domingo, 28 de julho de 2013

Manifestações

de Rodolfo Coelho


Sexta Feira de todas manifestações
mamãe eu quero pão
papai eu quero saúde
titio eu quero segurança
a rua está aberta
vinde todos manifestar
andai, andai, andai
gritai

Alô polícia eu quero ordem
na rua
Avenida Paulista, Praça da Sé
Páteo do Colégio, Anhangabaú
todos vigiai, o facebook

Palavras de ordem, gás mostarda
cães fila, guardas armados
a barricada, salva bandeira,
a passeata está nas ruas
reivindicando o quê?

o povo quer mudança,
o povo quer ou não quer?
mobilização, meu Deus
aonde deixei meus sais?

Rodolfo Coelho, poeta urbano, é autor de seis livros:
RuAugusta com Creme – O Lobo Mau da Rua Augusta  - Ignição – 
Táxi e Outros Poemas Inéditos – Salada Paulista - Poesia 100 Filtro

sábado, 20 de julho de 2013

Intocáveis, mas tocados pela palavra

de Henrique Senhorini

Que não é o que não pode ser que
Não é o que não pode
Ser que não é
O que não pode ser que não
É o que não
Pode ser
Que não
É ...
 Arnaldo Antunes

Foi com o auxilio desta poesia de Arnaldo Antunes que escolhi o caminho para iniciar uma leitura possível, entre várias, para este filme que é o que não pode ser que é... Mas, o que não pode ser? Não pode ser “blockbuster” californiano por ser parisiense... Não pode ser francês por ser hollywoodiano demais... Mas, não é? E foi com uma pré-ideia, apoiada em meus pré-conceitos estereotipadores - um filme francês (intelectual) com cara e jeito de Hollywood (tolinho) - que me preparei para o cinema.
       Uma pré-impressão que ficou mais fortalecida pelo cartaz do filme que vi, na entrada do cinema, dizendo tratar-se de uma história real inspirada no livro de Philippe Pozzo di Borgo, O Segundo Suspiro. Uma história sobre a relação entre um aristocrata branco parisiense, rico, culto, refinado, tetraplégico e um negro de gueto periférico, pobre, marginal, inculto, rude, atlético oriundo das colônias francesas africanas. Um filme sobre caricaturas, pensei. Porém, logo em seguida, me dei conta que ainda não o havia assistido e, portanto, sobre ele nada sabia, da mesma maneira como lidamos nas nossas clínicas em relação aos pacientes: podemos ser doutos, porém ignorantes.
É o que não pode ser, é o que pode ser?
       E no filme assistimos várias situações semelhantes a essa, dentre elas o nascimento e crescimento de uma amizade improvável. Uma amizade entre dois opostos, dois estrangeiros que compartilham muitas coisas, cada qual a sua maneira, como o fato de, talvez o mais evidente, serem marcados pelas aparências. Aparências estas que os posicionam, no contexto social, na periferia do mundo dos ditos “normais”. Um é rico, mas paralítico. Outro é esperto, mas negro. Ambos aleijados da completude exigida pelo padrão normativo superficial midiático da contemporaneidade, que se impõe de forma imperativa. Puro ilusionismo, pois o que é completo? E é por essa via que vou tentar expor o meu pensamento sobre o que considero ser um dos mais fortes laço social: a amizade.
       Ser o que é / é o que não pode? Uma amizade entre Driss e Philippe, simplesmente pelo fato dos dois serem tão diferentes e de mundos tão distintos, não pode ocorrer numa sociedade regida por padrões tão, no mínimo, preconceituosos... preconceitos que hoje, na contemporaneidade, estão encobertos pelo manto da hipocrisia do politicamente correto. Pois é  ...também pode.

um parênteses
Isso me faz lembrar um comentário que li por aí sobre preconceitos, que diz algo próximo disso: “é mais fácil, depois de Einstein, quebrar um átomo ao meio que um preconceito”.

