Foi
com o auxilio desta
poesia de Arnaldo Antunes que escolhi o caminho para iniciar uma
leitura possível, entre várias, para este filme que é o que não
pode ser que é... Mas, o que não pode ser? Não pode ser
“blockbuster” californiano por ser parisiense... Não pode ser
francês por ser hollywoodiano demais... Mas, não é? E foi com
uma pré-ideia, apoiada em meus pré-conceitos estereotipadores - um
filme francês (intelectual) com cara e jeito de Hollywood (tolinho)
- que me preparei para o cinema.
Uma
pré-impressão que ficou mais fortalecida pelo cartaz do filme que
vi, na entrada do cinema, dizendo tratar-se
deuma
história real inspirada no livro
de Philippe Pozzo di Borgo, O
Segundo Suspiro.
Uma história sobre a relação entre um aristocrata
branco parisiense, rico, culto, refinado, tetraplégico e um negro de
gueto periférico, pobre, marginal, inculto, rude, atlético oriundo
das colônias francesas africanas. Um
filme sobre caricaturas, pensei. Porém, logo em seguida, me dei
conta que ainda não o havia assistido e, portanto, sobre ele nada
sabia, da mesma maneira como lidamos nas nossas clínicas em relação
aos pacientes: podemos ser doutos, porém ignorantes.
É
o que não pode ser, é o que pode ser?
E
no filme assistimos várias situações semelhantes a essa, dentre
elas o nascimento e crescimento de uma amizade improvável. Uma
amizade entre dois opostos, dois estrangeiros que compartilham muitas
coisas, cada qual a sua maneira, como o fato de, talvez o mais
evidente, serem marcados pelas aparências. Aparências estas que os
posicionam, no contexto social, na periferia do mundo dos ditos
“normais”. Um é rico, mas paralítico. Outro é esperto, mas
negro. Ambos aleijados da completude exigida pelo padrão normativo
superficial midiático da contemporaneidade, que se impõe de forma
imperativa. Puro ilusionismo, pois o que é completo? E é por essa
via que vou tentar expor o meu pensamento sobre o que considero ser
um dos mais fortes laço social: a amizade.
Ser
o que é / é o que não pode? Uma amizade entre Driss e Philippe,
simplesmente pelo fato dos dois serem tão diferentes e de mundos tão
distintos, não pode ocorrer numa sociedade regida por padrões tão,
no mínimo, preconceituosos... preconceitos que hoje, na
contemporaneidade, estão encobertos pelo manto da hipocrisia do
politicamente correto. Pois é ...também pode.
um
parênteses
Isso
me faz lembrar um comentário que li por aí sobre preconceitos, que
diz algo próximo disso: “é mais fácil, depois de Einstein,
quebrar um átomo ao meio que um preconceito”.
Bem,
a história entre os dois tem início quando Driss se candidata à vaga
de cuidador de Philippe. Durante o processo de seleção, a seguinte
pergunta é colocada: “Qual é o teu principal estímulo para
querer ocupar a vaga?”
E
aí assistimos um curioso repertório de respostas, desde as mais
diretas: “é o dinheiro”, passando pelas dissimuladas: “gosto
do bairro” e também pelas benevolentemente perfeitas: “humanidade,
faço tudo por humanidade” e “para ajudar a autonomia dos
deficientes”. Ah... tem ainda as, no mínimo, esquisitas e ou
suspeitas: “amo os deficientes desde criança”. E nem vou
mencionar os discursos, que acompanhavam as respostas, feitos de
palavras belas desfiladas pelas bocas dos selecionáveis.
Philippe,
que assistia as entrevistas furiosamente
calmo insatisfeito, demonstrava toda sua empolgação com um peculiar
olhar de peixe morto. Parecia saber que somente lindas
palavras não modificam nada, não fazem atos. E assim, o cansativo
desfile dos pretendentes a vaga progredia em sua ordenação até ser
abruptamente interrompido por Driss, que não suportou seguir o
roteiro. Este entra em cena cortando a ordenação e apresenta um
papel, batendo na mesa da secretária dizendo: “Eu vim para ter o
documento (é um documento que comprova que está procurando emprego
para ter acesso ao seguro social) assinado", querendo
evidenciar, assim eu li a cena, que não se sentiu estimulado e ou
seduzido pela oferta de emprego e nem movido por uma falsa compaixão.
