domingo, 24 de março de 2013

Outro (a)roma: A história de Jean-Baptiste Grenouille

de Silvia Helena Facó Amoedo
A história de Jean-Baptiste Grenouille se passa na França do século XVIII. Nascido como dejeto, em meio à putrefação de um mercado de peixe em Paris, Jean-Baptiste é abandonado pela mãe e, para sobreviver ao desamparo, o seu faro necessitou ir além, produzindo um choro prenhe de vida para anunciar a sua chegada, entre moscas e vísceras de peixe. Despertadas pelo choro, as pessoas que estavam presentes na feira, o descobrem e o recolhem como um dejeto. Assim, ele marcou a sua entrada no mundo, sobrevivendo ao próprio nascimento. Em consequência do abandono, sua mãe é presa e condenada à morte, e Jean-Baptiste, “a coisa recém-nascida”, é entregue aos cuidados de uma ama-de-leite, sem despertar qualquer instinto materno. Em poucos dias, troca-se várias vezes de ama-de-leite: nenhuma delas suporta ficar com ele, por sua inquietante presença. Diziam que ele era faminto demais, que sugava tudo.
O caso de Jean-Baptiste foi levado, então, ao padre Terrier. O padre tentou aproximar-se da criatura sem criador, sem Outro. Por um momento, permitiu-se a fantasia de que era o pai de Jean-Baptiste, concedendo-lhe um lugar no mundo. Mas, a fantasia de “papai, filhinho e mamãe” se desmoronou tão logo o padre sentiu-se desnudado pelas narinas desavergonhadas de Jean-Baptiste.
O menino foi entregue, então, aos cuidados da Madame Gaillard, uma mulher indiferente à vida desde que perdera o olfato e toda a sensibilidade, em consequência de maus-tratos na infância. Encapsulado em si mesmo, Jean-Baptiste não se realizava entre os outros. Assim cresceu enxergando tudo com seu nariz, proferindo poucas palavras, sem estabelecer laços, criando e resguardando em si mesmo odores que não existiam. Jean-Baptiste tornou-se reduzido ao seu olfato, expirando e inspirando.

O olfato é um dos sentidos mais primitivos. Freud, na carta 75 a Fliess, de 14 de novembro de 18971, em busca de encontrar a fonte do recalcamento, retoma a hipótese levantada anteriormente, inferindo que o recalque podia ser substituído por alguma coisa essencial, alguma coisa orgânica que jazia por trás dele. Freud, nessa época, ligava o recalque às sensações do olfato que, em consequência da postura ereta do homem, foram modificadas e, por isso, esse sentido não pode mais produzir um efeito excitante, como nos animais. Nesse momento, o recalque, chamado originário, faz emergir a pulsão, diferenciando a sexualidade humana do instinto animal.
Jean-Baptiste cresceu levantando o nariz, não para “considerar-se especialmente nobre”, mas para intensificar e conhecer todos os cheiros do mundo. Como ser falante, ele já estava implicado em seu corpo por essa fala e, mesmo sem falar, não podia ser comparado à espécie animal; fazia parte do mundo simbólico. Esse corpo, que permite ao significante encarnar-se, é dado ao sujeito na experiência especular, um drama cujo impulso precipita-se da insuficiência para a antecipação; ou seja, a criança, com suas fantasias do corpo despedaçado, dada a prematuridade neurofisiológica, antecipa a apreensão do seu corpo a partir da imagem do outro. É o momento da constituição do eu, do reconhecimento de si mesmo. Esse momento faltou a Jean-Baptiste, pois sua mãe não respondeu ao seu apelo, impossibilitando a ilusão da totalidade de seu corpo no espelho e impedindo que ele buscasse no olhar do Outro a autenticação de sua própria imagem, permanecendo no tempo mítico do apelo. Como consequência, a função constituinte do olhar foi substituída pelo primitivo cheiro. Assim ele orientou o seu caminho sem precisar de luz para ver, olhando com o nariz, na busca instintiva do impossível de todos os aromas e odores.