       Bem, a história entre os dois tem início quando Driss se candidata à vaga de cuidador de Philippe.  Durante o processo de seleção, a seguinte pergunta é colocada: “Qual é o teu principal estímulo para querer ocupar a vaga?”
E aí assistimos um curioso repertório de respostas, desde as mais diretas: “é o dinheiro”, passando pelas dissimuladas: “gosto do bairro” e também pelas benevolentemente perfeitas: “humanidade, faço tudo por humanidade” e “para ajudar a autonomia dos deficientes”. Ah... tem ainda as, no mínimo, esquisitas e ou suspeitas: “amo os deficientes desde criança”. E nem vou mencionar os discursos, que acompanhavam as respostas, feitos de palavras belas desfiladas pelas bocas dos selecionáveis.
   Philippe, que assistia as entrevistas furiosamente calmo insatisfeito, demonstrava toda sua empolgação com um peculiar olhar de peixe morto. Parecia saber que somente lindas palavras não modificam nada, não fazem atos. E assim, o cansativo desfile dos pretendentes a vaga progredia em sua ordenação até ser abruptamente interrompido por Driss, que não suportou seguir o roteiro. Este entra em cena cortando a ordenação e apresenta um papel, batendo na mesa da secretária dizendo: “Eu vim para ter o documento (é um documento que comprova que está procurando emprego para ter acesso ao seguro social) assinado", querendo evidenciar, assim eu li a cena, que não se sentiu estimulado e ou seduzido pela oferta de emprego e nem movido por uma falsa compaixão. Um primeiro ato?

um outro parênteses aqui
De acordo com Quinet, em seu livro Psicose e Laço Social, o ato “é, segundo Lacan, um dizer que funda um fato”, sendo esse dizer não propriamente da ordem da fala.
E diferente das outras entrevistas, esta não-entrevista de emprego parece ter produzido um fato.

Ainda sobre este encontro primeiro, ambos travam um curto embate sobre quem sabe mais sobre música (ou seria sobre quem tinha o pipi maior?). Bem, fica combinado que Driss retornaria no outro dia para buscar o documento devidamente assinado.
       Assim o filme segue e no intervalo de tempo entre o primeiro encontro e o segundo nos é mostrado como Driss, mesmo não estando tetraplégico, também se encontra muito limitado em seus movimentos na vida, sem lugar no seu mundo familiar, sem lugar na cadeia de significantes dos nomes próprios - sim, Driss não é seu verdadeiro nome – e com um cardápio reduzido nas formas de gozo mais, diria, inteligentes do que a de passar a noite se drogando. Enfim, privado de “quase” tudo. Privado até de desejar? O Philippe também?

mais parênteses
Quinet nos lembra que “o mal-estar da civilização é o mal-estar dos laços sociais” chamados também por Lacan de “discursos tecidos e estruturados pela linguagem” e estes, os discursos, sendo as quatro formas das pessoas se relacionarem entre si - governar (discurso do mestre/senhor), educar (discurso universitário), psicanalisar (discurso do analista) e fazer desejar (discurso histérico) - e que também se expressam nos vínculos de amizade.
Ah... o discurso do capitalista, caracterizado pela foraclusão da castração, está fora desta relação, pois é um discurso que não faz laço social, visto que o sujeito só se relaciona com os objetos-mercadoria, comandado pelo significante mestre “capital”.

       Voltando ao filme, Driss, na manhã seguinte, retorna a mansão e sem se deixar capturar pelo que lhe é oferecido, encontra Philippe sendo cuidado pelos outros. Este lhe diz onde está o documento assinado e dispara, como um dardo, uma questão em direção ao Driss, talvez como tentativa de afetá-lo a ponto de rever sua decisão: “Como é ser forçado a depender dos outros para viver?” Driss acusa o golpe respondendo: “Como?” Philippe, de bate-pronto, dispara o segundo dardo: “Não se envergonha de viver do trabalho dos outros?”, desta vez mirando a jugular de seu suposto oponente. Driss, movendo os ombros tipo “não tô nem aí”, também responde com a mesma intenção: “Me sinto legal, e você?” Com a resposta, quiçá esperada, Philippe, após mostrar um leve sorriso maroto e amarelo, muda o tom e lança a proposta de emprego como um grande desafio: “Aposto que você não aguenta duas semanas”. Estratégia? Um segundo ato?
Bem, a proposta com formato de desafio é aceita e o que assistimos, a partir disso, é o crescente relacionamento entre Driss e Philippe até chegar num forte laço social de amizade.
       E como eles conquistam esta, diria até então, improvável amizade e cumplicidade? Amizade implica cumplicidade?
É sabido, até por nossas próprias histórias, que o laço de amizade é bem distinto dos outros laços sociais, principalmente do familiar. Neste último não exercemos muito o privilégio da escolha. Não escolhemos nossos parentes e muito menos o lugar que iremos ocupar nessa cadeia parental, hierarquizada pela autoridade. Uma vez filho de fulano e sobrinho do sicrano assim será para sempre, mesmo que os abandonemos. Há na família, na maioria pelo menos, a predominância dos discursos de dominação, como o do mestre e do universitário, que, juntamente com o discurso do capitalista, são os geradores do nosso mal-estar na civilização. Família, célula mater da sociedade. Diferente do discurso histérico (predominante na amizade) e do analista (único laço social que trata o outro como sujeito), chamados de discursos do “avesso da civilização”, de acordo com Quinet, pois estes “levam a pulsão em consideração”.