Um primeiro ato?
um
outro parênteses aqui
De
acordo com Quinet, em seu livro Psicose e Laço Social, o ato
“é, segundo Lacan, um dizer que funda um fato”, sendo esse dizer
não propriamente da ordem da fala.
E
diferente das outras entrevistas, esta não-entrevista de emprego
parece ter produzido um fato.
Ainda
sobre este encontro primeiro, ambos travam um curto embate sobre quem
sabe mais sobre música (ou seria sobre quem tinha o pipi maior?).
Bem, fica combinado que Driss retornaria no outro dia para buscar o
documento devidamente assinado.
Assim
o filme segue e no intervalo de tempo entre o primeiro encontro e o
segundo nos é mostrado como Driss, mesmo não estando tetraplégico,
também se encontra muito limitado em seus movimentos na vida, sem
lugar no seu mundo familiar, sem lugar na cadeia de significantes dos
nomes próprios - sim, Driss não é seu verdadeiro nome – e com um
cardápio reduzido nas formas de gozo mais, diria, inteligentes do
que a de passar a noite se drogando. Enfim, privado de “quase”
tudo. Privado até de desejar? O Philippe também?
mais
parênteses
Quinet
nos lembra que “o mal-estar da civilização é o mal-estar dos
laços sociais” chamados também por Lacan de “discursos tecidos
e estruturados pela linguagem” e estes, os discursos, sendo as
quatro formas das pessoas se relacionarem entre si - governar
(discurso do mestre/senhor), educar (discurso universitário),
psicanalisar (discurso do analista) e fazer desejar (discurso
histérico) - e que também se expressam nos vínculos de amizade.
Ah...
o discurso do capitalista, caracterizado pela foraclusão da
castração, está fora desta relação, pois é um discurso que não
faz laço social, visto que o sujeito só se relaciona com os
objetos-mercadoria, comandado pelo significante mestre “capital”.
Voltando
ao filme, Driss,
na manhã seguinte, retorna a mansão e sem se deixar capturar
pelo que lhe é oferecido, encontra Philippe sendo cuidado pelos
outros. Este lhe diz onde está o documento assinado e dispara, como
um dardo, uma questão em direção ao Driss, talvez como tentativa
de afetá-lo a ponto de rever sua decisão: “Como é ser forçado a
depender dos outros para viver?” Driss acusa o golpe respondendo:
“Como?” Philippe, de bate-pronto, dispara o segundo dardo: “Não
se envergonha de viver do trabalho dos outros?”, desta vez mirando
a jugular de seu suposto oponente. Driss, movendo os ombros tipo “não
tô nem aí”, também responde com a mesma intenção: “Me sinto
legal, e você?” Com a resposta, quiçá esperada, Philippe, após
mostrar um leve sorriso maroto e amarelo, muda o tom e lança a
proposta de emprego como um grande desafio: “Aposto que você não
aguenta duas semanas”. Estratégia? Um segundo ato?
Bem,
a proposta com formato de desafio é aceita e o que assistimos, a
partir disso, é o crescente relacionamento entre Driss e Philippe
até chegar num forte laço social de amizade.
E
como eles conquistam esta, diria até então, improvável amizade e
cumplicidade?Amizade implica cumplicidade?
É
sabido, até por nossas próprias histórias, que o laço de amizade
é bem distinto dos outros laços sociais, principalmente do
familiar. Neste último não exercemos muito o privilégio da
escolha. Não escolhemos nossos parentes e muito menos o lugar que
iremos ocupar nessa cadeia parental, hierarquizada pela autoridade.
Uma vez filho de fulano e sobrinho do sicrano assim será para
sempre, mesmo que os abandonemos. Há na família, na maioria pelo
menos, a predominância dos discursos de dominação, como o do
mestre e do universitário, que, juntamente com o discurso do
capitalista, são os geradores do nosso mal-estar na civilização.
Família, célula mater da sociedade. Diferente do discurso histérico
(predominante na amizade) e do analista (único laço social que
trata o outro como sujeito), chamados de discursos do “avesso da
civilização”, de acordo com Quinet, pois estes “levam a pulsão
em consideração”.