O desejo para Jean-Baptiste se constituiu e se perdeu de forma absoluta, restando o gozo, um “real que não cessa de não se escrever”. “O lugar do real, que vai do trauma à fantasia – na medida em que a fantasia nunca é mais do que a tela que dissimula algo de absolutamente primeiro, de determinante na função da repetição – aí está o que precisamos demarcar.”2
Certa vez, ele perseguiu com o seu faro um cheiro que jamais sentira antes, porque precisava tê-lo para o sossego do seu coração. Pela primeira vez, sentiu-se aprisionado pelo aroma - palavra contém “amor” - e, irresistivelmente, foi conduzido lentamente até uma jovem, deparando-se com um aroma indescritivelmente precioso. Ele começou a aspirar todo o odor que a jovem exalava e, como resultado de seu sistema de realidade pouco desenvolvido, terminou por enforcá-la. Depois de a moça estar morta, ele sugou todo o cheiro dela. Experimentou a essência do cheiro da mulher num estado de êxtase para além do princípio do prazer, como se o gozo absoluto existisse. Ao procurar o perfume, ele encontrou a essência e experimentou, pela primeira vez, a felicidade, como se tivesse nascido pela primeira vez. Do nada, ele se deparou com o tudo e, sem a alternância da presença-ausência, própria do mundo simbólico, ele permaneceu preso às redes do imaginário, nas quais prevalece a alienação.
Nas suas caminhadas, Jean-Baptiste conheceu Giuseppe Baldini, perfumista experiente, com quem aprendeu, com muita proeza, que há um saber sobre o olfato e que é preciso encontrá-lo, aprendeu então a linguagem dos aromas e tudo mais sobre a arte do perfume. Giuseppe Baldini constatou que o aprendiz, com a velocidade ilimitada do seu olfato, era capaz de criar qualquer perfume, possibilitando ao mestre ascender à posição de maior perfumista da Europa. O mestre ensinou-lhe tudo, com a condição de que Jean-Baptiste partisse de Paris. E assim aconteceu.
Jean-Baptiste precisou ultrapassar as condições humanas para atingir os seus objetivos. Nessas passagens, as pessoas que se relacionaram com ele, funcionavam como suplência do que lhe faltava, e morriam logo após cumprirem essa função, de modo que, quando ele partia, não deixava e não levava nenhum vínculo. Seguia com o apagamento de sua história, que se dissipava como uma névoa.
Com o conhecimento adquirido, Jean-Baptiste partiu para Grasse, a cidade dos perfumes, e no caminho sentia o ar cada vez mais puro à medida que se distanciava dos seres humanos. Agora, o plano de chegar mais rápido ao destino foi relegado; ele queria apenas ir embora para longe das pessoas, em direção à maior solidão possível. Chegou ao ponto mais distante das pessoas e mais próximo de si mesmo, uma gruta na montanha onde nenhum ser vivo jamais estivera antes, um lugar sem cheiro. Sobrevivia em circunstâncias limites para obter a satisfação plena. Ficava imóvel no silêncio da escuridão invocando todos os cheiros conhecidos, entre eles “o cheiro de assassina de sua mãe”. Ele não sabia o que era assassina, mas sabia o que era o cheiro de assassina. 

Jean-Baptiste criou o seu reino encantado com fantasias construídas apenas de odores das coisas; “Ele, o Grande, o Único, o Maravilhoso”, o Pleno. Lacan3 diz que a fantasia é como um quadro que vem colocar-se no enquadramento de uma janela através da qual nós vemos e, como uma tela, nos protege da visão do mundo pela janela.