Ah... um pequeno aparte
Todo laço social que trata o outro como um mestre é um discurso histérico. Aqui, histeria não se refere à neurose histérica, mas a uma forma de humana de se relacionar na qual um provoca no outro o desejo e a criação de um saber, que é o ocorre na maioria das relações entre amigos, pois há uma troca constante de lugares, há uma alter-nância.

       Então, todo e qualquer tipo de discurso, como laço social, é um modo de dispor o gozo com a linguagem, visto que para vivermos em sociedade e relacionarmos com as outras pessoas implica uma renúncia pulsional. Portanto, todo laço social é um “enquadramento” da pulsão, resultando em uma perda -uns mais e uns menos- real de gozo. Lembremos que o gozo pulsional é sempre parcial. E a família - insisto em dizer que na sua maioria, porém não-toda - está na categoria dos laços que exigem maiores renúncias. Vocês se lembram da cena na qual um familiar de Philippe o recrimina por seu novo modo de vida e ainda responsabiliza Driss por esta transformação?
       Já a amizade, nem tanto assim. Pois, a amizade está fora, no mínimo mais distante, do alcance do “pai como articulador central dos dispositivos de autoridade”. Está “para além da família como lugar de asfixia do desejo”, aproveitando-me das palavras de Christian Dunker, mas num outro contexto.
E no desenvolver da amizade entre os dois protagonistas, nos é mostrado exatamente isto: Philippe e Driss, cada um a seu modo, provocando no outro o aparecimento do desejo. É, também, um vendo-se no outro como um estranho familiar, apesar das diferenças gritantes. Seria o ilustre (des)conhecido da filosofia e literatura, o velho Alter - Alter Ego, que atende pelo nome de Duplo na psicanálise, se apresentando? Um outro de si mesmo fora de si? É bem provável. Aliás, seria bem interessante se conseguíssemos ser nosso melhor amigo ao invés de sermos nosso próprio lobo, caso fosse possível.

um outro aparte
Para esta questão do duplo, Geraldino Alves Ferreira Netto, em seu artigo “O eu e as identificações em Lacan” invoca Fernando Pessoa (muitos dizem que seu alterego era o seu heterônimo Alberto Caeiro) que diz tudo em poucas palavras: "Eu vejo-me e estou sem mim, conheço-me e não sou eu (...) Começo a conhecer-me. Não existo".