Ah...
um pequeno aparte
Todo
laço social que trata o outro como um mestre é um discurso
histérico. Aqui, histeria não se refere à neurose histérica, mas
a uma forma de humana de se relacionar na qual um provoca no outro o
desejo e a criação de um saber, que é o ocorre na maioria das
relações entre amigos, pois há uma troca constante de lugares, há
uma alter-nância.
Então,
todo e qualquer tipo de discurso, como laço social, é um modo de
dispor o gozo com a linguagem, visto que para vivermos em sociedade e
relacionarmos com as outras pessoas implica uma renúncia pulsional.
Portanto, todo laço social é um “enquadramento” da pulsão,
resultando em uma perda -uns mais e uns menos- real de gozo.
Lembremos que o gozo pulsional é sempre parcial. E a família -
insisto em dizer que na sua maioria, porém não-toda - está na
categoria dos laços que exigem maiores renúncias. Vocês se lembram
da cena na qual um familiar de Philippe o recrimina por seu novo modo
de vida e ainda responsabiliza Driss por esta transformação?
Já
a amizade, nem tanto assim. Pois, a amizade está fora, no mínimo
mais distante, do alcance
do “pai como articulador central dos dispositivos de autoridade”.
Está “para além da família como lugar de asfixia do desejo”,
aproveitando-me das palavras de Christian Dunker, mas num outro
contexto.
E
no desenvolver da amizade entre os dois protagonistas, nos é
mostrado exatamente isto: Philippe e Driss, cada um a seu modo,
provocando no outro o aparecimento do desejo. É, também, um
vendo-se no outro como um estranho familiar, apesar das diferenças
gritantes. Seria o ilustre (des)conhecido da filosofia e literatura,
o velho Alter - Alter Ego, que atende pelo nome de Duplo na
psicanálise, se apresentando? Um outro de si mesmo fora de si? É
bem provável. Aliás, seria bem interessante se conseguíssemos ser
nosso melhor amigo ao invés de sermos nosso próprio lobo, caso fosse possível.
um
outro aparte
Para
esta questão do duplo, Geraldino Alves Ferreira Netto, em seu artigo
“O eu e as identificações em Lacan” invoca Fernando Pessoa
(muitos dizem que seu alterego era o seu heterônimo Alberto Caeiro)
que diz tudo em poucas palavras: "Eu
vejo-me e estou sem mim, conheço-me e não sou eu (...) Começo a
conhecer-me. Não existo".
Retornando
ao filme, ao assistirmos o amadurecimento da amizade entre Driss e
Philippe e a importância da identificação, da identificação de
significante, do traço unário - que é o traço distintivo que está
na base de toda identificação - na constituição do laço de
amizade, percebemos que nela, na amizade, também cabe algo do amor.
De um tipo de amor diferente daquele dos nossos primeiros laços com
o pai, com a mãe, até por se opor as altas exigências de renúncias
de gozo impostos pelo limite dado pela autoridade, pelo Nome-do-Pai
que também é o que estrutura os laços sociais.
E
na amizade, temos a sensação que o limite pulsional imposto pela
castração, pela Lei simbólica do pai imaginário é mais flexível
e a impressão de sermos domesticados pela civilização se apresenta
diminuída em sua força, nos propiciando pensar que podemos quase
tudo. É por isso que o filme se concentra tanto nas cenas de
extremos tensionamentos desta linha que separa o que pode e o que não
pode, beirando a transgressão da Lei. Beirando, mas não
ultrapassando. Flertam, como forma de gozo, estes pontos balizadores
do limite da lei como os postos fiscais alfandegários existentes nas
fronteiras dos países. Não é sem limites, mas testando os limites.
Não
é a toa que o filme começa com a cena da perseguição policial ao
carro conduzido por eles numa velocidade altíssima, acima da
permitida pelas leis de trânsito. Tipo pequenas transgressões
juvenis que os permitem sentir o ar da graça, ao mesmo tempo em que
vão se autorizando - com a mesma ousadia dos portadores de um
espírito jovial - a experienciar outras formas de gozo, visto que
este não se deixa reduzir ao sexo, pois não se permite aprisionar
ao significante fálico e que “não há limites para o gozo”, o
que não é o mesmo de dizer que “seu campo não seja estruturado”,
nas palavras de Quinet. Ele, o gozo, se encontra até no ato de coçar
as orelhas.