      Porém o mundo está lá e, assim, sete anos após, o real retorna ao mesmo lugar: “nenhuma luz, nem cheiro, nada de nada”; só a névoa, o seu próprio cheiro inapreensível, que se dissipa por toda parte, impossibilitando Jean-Baptiste, o homem capaz de cheirar qualquer ser humano, de cheirar a si mesmo. Para o trauma, não há significante; há uma direção - a repetição -, que insiste em retornar. O trauma é inassimilável para o sujeito, no entanto ele “não cessa de não se inscrever na repetição”, apontando para onde se acha o significante que o discurso oculta. Assim, Jean-Baptiste busca uma saída para o seu desamparo: abandona a sua mais completa solidão em busca de um saber sobre si mesmo.
        Para suprir a sua falta de cheiro, Jean-Baptista criou para si mesmo um perfume imitando o odor humano e passou a conviver com uma enorme “satisfação fria”, como um ser humano entre os outros seres humanos. Sabia que estava em seu poder criar um odor sobre-humano, de modo que quem o cheirasse o amaria até a loucura. Para isso, ele se dirigiu até Grasse com o propósito de obter os melhores aromas. Chegando lá, foi surpreendido pelo cheiro extraordinário de uma jovem, um odor que o remeteu a Paris, o mesmo da jovem que ele havia matado. E ele queria essa fragrância, não para sorver e perder, como da outra vez, mas para fazer dela o seu próprio odor. Ao ver a jovem, Jean-Baptista amou pela primeira vez, não como um ser humano, mas a sua fragrância. Precisava esperar um pouco mais para extrair da jovem a essência do seu cheiro; enquanto isso, aperfeiçoava-se e ampliava as suas habilidades, até que ela chegasse à flor da idade, tornando-se pronta para ser colhida.
Jean-Baptista perseguiu seu objetivo com obstinação, aperfeiçoando sua técnica com todas as regras da arte. Matou vinte e quatro jovens, as mais belas virgens, para extrair o aroma de suas almas. E para compor o perfume final, matou, após dois anos, a jovem que florescia, pois acabara de completar dezesseis anos. Era a filha única do vice-cônsul. Jean-Baptiste foi invadido por uma paz em seu coração, embora, para ele, a jovem só existisse como odor incorpóreo.

Jean-Baptiste foi acusado e condenado à morte pelas barbáries cometidas. De posse do perfume perfeito, passou algumas gotas da essência no seu corpo e seguiu para o encontro com a morte. A morte foi, mais uma vez, adiada, criando um novo significante. Dessa vez, além de sobreviver, ele foi reconhecido como filho pelo seu maior acusador, o pai da vigésima quinta mulher, a que lhe proporcionou escrever o “impossível”, a perfeição. As pessoas se entregaram ao seu extasiante perfume e, arrebatadas por ele, entraram numa comunhão de amor com o universal. Impregnado pelo perfume, nascido inodoro, no lugar mais fedorento do mundo, criado sem amor, ele tornou-se amado por todos. Esse foi o maior triunfo da sua vida e, ao mesmo tempo, o maior fracasso, pois ele mesmo não conseguia amar ninguém, por isso jamais encontraria satisfação no amor, não saberia jamais quem ele era, porque nunca fora olhado pela mãe.
Libertado, Jean-Baptiste retornou ao lugar onde nascera, e nada mudou: o mesmo lugar, as mesmas condições, e ele continuava só, como sempre esteve, e, mesmo sob o melhor perfume, sabia que só existia a sua total ausência de cheiro, que o impossibilitava de viver. Não restava mais nada, senão retornar às origens, para morrer. Assim, ele realizou seu último gesto, em silêncio, sem palavras que o nomeassem: despejou o frasco de perfume perfeito em seu corpo e se entregou à morte. Foi dessa forma que morreu, despertando nos presentes o verdadeiro sentido do olfato. As pessoas em volta perceberam a sua ausente presença, e instintivamente o consumiram: retiraram dele a sua energia vital, o perfume perfeito e sua insignificante vida. “O real é aqui o que retorna sempre ao mesmo lugar – a esse lugar onde o sujeito, na medida em que ele cogita [...] não o encontra.” .
E assim ele morreu como nasceu, excluído da cadeia significante, como uma coisa que nem cheira nem fede - sem perfume e sem ser.
Silvia Helena Facó Amoedo é Psicanalista. Membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano – Brasil / Fórum Natal. Mestre em Psicologia pela Universidade Federal do Ceará.