       Retornando ao filme, ao assistirmos o amadurecimento da amizade entre Driss e Philippe e a importância da identificação, da identificação de significante, do traço unário - que é o traço distintivo que está na base de toda identificação - na constituição do laço de amizade, percebemos que nela, na amizade, também cabe algo do amor. De um tipo de amor diferente daquele dos nossos primeiros laços com o pai, com a mãe, até por se opor as altas exigências de renúncias de gozo impostos pelo limite dado pela autoridade, pelo Nome-do-Pai que também é o que estrutura os laços sociais.
       E na amizade, temos a sensação que o limite pulsional imposto pela castração, pela Lei simbólica do pai imaginário é mais flexível e a impressão de sermos domesticados pela civilização se apresenta diminuída em sua força, nos propiciando pensar que podemos quase tudo. É por isso que o filme se concentra tanto nas cenas de extremos tensionamentos desta linha que separa o que pode e o que não pode, beirando a transgressão da Lei. Beirando, mas não ultrapassando. Flertam, como forma de gozo, estes pontos balizadores do limite da lei como os postos fiscais alfandegários existentes nas fronteiras dos países. Não é sem limites, mas testando os limites.
       Não é a toa que o filme começa com a cena da perseguição policial ao carro conduzido por eles numa velocidade altíssima, acima da permitida pelas leis de trânsito. Tipo pequenas transgressões juvenis que os permitem sentir o ar da graça, ao mesmo tempo em que vão se autorizando - com a mesma ousadia dos portadores de um espírito jovial - a experienciar outras formas de gozo, visto que este não se deixa reduzir ao sexo, pois não se permite aprisionar ao significante fálico e que “não há limites para o gozo”, o que não é o mesmo de dizer que “seu campo não seja estruturado”, nas palavras de Quinet. Ele, o gozo, se encontra até no ato de coçar as orelhas.
       Bem, continuando, Driss e Philippe - agora amigos, parceiros e cumplices - vão se fortalecendo na (re)descoberta da força do desejo. Vão se re-inventado e reduzindo, como na clínica, o Nome-do-Pai. E já disseram que a arte de se re-inventar é a capacidade de se perder, de não ter medo de assumir riscos. Isto me faz levantar uma questão: Nós precisamos de, diria, uma certa dose de indeterminação? Sim, podem apostar!
E eles, os novos amigos, vão abrindo mão das certezas, trocando o certo pela aposta no duvidoso, como na aposta de Philippe em se encontrar com sua futura esposa, ainda sem saber que seria seu marido. Claro que com a ajuda, tipo empurrão, do amigo Driss nesta decisão. Temos a impressão de sermos mais fortes para tomarmos decisões importantes, quando encontramos apoio num amigo, no outro externo. E no outro interno?
Ah... mais uma observação: num outro momento do filme, Driss se deixa chamar e até atende por seu nome próprio, Abdel Sellou, - o que não é pouca coisa - talvez, por já se não reconhecer mais nele no sentido de outrora. Agora ele pode.

um pequeno e último parênteses
Sabemos, também, que a apropriação do nome próprio visa tamponar o buraco da falta.

       E o filme caminha até seu final mostrando-nos, com esta história real ficcional - a realidade é uma ficção - como o desejo é a lei. E foi isso que eles redescobriram: que ainda eram seres desejantes. "Desidero, ergo sum" (eu desejo, logo sou) – cogito freudiano, lembrando que o desejo sempre aponta para algo que falta.
       Por fim, esta história -a do Philippe é a mais evidente- que se mostrava determinada por uma tragédia, pelo trágico, ganha um novo final que através de um ato se faz possível sentir o ar da graça. E nisto, este filme se aproxima de uma experiência de análise e, também, nas desconstruções das certezas apostando num novo incerto.
       Oscar Wilde uma vez disse: “A certeza é fatal. O que me encanta é a incerteza. A neblina torna as coisas maravilhosas”.
Sábio Oscar Wilde !!!
Comentário apresentado no Cine ILPC em 28 de junho de 2013, São Paulo.
trailer oficial

quinta-feira, 11 de julho de 2013

A Violência como Nome Pluri-Unívoco do Mal-Estar

A Retomada do Cinema Brasileiro : 2º capítulo da mini-série  
de Christian Ingo Lenz Dunker