Bem,
continuando, Driss e Philippe - agora amigos, parceiros e cumplices -
vão se fortalecendo na (re)descoberta da força do desejo. Vão se
re-inventado e reduzindo, como na clínica, o Nome-do-Pai. E já
disseram que a arte de se re-inventar é a capacidade de se perder,
de não ter medo de assumir riscos. Isto me faz levantar uma questão:
Nós precisamos de, diria, uma certa dose de indeterminação? Sim,
podem apostar!
E
eles, os novos amigos, vão abrindo mão das certezas, trocando o
certo pela aposta no duvidoso, como na aposta de Philippe em se
encontrar com sua futura esposa, ainda sem saber que seria seu
marido. Claro que com a ajuda, tipo empurrão, do amigo Driss nesta
decisão. Temos a impressão de sermos mais fortes para tomarmos
decisões importantes, quando encontramos apoio num amigo, no outro
externo. E no outro interno?
Ah...
mais uma observação: num outro momento do filme, Driss se deixa
chamar e até atende por seu nome próprio, Abdel
Sellou, - o que não é pouca coisa - talvez, por já se não
reconhecer mais nele no sentido de outrora. Agora ele pode.
um
pequeno e último parênteses
Sabemos,
também, que a apropriação do nome próprio visa tamponar o buraco
da falta.
E
o filme caminha até seu final mostrando-nos, com esta história real
ficcional - a realidade é uma ficção - como o desejo é a lei. E
foi isso que eles redescobriram: que ainda eram seres desejantes.
"Desidero,
ergo sum" (eu
desejo, logo sou) – cogito freudiano, lembrando que o desejo sempre
aponta para algo que falta.
Por
fim, esta história -a do Philippe é a mais evidente- que se
mostrava determinada por uma tragédia, pelo trágico, ganha um novo
final que através de um ato se faz possível sentir o ar da graça.
E nisto, este filme se aproxima de uma experiência de análise e,
também, nas desconstruções das certezas apostando num novo
incerto.
Oscar
Wilde uma vez disse: “A certeza é fatal. O que me encanta é a
incerteza. A neblina torna as coisas maravilhosas”.
Sábio
Oscar Wilde !!!
Comentário
apresentado no Cine ILPC em 28 de junho de 2013, São Paulo.
A Retomada do Cinema Brasileiro : 2º capítulo da mini-série
deChristian
Ingo Lenz Dunker
Para o cinema da Retomada
a violência deixa de ter estatuto existencial-reinvindicativo. Ela
não é mais o campo de provas para a determinação do desequilíbrio
social, da distribuição inequitativa de renda ou de bens
simbólicos, mas surge como um brutalismo que teria como base em:
“(...) altas descargas de
adrenalina, reações por segundo criadas pela montagem (...) as
bases do prazer e da eficácia do filme norte-americano de ação
onde a violência e seus estímulos sensoriais são quase da ordem do
alucinatório, um gozo imperativo e soberano em ver, infligir e
sofrer a violência”1
A violência passa a correr o
risco permanente de estetização, por meio da qual ela é
transformada, portanto, em “teleshow”
da realidade, que pode ser consumido com extremo prazer, mostrando-se
randômica, destituída de sentido e chegando à pura
espetacularidade. Ivana
Bentes2
já apontou como tratava-se de criar uma ética e uma estética para
imagens de dor e revolta sem, contudo “estetizar” a dor, a
miséria e a violência. Já nos filmes clássicos dos anos 1960
criou-se uma estética
da crueza
e do sertão, trabalhada na montagem, no corte seco, no interior da
imagem e do quadro, na luz estourada, na fotografia contrastada, no
uso da câmera na mão, em todos os níveis da narrativa. Se a
estética cinemanovista tinha por objetivo evitar a folclorização
da miséria, a retomada precisa desligar a
violência de seu estatuto existencial-reinvindicativo, criando de
modo correlato, uma “cosmética da fome”. Uma alternativa é
fazer a violência adquirir a estrutura de muro, com sua negação
silenciosa de acesso, com sua limitação territorial, dando
materialidade a forma de lei em exceção permanente.