quarta-feira, 20 de março de 2013

Já findou o verão

de Rodolfo Coelho
Já findou o verão
nossos sonhos estão
indo com as águas de março
o que fazer, o que não ser
o que virá, promessas
desejos, desvãos
anotações de um diário feliz
subindo a rua o arroio
merecendo um viva!
Bem vista a manhã
saudades do nada
amanhecer contando vitórias
renascer a cada tensão do
dia-a-dia
alvorecer a aurora
entardecer de um novo dia
comemorar o sol nascer

Rodolfo Coelho, poeta urbano, é autor de seis livros:
RuAugusta com Creme – O Lobo Mau da Rua Augusta  - Ignição – 
Táxi e Outros Poemas Inéditos – Salada Paulista - Poesia 100 Filtro

domingo, 10 de março de 2013

A Vida e O Lacanismo Radical de David Gale

de Christian Ingo Lenz Dunker

O Paradoxo da Lei

No filme A Vida de David Gale (Alan Parker, 2003) encontramos retratada a trajetória de um professor de filosofia que milita ativamente contra a pena de morte no estado do Texas. Somos levados a crer que tal professor é vítima de uma conspiração que o incrimina pelo estupro e assassinato de sua principal colaboradora. A conspiração se alimenta do fato de que antes deste crime ele fora acusado de estupro por uma bela, mas indolente, aluna. Além disso, todos os fatos parecem estar contra ele: impressões digitais no saco plástico com o qual a vítima fora sufocada, falta de álibi, seu sêmen encontrado na vítima, etc.
Quatro dias antes de sua execução ele e seu advogado, notoriamente incompetente, convocam uma jornalista para que esta escute e testemunhe a história de David Gale.

Mas nas palavras dele: “Ela não está ali para descobrir quem é o culpado, mas para saber porque ele será executado.

Lentamente a narrativa contada do corredor da morte vai convencendo o espectador de que David Gale é inocente. Simultaneamente uma fita é entregue para a jornalista contendo as cenas finais da morte pela qual Gale foi condenado. Uma mulher com um saco plástico na cabeça, tendo sua boca e pescoço vedados por uma fita adesiva. Ela é algemada e nua no chão de sua cozinha se contorce em seus últimos momentos de vida enquanto uma câmara registra a cena. O detalhe mórbido e moral é que a chave de suas algemas é encontrada no seu próprio estômago indicando que “a liberdade encontra-se dentro dela mesma”. A chegada da fita, bem como a presença insidiosa de um homem misterioso que acompanha a investigação iniciada pela jornalista e seu ajudante reforça a certeza de que Gale é inocente. Além disso, o próprio dispositivo de execução fora abordado por Gale em um de seus livros, mas jamais utilizado como peça da acusação, tornando óbvio que o verdadeiro assassino é alguém próximo do filósofo.
Mas este é apenas um caso do que Zizek chamou de “falsa solução necessária”. Se a jornalista não acreditasse que Gale é inocente jamais seria levada a procurar a fita completa, a fita verdadeira, que poderia tirá-lo do corredor da morte demonstrando tratar-se de um equívoco judiciário. Este é o verdadeiro problema do filme: as relações entre a lei (em sua figura lógica do condomínio prisional) e a exceção (em sua figura lógica do inocente culpado e do culpado inocente).