Para o cinema da Retomada a violência deixa de ter estatuto existencial-reinvindicativo. Ela não é mais o campo de provas para a determinação do desequilíbrio social, da distribuição inequitativa de renda ou de bens simbólicos, mas surge como um brutalismo que teria como base em:
(...) altas descargas de adrenalina, reações por segundo criadas pela montagem (...) as bases do prazer e da eficácia do filme norte-americano de ação onde a violência e seus estímulos sensoriais são quase da ordem do alucinatório, um gozo imperativo e soberano em ver, infligir e sofrer a violência”1
A violência passa a correr o risco permanente de estetização, por meio da qual ela é transformada, portanto, em “teleshow” da realidade, que pode ser consumido com extremo prazer, mostrando-se randômica, destituída de sentido e chegando à pura espetacularidade. Ivana Bentes2 já apontou como tratava-se de criar uma ética e uma estética para imagens de dor e revolta sem, contudo “estetizar” a dor, a miséria e a violência. Já nos filmes clássicos dos anos 1960 criou-se uma estética da crueza e do sertão, trabalhada na montagem, no corte seco, no interior da imagem e do quadro, na luz estourada, na fotografia contrastada, no uso da câmera na mão, em todos os níveis da narrativa. Se a estética cinemanovista tinha por objetivo evitar a folclorização da miséria, a retomada precisa desligar a violência de seu estatuto existencial-reinvindicativo, criando de modo correlato, uma “cosmética da fome”. Uma alternativa é fazer a violência adquirir a estrutura de muro, com sua negação silenciosa de acesso, com sua limitação territorial, dando materialidade a forma de lei em exceção permanente.
Ao contrário do cinema novo, na Retomada a violência separa-se da determinação ética, afastando-se também do ambiente social de onde ela nasce. Para fazer isso, é preciso entender que o contexto passa a ter outra função que não a de caracterizar personagens. “Ele tende a produzir um efeito de distanciamento, que, quando expõe a ação, também a critica e disseca”. É assim que a violência se banaliza como cenário e surgem histórias que são entregues ao espectador de forma naturalista, com materiais reais e baseados nas regras da verossimilhança para a composição da imagem - o que pode apresentar efeito pernicioso sobre a representação, pois é como se cenas carregadas de “autenticidade pornográfica” e “violência sensorial” ocorressem a todo instante, em toda esquina das cidades brasileiras. Como se os habitantes de periferias e favelas fossem naturalmente violentos e como se o olhar do espectador demandasse violência, aliás, fato social notável a parti da ascensão, neste período, dos programas televisivos “catárticos” em torno do tema. Mas justamente se trataria de mostrar como nem toda catarse é apenas vivência indireta de uma fantasia de vingança, que incremente o medo e a dependência em vez de criar as verdadeiras condições para uma catarse capaz de desintegrar as narrativas das quais depende e re-nomear o mal-estar da qual emerge.
Por exemplo, em Terra em Transe, de 1969, a cena do confronto entre policiais e camponeses evolui para a violência simbólica. A câmera é inquieta, o silêncio causa tensão; no enquadramento, a população está sempre num plano mais baixo do que os integrantes do governo. Quando um segundo trabalhador sai do meio da massa e pede licença para falar, a tensão torna-se ainda maior; então, ele começa: “O povo sou eu, que tenho sete filhos pra criar e não tenho onde morar”. Esse trabalhador anônimo é subjugado pelos seguranças do governador, passam-lhe uma corda no pescoço, um cano de revólver é introduzido em sua boca. Rendido, ele se cala e é morto. Mas a cena do assassinato não é mostrada. Fica o incômodo. Essa não-imagem choca e revolta, ela trabalha em ausência. Não é uma violência explícita, não é uma brutalidade espetacularizada, contudo, essa morte não filmada incomoda profundamente pelo que revela de invisibilidade. Em outras palavras, o que Terra em Transe faz é posicionar-se frente ao golpe militar de 1964, discutindo a ilusão da proximidade dos intelectuais em relação às classes populares, por meio de uma invenção formal, que pretende violentar o olhar, impedindo que ele se mantenha passivo diante da realidade política do País. Ou seja, a câmera induz mal-estar, por meio de estratégias de indeterminação do sentido tais como a subtração da imagem, a repetição do tema, a deformação das condições de produção da mensagem (como a trilha sonora tendencialmente incongruente).