Ao contrário do cinema novo, na
Retomada a violência separa-se da determinação ética,
afastando-se também do ambiente social de onde ela nasce. Para fazer
isso, é preciso entender que o contexto passa a ter outra função
que não a de caracterizar personagens. “Ele tende a produzir um
efeito de distanciamento, que, quando expõe a ação, também a
critica e disseca”. É assim que a violência se banaliza como
cenário e surgem histórias que são entregues ao espectador de
forma naturalista, com materiais reais e baseados nas regras da
verossimilhança para a composição da imagem - o que pode
apresentar efeito pernicioso sobre a representação, pois é como se
cenas carregadas de “autenticidade pornográfica” e “violência
sensorial” ocorressem a todo instante, em toda esquina das cidades
brasileiras. Como se os habitantes de periferias e favelas fossem
naturalmente violentos e como se o olhar do espectador demandasse
violência, aliás, fato social notável a parti da ascensão, neste
período, dos programas televisivos “catárticos” em torno do
tema. Mas justamente se trataria de mostrar como nem toda catarse é
apenas vivência indireta de uma fantasia de vingança, que
incremente o medo e a dependência em vez de criar as verdadeiras
condições para uma catarse capaz de desintegrar as narrativas das
quais depende e re-nomear o mal-estar da qual emerge.
Por exemplo, em Terra em
Transe, de 1969, a cena do confronto entre policiais e camponeses
evolui para a violência simbólica. A câmera é inquieta, o
silêncio causa tensão; no enquadramento, a população está sempre
num plano mais baixo do que os integrantes do governo. Quando um
segundo trabalhador sai do meio da massa e pede licença para falar,
a tensão torna-se ainda maior; então, ele começa: “O povo sou
eu, que tenho sete filhos pra criar e não tenho onde morar”.
Esse trabalhador anônimo é subjugado pelos seguranças do
governador, passam-lhe uma corda no pescoço, um cano de revólver é
introduzido em sua boca. Rendido, ele se cala e é morto. Mas a cena
do assassinato não é mostrada. Fica o incômodo. Essa não-imagem
choca e revolta, ela trabalha em ausência. Não é uma violência
explícita, não é uma brutalidade espetacularizada, contudo, essa
morte não filmada incomoda profundamente pelo que revela de
invisibilidade. Em outras palavras, o que Terra em Transe faz
é posicionar-se frente ao golpe militar de 1964, discutindo a ilusão
da proximidade dos intelectuais em relação às classes populares,
por meio de uma invenção formal, que pretende violentar o olhar,
impedindo que ele se mantenha passivo diante da realidade política
do País. Ou seja, a câmera induz mal-estar, por meio de estratégias
de indeterminação do sentido tais como a subtração da imagem, a
repetição do tema, a deformação das condições de produção da
mensagem (como a trilha sonora tendencialmente incongruente).
Comparemos esta cena com
a cena de Cidade de Deus onde o traficante mais poderoso do
morro, Zé Pequeno, quer aplicar uma lição nas crianças da favela,
acuando um grupo delas em um dos becos da favela Cidade de Deus. Ele
escolhe o menor dos garotos – com cerca de quatro anos - e pergunta
se o menino quer receber um tiro no pé ou na mão. Chorando, a
criança estende a mão, mas Zé Pequeno atira no pé. A criança
grita e chora desesperada. Não satisfeito, Zé Pequeno oferece a
arma a outro garoto – com cerca de seis anos - e ordena-lhe que
escolha um dos amigos para matar. O menino titubeia; mas, apavorado,
aceita a arma, escolhe um amigo e atira.
Também em Central do
Brasil, podemos encontrar a cena do jovem que comete um pequeno
furto em uma barrada de um camelô da estação Central do Brasil
fugindo em disparada na direção dos trilhos, sendo perseguido às
carreiras por dois seguranças ferroviários. Ao alcançá-lo, um dos
homens é impiedoso, atira à queima-roupa na cabeça do rapaz,
matando-o na hora. Mas a cena é retratada com lentidão, enquanto a
testemunha preocupa-se em espantar os olhares transeuntes o assassino
age com apatia e desprezo.
