valor de sessão, condições de trabalho analítico e à busca por proteção contra o desamparo e à angústia, o que não é garantido pelo analista.
§2. Toda pessoa tem direito a organizar e desorganizar seu discurso como bem entender.
Artigo 24º
Toda pessoa tem direito a repouso, inclusive a limitação razoável das horas de trabalho analítico e a férias periódicas.
Artigo 25º
§2. A maternidade e a infância também são construções sociais e históricas. Todas as crianças, nascidas dentro ou fora de matrimônio, podem ser desejadas ou não, mas nascem num ninho de significantes que marcarão sua história.
Artigo 26º
§1. Toda pessoa tem direito ao saber.
§2. O saber depende do desejo e será orientado no sentido do respeito pelos avessos humanos.  A instrução nem sempre, ou quase nunca, promoverá a compreensão, a tolerância entre e grupos em prol da manutenção da paz.
Artigo 27º
§1. Toda pessoa deveria participar da vida cultural, de fruir as artes, da música, da literatura, etc.
 §2. Toda pessoa tem direito à proteção dos interesses morais e materiais decorrentes de qualquer produção científica, literária, artística ou sintomática da qual seja autor.
Artigo 28º
 Toda pessoa tem direito a uma ordem social e a uma desordem individual, em que os avessos e liberdades de associação estabelecidos na presente Declaração possam ser minimamente realizados.
Artigo 29º
§1. Toda pessoa tem deveres para com seus sintomas.
§2. No exercício de seus avessos, toda pessoa estará sujeita às limitações determinadas pela lei paterna, com o fim de assegurar o devido reconhecimento do Outro.
§3. Esses avessos não podem, em hipótese alguma, ser exercidos contrariamente aos propósitos e princípios de cada sujeito.
Artigo 30º
Nenhuma disposição da presente Declaração pode ser interpretada de maneira selvagem.
Campo Grande, 10 de outubro de 2012. 
Mais palavras costuradas de Isloany Machado no seu blog

Isloany Machado é Psicanalista, Psicóloga, membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano-MS. Especialista em Direitos Humanos pela UFGD e em Avessos Humanos pelo Ágora Instituto Lacaniano. Mestranda em Psicologia pela UFMS. Despensadora da ciência e costuradora de palavras por opção.