Comparemos esta cena com a cena de Cidade de Deus onde o traficante mais poderoso do morro, Zé Pequeno, quer aplicar uma lição nas crianças da favela, acuando um grupo delas em um dos becos da favela Cidade de Deus. Ele escolhe o menor dos garotos – com cerca de quatro anos - e pergunta se o menino quer receber um tiro no pé ou na mão. Chorando, a criança estende a mão, mas Zé Pequeno atira no pé. A criança grita e chora desesperada. Não satisfeito, Zé Pequeno oferece a arma a outro garoto – com cerca de seis anos - e ordena-lhe que escolha um dos amigos para matar. O menino titubeia; mas, apavorado, aceita a arma, escolhe um amigo e atira.
Também em Central do Brasil, podemos encontrar a cena do jovem que comete um pequeno furto em uma barrada de um camelô da estação Central do Brasil fugindo em disparada na direção dos trilhos, sendo perseguido às carreiras por dois seguranças ferroviários. Ao alcançá-lo, um dos homens é impiedoso, atira à queima-roupa na cabeça do rapaz, matando-o na hora. Mas a cena é retratada com lentidão, enquanto a testemunha preocupa-se em espantar os olhares transeuntes o assassino age com apatia e desprezo.
Em Central do Brasil, o curioso é que, quando a trama avança, os personagens Dora e Josué vão deixando para trás o centro urbano sinistro e nefasto rumo ao campo idealizado e conciliador. Para Dora essa trajetória marcará a expurgação da maldade, pois ela possui índole má e cafajeste na medida em que pratica a ação de levar Josué ao sertão, para o encontro do pai. No trajeto Dora se transforma, como consequência inexorável de uma seu ato inicial, contingente e improvável. Ela vai adquirindo uma aura quase santa, de mulher redimida, ela se torna alguém melhor quando ajuda o menino. O ponto alto dessa conversão é o transe da personagem numa sala de milagres, já no sertão brasileiro. Entre velas, santos e rezas, Dora desmaia, e, quando acorda, está deitada no colo de Josué - mas agora pronta para uma nova postura diante da vida. O acontecimento da religiosidade, porém, não tem qualquer amarra mais aprofundada com a narrativa. Parece, portanto, que estamos diante de uma alternativa polar em Central do Brasil, pois a personagem tem duas opções: ser boa e consciente ou má e trapaceira, levar se pela indiferença ou afetar-se pela piedade. O filme não permite a contradição em Dora, fora das escolhas morais. Outro dado importante é que, se em Central do Brasil o sertanejo é apresentado como solidário e cordial, nada é discutido sobre a situação de pobreza em que ele vive ou sobre a miséria do sertão que ele habita.
Considerado um dos pais da filosofia da linguagem Gotlob Frege3 descreveu o funcionamento lógico das proposições ao modo de uma função pluri-unívoca. O exemplo clássico é a expressão “estrela da tarde” que denota o mesmo objeto que a “estrela da noite”, que é também chamada de “Vesper” e que no limite aponta para um único objeto: o planeta marte (sem aspas). Todas as nomeações variáveis compõe os diferentes sentidos (Sinn) que conotam de modo convergente a mesma significação (Bedeutung). A noção de sentido pode ser associada à universalidade composta pelos elementos de um conjunto [para todo x - função de x] enquanto a noção de significação ou referência pode ser associada com o quantificador existencial [existe pelo menos um x - função de x].
Lacan4 utilizou o esquema de Frege para abordar um problema adicional. A existência de funções particulares da língua que perturbam a relação habitual entre sentido e significação, a saber, os nomes próprios. O conceito de Nome-do-Pai desenvolvido para reinterpretar a concepção freudiana de complexo de Édipo, em termos da operação linguística da metáfora, está envolvido crucialmente na função doa nomes próprios. A incidência da função dos nomes próprios nos permite entender porque e sob quais circunstâncias uma rede de narrativas sobre o sofrimento se articula em torno de um significante, que não precisa ser um nome próprio, mas algumas vezes o é, por exemplo, quando falamos em Mal de Parkinson ou Síndrome de Bonnet. Ocorre que uma palavra corrente do léxico pode ser usada como um nome próprio. A partir de então uma espécie de compreensão imediata será realizada, determinando efeitos vocativos, de articulação de demanda e indicativos, semelhantes ao que encontramos na metáfora do nome do pai, só que aqui falamos em metaforização do mal-estar, operação social, por meio da qual nossas narrativas sobre o sofrimento de organizam de tal maneira a nomear o mal-estar, que pode definição corresponde ao que não pode ser nomeado, como a significação (Bedeutung) em Frege.