Em Central do Brasil, o
curioso é que, quando a trama avança, os personagens Dora e Josué
vão deixando para trás o centro urbano sinistro e nefasto rumo ao
campo idealizado e conciliador. Para Dora essa trajetória marcará a
expurgação da maldade, pois ela possui índole má e cafajeste na
medida em que pratica a ação de levar Josué ao sertão, para o
encontro do pai. No trajeto Dora se transforma, como consequência
inexorável de uma seu ato inicial, contingente e improvável. Ela
vai adquirindo uma aura quase santa, de mulher redimida, ela se torna
alguém melhor quando ajuda o menino. O ponto alto dessa conversão é
o transe da personagem numa sala de milagres, já no sertão
brasileiro. Entre velas, santos e rezas, Dora desmaia, e, quando
acorda, está deitada no colo de Josué - mas agora pronta para uma
nova postura diante da vida. O acontecimento da religiosidade, porém,
não tem qualquer amarra mais aprofundada com a narrativa. Parece,
portanto, que estamos diante de uma alternativa polar em Central
do Brasil, pois a personagem tem duas opções: ser boa e
consciente ou má e trapaceira, levar se pela indiferença ou
afetar-se pela piedade. O filme não permite a contradição em Dora,
fora das escolhas morais. Outro dado importante é que, se em Central
do Brasil o sertanejo é apresentado como solidário e cordial,
nada é discutido sobre a situação de pobreza em que ele vive ou
sobre a miséria do sertão que ele habita.
Considerado um dos pais da
filosofia da linguagem Gotlob Frege3descreveu o funcionamento lógico das proposições ao modo de uma
função pluri-unívoca. O exemplo clássico é a expressão “estrela
da tarde” que denota o mesmo objeto que a “estrela da noite”,
que é também chamada de “Vesper” e que no limite aponta para um
único objeto: o planeta
marte (sem aspas).
Todas as nomeações variáveis compõe os diferentes sentidos (Sinn)
que conotam de modo convergente a mesma significação (Bedeutung).
A noção de sentido pode ser associada à universalidade composta
pelos elementos de um conjunto [para todo x - função de x] enquanto
a noção de significação ou referência pode ser associada com o
quantificador existencial [existe pelo menos um x - função de x].
Lacan4
utilizou o esquema de Frege para abordar um problema adicional. A
existência de funções particulares da língua que perturbam a
relação habitual entre sentido e significação, a saber, os nomes
próprios. O conceito de Nome-do-Pai desenvolvido para reinterpretar
a concepção freudiana de complexo de Édipo, em termos da operação
linguística da metáfora, está envolvido crucialmente na função
doa nomes próprios. A incidência da função dos nomes próprios
nos permite entender porque e sob quais circunstâncias uma rede de
narrativas sobre o sofrimento se articula em torno de um
significante, que não precisa ser um nome próprio, mas algumas
vezes o é, por exemplo, quando falamos em Mal de Parkinson ou
Síndrome de Bonnet. Ocorre que uma palavra corrente do léxico pode
ser usada como um nome próprio. A partir de então uma espécie de
compreensão imediata será realizada, determinando efeitos
vocativos, de articulação de demanda e indicativos, semelhantes ao
que encontramos na metáfora do nome do pai, só que aqui falamos em
metaforização do mal-estar, operação social, por meio da qual
nossas narrativas sobre o sofrimento de organizam de tal maneira a
nomear o mal-estar, que pode definição corresponde ao que não pode
ser nomeado, como a significação (Bedeutung)
em Frege.
Mas a função do nome próprio
não é importante apenas porque cria uma estrutura de ficção
convergente entre as diferentes narrativas do sofrimento, indexando
todas elas a um fragmento de verdade. Os nomes próprios seriam um
caso de intromistura da função da letra no interior das relações
entre língua e fala. O nome-do-pai possuiria, enquanto letra, esta
função de produzir uma unidade, ou um anelamento entre os registros
do real, simbólico e imaginário.