Do ponto de vista da lei, nas coordenadas simbólicas fixadas pelo filme, encontramos a seguinte posição. No estado do Texas as execuções são comuns e baseadas nos tradicionais argumentos sobre redução de criminalidade e também no axioma bíblico: olho por olho, dente por dente. Uma lei como qualquer outra, exposta ao relativismo cultural que domina todas as formas jurídicas. Ocorre que todos os casos de prisioneiros que são libertos pouco antes da execução, pela demonstração de equívocos legais, apenas comprovam a eficácia do sistema. Quase mártires não contam. Como não se pode encontrar uma exceção a esta regra, que permitisse comprovar a execução de um inocente e por em dúvida a pena de morte baseada na falibilidade do processo jurídico, e na irreversibilidade da pena, os militantes contrários à pena de morte encontram-se imobilizados.
Note-se que todos os argumentos contra a pena de morte acabam mostrando-se externos a estas coordenadas simbólicas e, portanto inoperantes. O fato de que ela não reduz o índice de criminalidade, que ela é uma crueldade que fomenta o ódio e a vingança em nome do Estado, a espetacularização da cena de execução, seus usos políticos, etc. tudo isso não possui alcance algum, pois não afeta o estatuto da lei internamente, ou seja, segundo suas próprias coordenadas constitutivas. As exceções confirmam a regra, não a transformam. A regra afirmada é de que o estado pode legitimamente usar o assassinato para coibir o assassinato. A lei é este paradoxo ele mesmo: em nome da liberdade retirar a liberdade, em nome da paz o terror, em nome da regra a transgressão, em nome da saúde a doença, em nome da segurança ... a polícia.
Podemos chamar este paradoxo de paradoxo da lei do condomínio. Nada impedirá que em nome da execução, frio processo jurídico, anônimo e impessoal, o sujeito se engaje como instrumento desta lei e extraia, a partir disso, um gozo próprio. O gozo dos carcereiros, dos espectadores, dos manifestantes e porque não da própria vítima. Se a lei é pura nenhum ato dela decorrente o será, por antecipação. Aqui entra a razão cínica que comanda a defesa da pena de morte. Cínica, pois se apóia por uma lado na obscena contabilidade do gozo e por outro no fato de que os que a defendem, sabem, via de regra, de seu paradoxo, mas agem mesmo assim como se não soubessem. Como se este saber não contasse no real. O que o cinismo deixa de lado é o desejo que funda a lei. O cínico é no fundo um aspirante a síndico.

O Paradoxo da Ética
O início da narrativa de Gale mostra uma de suas aulas. Na lousa encontramos o grafo do desejo, desenvolvido por Lacan no seminário sobre as Formações do Inconsciente, além de algumas referências à conceitos lacanianos: o objeto a, o ego como inimigo, a teoria da fantasia e a causalidade psíquica. O professor interpela os alunos: Digam-me, qual é a sua fantasia? e responde retoricamente, fama, dinheiro, amor, bom sexo, etc. Em seguida vem o trecho decisivo para entender o filme:

“Entendem a idéia de Lacan ? As fantasias tem que ser irreais porque no momento, no segundo em que se consegue o que se quer ... não quer, não poder ser mais. Para poder continuar a existir o desejo tem que ter os objetos eternamente ausentes. Vocês não querem “algo”, vocês querem a fantasia de “algo”. O desejo apóia fantasias desvairadas.”

Neste momento entra na sala a jovem e belíssima estudante, Berlin, que imediatamente captura o olhar do professor. Demonstração em ato do tema discorrido e potencial alegoria significante (Berlin, Berlim, a queda do muro, etc). Um objeto que parece demais ser ele mesmo a realização da fantasia e desvario.

Foi esta a idéia de Pascal ao dizer que somos realmente felizes quando sonhamos acordados com a felicidade futura. Daí o ditado
“O melhor da festa é esperar por ela” ou “Cuidado com seus desejos”. Não pelo fato de conseguir o que quer, mas pelo fato de não querer mais depois de conseguir.”

Até aqui nenhuma novidade. Trata-se de uma versão possível do tema da falta como geratriz do desejo, sua disparidade diante da demanda e sua determinação temporal no nível do sujeito.

Então a lição de Lacan é: viver de desejos não traz a felicidade. O verdadeiro significado de ser humano é a luta para viver de idéias e ideais. E não medir a vida pelo que obtiveram em termos de desejos, mas pelos momentos de integridade, compaixão, racionalidade e até... auto-sacrifício. Porque no final a única forma de medir o significado de nossas vidas é valorizando a vida dos outros.”

Essa é uma leitura bastante irregular das teses de Lacan sobre a ética. Na verdade congrega versões distintas e talvez incompatíveis sobre o assunto. É claro que estamos lidando com um nível de generalização bastante amplo e próprio à apresentação de problemas filosóficos na linguagem do cinema, principalmente no cinema americano de massa. Mas é surpreendente como a passagem acima consegue reunir ilustrativamente três posições em debate entre os comentadores de Lacan.