Mas a função do nome próprio não é importante apenas porque cria uma estrutura de ficção convergente entre as diferentes narrativas do sofrimento, indexando todas elas a um fragmento de verdade. Os nomes próprios seriam um caso de intromistura da função da letra no interior das relações entre língua e fala. O nome-do-pai possuiria, enquanto letra, esta função de produzir uma unidade, ou um anelamento entre os registros do real, simbólico e imaginário.
É por isso que ao mesmo tempo a violência é de um lado um bloqueio ou suspensão das relações simbólicas de reconhecimento, dos semblantes imaginários da “cosmética da fome”, sem falar do núcleo real do antagonismo social. O mal-estar que é nomeado por “a-violência” acaba subsumindo e subordinando todas as outras formas de conflito: de classe, de gênero, de aspirações ideacionais, e todas as formas de violência: contra a mulher, contra a criança, contra o pobre. É assim, pela pregnância de um mesmo traço, que adquire a função de unir uma série e mantê-la sob uma mesma significação, que a super-visibilidade de a-violência mantém opaca outras formas de apresentação do conflito. Isso não quer dizer que “não há violência” ou que ela esteja sendo super ou sub-estimada, mas que ela toma parte em um dispositivo, em uma gramática gerativa e interpretativa do sofrimento. De maneira inversa, todas as formas particulares de violência, por exemplo, contra ou em nome da lei, contra ou a favor de minorias, contra ou a favor da repressão ao crime, contra ou a favor da ordem, contra ou a favor de resistências políticas, contra ou a favor de demandas de transformação social, são unificadas em torno do mal-estar, agora nomeado e indistinto como “a violência”.
O problema da sutura sintomática produzida pela nomeação do mal-estar é que ela só nos permite engendrar uma relação de catarse integrativa com as narrativas do sofrimento. Este é o caso da narrativa de vingança, ligada à problemática da violação do pacto e da traição; ou da narrativa do ressentimento, ligada ao tema da alienação do desejo, tão penetrantemente exploradas pelo cinema brasileiro da retomada.
Neste sentido Central do Brasil de Walter Sales (1998) é um marco da desessencialização do caráter nacional brasileiro. A história de um menino em busca de seu pai, ajudado por uma mulher que detém os meios de produzir este encontro, ou seja, uma mulher que sabe ler. Sua posição inicialmente predatória, como proprietária deste bem cultural contextualmente escasso (a leitura), inverte-se pela filiação que ela se dedica a produzir. Como em outros filmes de Walter trata-se do percurso de formação como viagem sobrepõe-se à importância do ponto de partida ou ponto de chegada, como em Diários de Motocicleta (2004), Cão sem Dono (2007) e Linha de Passe (2008). A viagem sem paradeiro é a própria metáfora fundamental do sofrimento de indeterminação. O tema do encontro insólito, circunscrito no tempo e na eventualidade no espaço recupera sistematicamente a figura simbólica da criança ou do adolescente como expressão do vir a ser. A viagem opõe-se quase naturalmente ao condomínio. Ela é uma experiência de contato e não apenas de separação. Sobre o protagonista pesam sistematicamente as exigências e o trabalho requerido pela dinâmica do reconhecimento. Os filmes de Walter Sales tem em comum este estado de suspensão e de indeterminação da lei, necessário para a articulação do desejo. Na mais pura tradição de reflexão sobre a liberdade negativa é a utopia que se vê recorrentemente indicada. A pequena utopia daquele que ao procurar se lugar acaba por encontrar o lugar de todos.
O outro lado moebiano do novo cinema novo pode ser representado pelo trabalho de Beto Brant. Aqui não se trata da viagem para fora do condomínio, mas de sua implosão. Se Walter Sales é o cineasta do desejo Beto Brand é câmera do gozo. A começar por Ação entre Amigos, também de 1998, mas principalmente em O Invasor (2001) encontramos a temática da irrupção do bizarro e do estranho dentro revelando a insanidade do fechamento discursivo de uma experiência. É uma cinema irônico, não só pelas narrativas baseadas em personagens improváveis, mas pela possibilidade de estabelecer um universo tão fechado que nos força a nos reconhecermos em sua pequenês. A meta-narativa em curso aqui é a da guerra. O conflito de todos contra todos, como metáfora do mercado. Aqui encontramos a aparição, dentro de um lugar, a casa bem estabelecida de um rico habitante da classe alta de São Paulo, de um personagem periférico, o invasor. Se Walter Sales pensava na liberdade negativa da exploração de fronteiras, Beto Brant investe na liberdade positiva decorente da aparição insólita do obceno no interior do seguro, tema que reaparece ainda em Crime Delicado (2007). No limite Beto Brant retrata uma hipérbole da auto-realização, uma auto-realização que torna-se irônica por recusar sua inscrição em dinâmicas de reconhecimento.