É por isso que ao mesmo tempo a
violência é de um lado um bloqueio ou suspensão das relações
simbólicas de reconhecimento, dos semblantes imaginários da
“cosmética da fome”, sem falar do núcleo real do antagonismo
social. O mal-estar que é nomeado por “a-violência” acaba
subsumindo e subordinando todas as outras formas de conflito: de
classe, de gênero, de aspirações ideacionais, e todas as formas de
violência: contra a mulher, contra a criança, contra o pobre. É
assim, pela pregnância de um mesmo traço, que adquire a função de
unir uma série e mantê-la sob uma mesma significação, que a
super-visibilidade de a-violência mantém opaca outras formas de
apresentação do conflito. Isso não quer dizer que “não há
violência” ou que ela esteja sendo super ou sub-estimada, mas que
ela toma parte em um dispositivo, em uma gramática gerativa e
interpretativa do sofrimento. De maneira inversa, todas as formas
particulares de violência, por exemplo, contra ou em nome da lei,
contra ou a favor de minorias, contra ou a favor da repressão ao
crime, contra ou a favor da ordem, contra ou a favor de resistências
políticas, contra ou a favor de demandas de transformação social,
são unificadas em torno do mal-estar, agora nomeado e indistinto
como “a violência”.
O problema da sutura sintomática
produzida pela nomeação do mal-estar é que ela só nos permite
engendrar uma relação de catarse integrativa com as narrativas do
sofrimento. Este é o caso da narrativa de vingança, ligada à
problemática da violação do pacto e da traição; ou da narrativa
do ressentimento, ligada ao tema da alienação do desejo, tão
penetrantemente exploradas pelo cinema brasileiro da retomada.
Neste sentido Central
do Brasil
de Walter Sales (1998) é um marco da desessencialização do caráter
nacional brasileiro. A história de um menino em busca de seu pai,
ajudado por uma mulher que detém os meios de produzir este encontro,
ou seja, uma mulher que sabe ler. Sua posição inicialmente
predatória, como proprietária deste bem cultural contextualmente
escasso (a leitura), inverte-se pela filiação que ela se dedica a
produzir. Como em outros filmes de Walter trata-se do percurso de
formação como viagem sobrepõe-se à importância do ponto de
partida ou ponto de chegada, como em Diários
de Motocicleta
(2004), Cão
sem Dono
(2007)
eLinha
de Passe(2008).
A viagem sem paradeiro é a própria metáfora fundamental do
sofrimento de indeterminação. O tema do encontro insólito,
circunscrito no tempo e na eventualidade no espaço recupera
sistematicamente a figura simbólica da criança ou do adolescente
como expressão do vir a ser. A viagem opõe-se quase naturalmente ao
condomínio. Ela é uma experiência de contato e não apenas de
separação. Sobre o protagonista pesam sistematicamente as
exigências e o trabalho requerido pela dinâmica do reconhecimento.
Os filmes de Walter Sales tem em comum este estado de suspensão e de
indeterminação da lei, necessário para a articulação do desejo.
Na mais pura tradição de reflexão sobre a liberdade negativa é a
utopia que se vê recorrentemente indicada. A pequena utopia daquele
que ao procurar se lugar acaba por encontrar o lugar de todos.
O outro lado
moebiano do novo cinema novo pode ser representado pelo trabalho de
Beto Brant. Aqui não se trata da viagem para fora do condomínio,
mas de sua implosão. Se Walter Sales é o cineasta do desejo Beto
Brand é câmera do gozo. A começar por Ação
entre Amigos,
também de 1998,
mas principalmente em O
Invasor
(2001)
encontramos a temática da irrupção do bizarro e do estranho dentro
revelando a insanidade do fechamento discursivo de uma experiência.
É uma cinema irônico, não só pelas narrativas baseadas em
personagens improváveis, mas pela possibilidade de estabelecer um
universo tão fechado que nos força a nos reconhecermos em sua
pequenês. A meta-narativa em curso aqui é a da guerra. O conflito
de todos contra todos, como metáfora do mercado. Aqui encontramos a
aparição, dentro de um lugar, a casa bem estabelecida de um rico
habitante da classe alta de São Paulo, de um personagem periférico,
o invasor. Se Walter Sales pensava na liberdade negativa da
exploração de fronteiras, Beto Brant investe na liberdade positiva
decorente da aparição insólita do obceno no interior do seguro,
tema que reaparece ainda em Crime
Delicado(2007).