Primeira posição. Viver de ideais e idéias nos conduz a uma posição comum aos que valorizam a primeira parte do ensino de Lacan que acaba convergindo para certa idealização do desejo. Neste caso a análise conduziria à subjetivação do desejo, à produção de um saber sobre sua gramática singular e conseqüentemente à expansão do universo da falta, conforme expressão do Seminário VII. A felicidade reside em suportar o desejo, em aceitar sua lei, libertando-se da obrigação de realizá-lo em objetos empíricos específicos. Factível, mas, convenhamos, pouco original.

Segunda posição. Medir a vida por momentos, sejam eles íntegros, de auto-sacrifício ou como queiramos defini-los, leva-nos a uma posição um pouco diferente. Introduz a forma temporal da felicidade. Não um estado regular e mais ou menos estável do sujeito em sua relação com o desejo, mas em momentos fecundos e decisivos onde a relação do sujeito com seu ato se precipita de forma singular ou original. Ainda vemos aqui a participação dos ideais, mas sua função é um pouco diferente da primeira asserção. Não se trata de orientadores perspectivos para a ação do desejo, mas de reguladores retrospectivos para o juízo sobre a existência. Podemos definir esta posição pelo que alguns autores, seguindo o seminário VII, chamam de ética do real. Uma ética baseada em atos disruptivos das coordenadas simbólicas do sujeito.

Terceira posição. A única forma de medir o significado da vida é valorizando a vida dos outros. Poder-se-ia inferir aqui uma ética da alteridade, uma ética onde o reconhecimento radical do Outro seria sua cúspide. O Outro como valor e princípio aproximaria e tenderia a tornar compatível as posições de Lacan, com as de Derrida e Levinas, por exemplo. É também uma forma de ética do simbólico, como o primeiro caso, mas agora não apenas baseada na finitude expressa pelo desejo, mas pela afirmação de certa relação radical ao Outro e também ao outro. Posição que se liga com a anterior pelo fato de qualquer ato só pode ser considerado em relação ao Outro, as coordenadas simbólicas do sujeito.
De fato o que se nota é que a noção de Outro, envolvida nos três casos em questão é um pouco diferente. No primeiro caso trata-se do Outro como lugar da linguagem e da lei, mas da lei e da linguagem concebidas como sistemas formais, abstratos e regulados por princípios heterônomos em relação ao sujeito. No segundo caso o Outro é entendido como coordenadas simbólicas históricas e precisas. É um Outro que se altera pela flutuação dos significantes que, a cada momento, precipitam a posição do sujeito. No terceiro caso temos um Outro cujo sentido mais próximo é mesmo o de humanidade, de semelhante ou próximo tomado não apenas como duplo egóico e narcísico mas como Outro encarnado. O que há de Outro em um outro.
Esta deriva de acepção da noção de Outro, e conseqüentemente da acepção de simbólico é de extremo interesse tanto para a clínica como para a psicanálise em extensão. A deriva semântica que envolve este conceito se explica pelo fato de que ele se encontra nos primórdios da teorização de Lacan e o acompanha até seus últimos momentos. Por exemplo, o Outro como lugar do código ou tesouro dos significantes é bem distinto do Outro como barrado ou inconsistente. Isso leva, por exemplo, a implicações distintas se consideramos o Outro-sistêmico, o Outro-histórico e o Outro-sexo em uma confrontação clínica ou a um projeto de crítica social.

Na mesma linha desta oscilação conceitual podemos ler o paradigma de Antígona como extremamente conservador, afinal ela morre em nome do ideal de manter seus irmãos inscritos na ordem simbólica, dentro das regras do funeral grego e de sua lógica sistêmica. De maneira inversa podemos entender a radicalidade de seu gesto como uma demonstração em ato da paradoxalidade da lei ateniense, o que levaria à sua transformação. Finalmente podemos ler o mesmo ato de Antígona como a preservação radical do outro como encarnação do Outro, valor pelo qual seu próprio gesto pode encontrar solução.