Entre a violência como experiência de reconhecimento (Walter Salles) e a violência como experiência de autorealização (Beto Brant) podemos localizar a-violência como torção entre uma e outra. É o que vemos no cinema de Fernando Meirelles. Lembremos de sua aparição inicial em Domésticas (2001) que antecede o sucesso de Cidade de Deus (2002). Menos do que um filme sobre a pobreza ou a violência, dois signos maiores da cultura do risco, encontramos aqui uma estratégia de elevação do particular ao universal. A reversão da forma alia-se a uma inversão do conteúdo. Talvez seja por siso que nas produções internacionalizadas, como O Jardineiro Fiel (2005) e Ensaio Sobre a Cegueira (2008), encontramos tanto o tema do insólito no interior do conhecido, quanto o tema da viagem ao interior de si. Na adaptação do romance de Saramago a lógica do condomínio aparece sintetizada. Pessoas são tomadas de forma aleatória e indeterminada por uma repentina cegueira. A cegueira, é claro, nos remete ao próprio estado de devolução da miséria em seu aspecto segregatório. É o objeto a que se revela aqui em seu aspecto de visão. A favela, a miséria africana, a vida doméstica concernida pelas empregadas, os prisioneiros cegos, estamos sempre em espaços fechados, lugares murados, por muros visíveis ou invisíveis. Além disso, descreve-se o processo mesmo de condominização, os cegos de nascença explorando os cegos secundários, o empreendimento da própria miséria como um negócio. Seja ele o negócio das armas, o negócio das drogas, o negócio chamado cinema. Se Walter Sales faz o cinema desejo e Beto Brant responde pela superfície do gozo, Fernando Meireles trabalha na zona de passagem entre um e outro, ou seja, este amálgama chamado amor. Não é o amor primário ligado à família, nem o amor secundário, ligado ao reconhecimento, mas o amor capaz de inscrever uma forma típica da ética no interior do objeto cultural: a ética da amizade. É esta enunciação moral na errância deste pequeno grupo de cegos comandados por uma mulher, que vê.
Podemos agora sintetizar o que estas três tendências acusam em termos de da função pluri-univoca de a-violência como nomeação do mal-estar:
  1. Ausência de tematização direta da violência de Estado ou de suas instituições [a onipresença do fracasso do Estado].
  2. A homogenização da violência nas fronteiras público-privado a serviço da crítica e da resistência [a vida íntima do revolucionário].
  3. A crítica da violência simbólica representada pelos ideais de ajustamento: monogamia, heterosexualidade e da satisfação genital [falocentrismo, logocentrismo].
  4. Centralidade do cotidiano e da violência sistêmica [o incesto, o tráfico].
  5. A construção da oposição entre estética da guerra e estética da viagem como narrativas de referência [a valorização da metáfora e da alegoria].
  6. A recuperação do universal [a criança], do encontro inesperado [o amor], do ato indiscernível [o herói imprevisível], do fracasso produtivo [ficção], da rememoração da história [documentário] como figuras espontâneas do tratamento de a-violência, por meio do desmembramento das narrativas que compõe, de modo pluri-unívoco a verdade ao real da violência.
1 Bentes, Ivana (2002) “Cidade de Deus” promove Passeio no Inferno. O Estado de São Paulo http://www.consciencia.net/2003/08/09/ivana.html
2 1999: 87- 3 Frege, G. (1892) Sentido e Referência. Perspectiva, São Paulo, 1998.
4 Lacan, J. (1964-1965) O Seminário Livro XII Problemas Cruciais da Psicanálise. Centro de Estudos Freudianos.


O Invasor - completo

Christian Dunker é Psicanalista, Professor Livre Docente do Depto de Psicologia Clínica-IPUSP, Analista Membro de Escola da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano, Membro da Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental, Doutorado (IPUSP) e Pós-Doutorado pela Manchester Metropolitan University (UK). Autor de vários livros, entre eles o vencedor do Prêmio Jabuti 2012: “Estrutura e constituição da clínica psicanalítica: uma arqueologia das práticas de cura, psicoterapia e tratamento” (ed. Annablume, 2011)