No limite Beto Brant retrata uma hipérbole da auto-realização,
uma auto-realização que torna-se irônica por recusar sua inscrição
em dinâmicas de reconhecimento.
Entre a
violência como experiência de reconhecimento (Walter Salles) e a
violência como experiência de autorealização (Beto Brant) podemos
localizar a-violência como torção entre uma e outra. É o que
vemos no cinema de Fernando Meirelles. Lembremos de sua aparição
inicial em Domésticas
(2001) que antecede o sucesso de Cidade
de Deus
(2002). Menos do que um filme sobre a pobreza ou a violência, dois
signos maiores da cultura do risco, encontramos aqui uma estratégia
de elevação do particular ao universal. A reversão da forma
alia-se a uma inversão do conteúdo. Talvez seja por siso que nas
produções internacionalizadas, como O
Jardineiro Fiel
(2005) e Ensaio
Sobre a Cegueira
(2008), encontramos tanto o tema do insólito no interior do
conhecido, quanto o tema da viagem ao interior de si. Na adaptação
do romance de Saramago a lógica do condomínio aparece sintetizada.
Pessoas são tomadas de forma aleatória e indeterminada por uma
repentina cegueira. A cegueira, é claro, nos remete ao próprio
estado de devolução da miséria em seu aspecto segregatório. É o
objeto a que se revela aqui em seu aspecto de visão. A favela, a
miséria africana, a vida doméstica concernida pelas empregadas, os
prisioneiros cegos, estamos sempre em espaços fechados, lugares
murados, por muros visíveis ou invisíveis. Além disso, descreve-se
o processo mesmo de condominização, os cegos de nascença
explorando os cegos secundários, o empreendimento da própria
miséria como um negócio. Seja ele o negócio das armas, o negócio
das drogas, o negócio chamado cinema. Se Walter Sales faz o cinema
desejo e Beto Brant responde pela superfície do gozo, Fernando
Meireles trabalha na zona de passagem entre um e outro, ou seja, este
amálgama chamado amor. Não é o amor primário ligado à família,
nem o amor secundário, ligado ao reconhecimento, mas o amor capaz de
inscrever uma forma típica da ética no interior do objeto cultural:
a ética da amizade. É esta enunciação moral na errância deste
pequeno grupo de cegos comandados por uma mulher, que vê.
Podemos agora sintetizar o que
estas três tendências acusam em termos de da função pluri-univoca
de a-violência como nomeação do mal-estar:
Ausência de tematização
direta da violência de Estado ou de suas instituições [a
onipresença do fracasso do Estado].
A homogenização da violência
nas fronteiras público-privado a serviço da crítica e da
resistência [a vida íntima do revolucionário].
A crítica da violência
simbólica representada pelos ideais de ajustamento: monogamia,
heterosexualidade e da satisfação genital [falocentrismo,
logocentrismo].
Centralidade do cotidiano e da
violência sistêmica [o incesto, o tráfico].
A construção da oposição
entre estética da guerra e estética da viagem como narrativas de
referência [a valorização da metáfora e da alegoria].
A recuperação do universal [a
criança], do encontro inesperado [o amor], do ato indiscernível [o
herói imprevisível], do fracasso produtivo [ficção], da
rememoração da história [documentário] como figuras espontâneas
do tratamento de a-violência, por meio do desmembramento das
narrativas que compõe, de modo pluri-unívoco a verdade ao real da
violência.
21999:
87- 3Frege, G. (1892) Sentido
e Referência. Perspectiva,
São Paulo, 1998.
4
Lacan, J. (1964-1965) O
Seminário Livro XII Problemas Cruciais da Psicanálise.
Centro de Estudos Freudianos.
O Invasor - completo
Christian Dunker é Psicanalista, Professor Livre Docente do Depto de Psicologia Clínica-IPUSP, Analista Membro de Escola da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano, Membro da Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental, Doutorado (IPUSP) e Pós-Doutorado pela Manchester Metropolitan University (UK). Autor de vários livros, entre eles o vencedor do Prêmio Jabuti 2012: “Estrutura e constituição da clínica psicanalítica: uma arqueologia das práticas de cura, psicoterapia e tratamento” (ed. Annablume, 2011)