O Ato mais além do Condomínio
A investigação levada a cabo pela jornalista conduz de fato ao encontro de uma segunda fita, contendo uma surpresa. É a própria ativista e colaboradora de Gale quem se algema e prende o saco plástico na cabeça induzindo seu suicídio por asfixia. Portanto Gale é inocente e é possível provar sua inocência. Se na primeira cena a jornalista é a testemunha, Gale a vítima e o sujeito da caminhonete o culpado a descoberta da segunda fita produz uma reviravolta dialética. O sujeito da caminhonete passa de culpado a testemunha, Gale permanece como vítima, mas é a própria jornalista quem se vê agora culpada por não conseguir entregar a fita salvadora a tempo. Exatamente em acordo com a idéia de tempo lógico em Lacan temos o primeiro instante de ver – que Gale é inocente – seguido pelo tempo de compreender – que se tratava de um suicídio para provar a ineficácia do sistema judiciário.
Mas a última reviravolta dialética é de fato a conclusiva. Chega à jornalista, após a execução de Gale, uma terceira fita, que mostra agora as contorções do morrer (tempo de ver), a cena do suicídio (tempo de compreender) e a presença do próprio Gale na cena do suicídio, introduzindo suas digitais auto-incriminadoras, no saco plástico que servirá de prova contundente para sua condenação (momento de concluir). A verdade da verdade é que Gale precisou mentir sobre sua inocência para encontrar a verdade de sua culpa, ou seja, tornar-se a exceção que o sistema exigia para ver questionada internamente a lógica de sua lei.

No fundo tanto Gale como Constance, sua colaboradora, mostraram, em ato, como é possível “usar” o sistema para perpetrar “voluntariamente” a própria morte.
Mostraram em ato, como o sistema é um mero instrumento e não a encarnação de uma lei abstrata, impessoal e soberana em sua finalidade. E eles o fazem “usando” a lei ao modo fetichista.
De fato, a função da jornalista não era, como foi sempre dito, salvar Gale, nem encontrar o culpado, mas de testemunhar, para o filho do professor, para a comunidade histórica americana a integridade, racionalidade e auto-sacrifício do seu ato. Ela volta à sua posição inicial de testemunha, mas inteiramente transformada na relação com o saber que se trata de testemunhar, não mais anódina confissão de culpa ou apelo de inocência, mas radical reconhecimento do ato. Ato que corrompe as categorias, ou coordenadas simbólicas que o tornaram possível: nem vítima, nem culpado, apenas um ato decidido.
A jornalista, e o Outro por extensão, são e não são os mesmos depois do ato de Gale, aliás um ato real, que exprime o momento de verdade da questão da pena de morte, em acordo com a estrutura de ficção contida no filme. Ele mostra que a vida de cada um só pode ser medida pela dos outros, daí o título do filme “A Vida de David Gale”.

Aqui podemos traçar uma distinção a partir das posições de alguns dos personagens diante do ato de que se trata. O sujeito da caminhonete, assim como a jornalista, colaboram em posição de desejo decidido, que realiza e contém sua própria finitude ao ser desejo do desejo do Outro. Mesmo amando Constance, o caubói colabora com seu suicídio. Mesmo estando em apenas mais um trabalho a jornalista se engaja subjetivamente na busca da verdade, ela se compromete. Ética do desejo.
Os militantes, pró ou contra a pena de morte, o sistema judiciário e político, por sua vez estão às voltas com a ética alteridade. Distinguem-se pela qualificação do gozo que concerne a esta alteridade. Abstrata, anônima e sistêmica, no caso do político, concreta, humana e “com rosto” no caso dos militantes.
Mas é finalmente e apenas Gale que nos põe em contato com a ética do real, ele faz a função de objeto a para o sistema judiciário, mas também a função de sujeito para uma nova formação do Outro.
Artigo original publicado na Revista Leitura Flutuante – Volume 2

Christian Dunker é Psicanalista, Professor Livre Docente do Depto de Psicologia Clínica-IPUSP, Analista Membro de Escola da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano, Membro da Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental, Doutorado (IPUSP) e Pós-Doutorado pela Manchester Metropolitan University (UK). Autor de vários livros, entre eles o vencedor do Prêmio Jabuti 2012: “Estrutura e constituição da clínica psicanalítica: uma arqueologia das práticas de cura, psicoterapia e tratamento” (ed. Annablume, 2011)

domingo, 3 de março de 2013

Pina - em 3D : A inscrição da palavra no corpo

de Liz Guimarães Vasconcelos 

O eu é corporal !  Freud já dizia...
A psicanálise lacaniana se interessa pela divisão do sujeito. Não um sujeito dividido entre corpo e mente, entre psíquico e somático. A divisão que interessa é a divisão do sujeito que não sabe o que diz. A partir do momento do nascimento do sujeito, ou seja, quando ele deixa sua posição infan e passa para um lugar falante, nasce também sua divisão.
Ele é dividido pelo significante. Este marca seu corpo e seu lugar no mundo. Ele fala. Como habitará a linguagem se dará a posteriori. O que interessa é a passagem de um ser que ainda não fala para um sujeito faltante, falante.
O que importa nesta possibilidade é o espelho, o eu, o corpo, o outro e o Outro. Que necessita para falar? Para faltar? Porque o bebê não nasce falando, andando, pensando? Um corpo infan é um corpo concreto, ausente de representação, sem marcas, sem palavras. Um corpo desamparado pela insuficiência orgânica. Imaturo neurologicamente.
A questão que coloco é a seguinte: Que acontece que alguns infans não se jubilam diante de sua imagem quando o tempo cronológico já lhes permitiríam se reconhecer? É a falta do outro? Do Outro? É o corpo biológico que veio com “defeito”? É a relação com o outro?
Tampouco se trata de responder com sim ou com não. Talvez trata-se de refletir que o sujeito aprisionado em seu corpo, em seus significantes, regido pelo seu inconsciente, pode fazer algumas pequenas escolhas. Pode recusar o contato com o outro. Isso é uma forma de contato !
Onde está a dinâmica libidinal de um bebê que não se entretém com sua imagem? Sua carência é de libido! Quem pode dar o que ele não tem? Quem pode dar libido? É possível uma prótese libidinal?
O filme em 3D de Pina Bausch nos revela o que um outro pode dar e assim constituir um sujeito dançante!
Seu trabalho estonteante e magnífico nos ilumina! Esta mulher, dava, oferecia, ofertava palavras aos bailarinos. Estas marcavam seus passos, corpos, movimentos, suas vidas. Os corpos dos bailarinos pulsavam, transbordavam de energia sexual, ou seja, de dinamismo libidinal!
A transferência com Pina e sua oferta de palavras justas no momento certo, o corpo erotizado por essas palavras, tudo isso, contribuía para a explosão de talento de seu trabalho. Uma das bailarinas dizia: “Trabalhar com Pina era muito bom pois podíamos expressar todos os nossos sentimentos”; Outra dizia:
Não entendia porque ela nunca parava de trabalhar”; Outro apontava: “Ela nos perguntava sobre nossos desejos”.
Pina marcava os bailarinos e bailarinas com a força de sua presença que se faz mesmo após sua morte.
 Inspirada no texto do estádio do espelho de Lacan, causada por Pina Bausch escrevo este texto refletindo sobre a importância da inscrição da palavra no corpo. A constituição psíquica, a constituição do corpo envolve o amor, o que se pode dar ao outro. Podemos dar palavras justas ou não. Podemos desestabilizar o outro ou não.
Os bailarinos diziam que Pina desvendava suas almas com seu olhar atento e particularizado para cada um. Isso é função materna ! O mundo está tão carente disso !
Liz Guimarães Vasconcelos é psicanalista, professora, coreógrafa, dançarina, psicóloga. Criadora da DANÇA MIXX. Estuda a organicidade do movimento, a relação dança- som e a constituição da imagem corporal e suas relações com o psiquismo. Fundadora do blog http://dancamixx.blogspot.com.br/