domingo, 2 de abril de 2017

Carnage - Le Dieu du Carnage

de Graça Nunes

E a polidez é  (...)  “organização de defesa ante a sociedade; ... equivale a um disfarce que permitirá a cada qual preservar intatas sua sensibilidade e suas emoções... é um triunfo do espírito sobre a vida. Armado dessa máscara, o indivíduo consegue manter sua supremacia ante o social... a polidez implica uma presença contínua e soberana do indivíduo” Jorge Forbes

A civilização tem de utilizar esforços supremos a fim de estabelecer limites para os instintos agressivos do homem e manter suas manifestações sob controle por formações psíquicas reativas”, afirmava Freud (1930, p. 68). E caso essas restrições fossem abandonadas, não saberíamos prever o destino da humanidade.

Alan Cowan : ‘’Moralmente, você deve superar seus impulsos, mas há momentos em que não quer superá-los. Eu acredito no deus da carnificina. O deus do qual a lei não foi desafiada desde tempos imemoriais.”.

 “Carnage", um filme com ar de peça de teatro,  89 minutos  em uma única locação,  o interior do apartamento de New York de Michael & de Penélope Longstreet,  os pais de uma criança asmática Ethan, que foi  espancado com um bastão por seu colega de escola,  Zachary,  porque chamou Zach de ‘’um idiota’’.    Com a premissa de que “meu filho é melhor que o seu”,   os pais de Zachary,  o advogado Alan & a corretora da bolsa de valores Nancy Cowan, batem à porta do apartamento do vendedor  Michael & da ativista de Direitos Humanos Penélope.   
O encontro  pacífico entre eles,  para elaborar uma carta para prevenir fututras ações legais,  degenera abruptamente em um  jogo de insultos ao qual voltaremos mais tarde.  "Carnage" é uma crítica aguda sobre a artificialidade das relações que se esconde atrás da capa da etiqueta social. 
De início,  é perceptível que a responsabilização  das crianças a respeito do  ocorrido – um insultou e o outro revidou com violência causando a perda de um dente e talvez de um segundo dente – não está nos planos dos casais. O filme revela o quanto, numa época de multiplos modelos com o  Outro pulverizado,  a quebra de orientação pelo enfraquecimento  do ordenador vertical impactou na subjetividade, na formação de  um  novo tipo de  laço social e uma desorientação do sujeito quanto aos modos de satisfação.  Isso se faz sentir em todos os espaços sociais e reflete nas novas formas de expressão do sofrimento,  os chamados novos sintomas,  entre eles e pertinente à esta análise, a violência na escola. 
"Carnage" nos convida a especular um jogo de palavras camufladas  por um arsenal de máscaras  que aos poucos são perfuradas por sorrisos de perfídia,  insultos e elogios dolorosamente ambíguos,  manifestações claras da hostilidade entre os personagens.    Num gozo excessivo, obsceno e explícito, os quatro se entregam a um bate boca que pouco ou nada tem a ver com os fatos que motivaram a reunião sem responsabilidade e implicação em suas próprias palavras,  eludindo assim qualquer peso que as mesmas pudessem  ter.   
Durante todo o filme acompanharemos um diálogo rápido, inteligente e sarcástico, humor quick wit, uma batalha de sagacidade,  palavras que ferem ,  incisivas,  penetrantes,  palavras que são como  navalha na carne,  palavras que irrompem descontroladamente descortinando a verdade por trás da cena,  daí o nome de Carnage,  a carnificina de palavras,  evidenciada na descrição de Jacques Alain Miller :  

‘’Se não houvesse o gozo,  uma palavra equivaleria a outra, não haveria a palavra justa, a palavra que fere, elas teriam apenas a função de demonstrar, porém as palavras trespassam, comovem, perturbam,  inscrevem-se e são inesquecíveis pelo fato da função da fala não ser ligada apenas a estrutura da linguagem,  mas também a substância do gozo   ‘’.... as palavras tem uma carga que dizemos afetiva, 
que é libidinal, uma carga de gozo.‘’  Miller, J.A.

 Com uma veia irônica afiadíssima o diretor é hábil ao desvelar o quanto as nuances de classe, gosto e comportamento assumem enorme importância com a proximidade (o inferno são sempre os outros) e detalhes e dificuldades antes ignorados expõem fraquezas até então ocultas e à medida que a verdade aparece e perpassa qualquer tentativa de decoro social, o sangue frio se vai e os quatro continuam num embate fálico enquanto desintegram-se as máscaras e os laços entre os casais.  
Com as frentes de batalha traçadas sobre a mesa de centro (decorada com vasos de tulipas e livro de arte de Oskar Kokoschka), rapidamente percebemos que não haverá heróis nesta guerra.   Não a Penélope, passiva agressiva,  ou o Michael insensível, que alegremente admite ter jogado o hamster amado da sua filha para fora na rua "como se fosse um rato de esgoto".  E  certamente não a Nancy frágil,  ou Alan, um advogado  frio a quem o filme prodigaliza todas as melhores linhas.
A certo ponto o advogado Alan diz: "Moralmente, você deve superar seus impulsos, mas há momentos em que não quer superá-los. Eu acredito no deus da carnificina. O deus do qual a lei não foi desafiada desde tempos imemoriais.".
O que nos leva diretamente ao texto de Freud,   O Mal estar na Civilização:
  [...] a maneira pela qual os relacionamentos mútuos dos homens, seus relacionamentos sociais, são regulados - relacionamentos estes que afetam uma pessoa como próximo, como fonte de auxílio, como objeto sexual de outra pessoa, como membro de uma família e de um Estado.  Este seria para Freud o aspecto mais importante da civilização. 
Sendo que o maior impedimento para Freud seria :
[...] a agressão constitui no homem uma disposição original e auto-subsistente, tendo como representante a pulsão de morte.  
"Nós não somos todos  filhos da puta de pavio curto!", Penélope grita enquanto só vemos evidências do contrário .  A esta altura todos estão embriagados de whiskey.   Michael insidiosamente enfraquece  Penélope,  Penélope  ataca Michael,  Nancy tem um colapso nervoso, Penélope  chora e grita,  Nancy joga o celular de Alan dentro do vaso de tulipas,  Alan pega seu celular mergulhado em meio as tulipas de Penélope,  Nancy  destrói as tulipas .  A tensão em graus agonizantes  é muito para  Nancy, que  vomita copiosamente sobre a mesa de café,  sobre  o precioso livro de Oskar Kokoschka de Penélope.   É uma cena tão surpreendente que funciona como um ótimo quebra-gelo em meio a toda a angústia.
Em  parte  o filme versa sobre  “narcisismo das pequenas diferenças’’,  termo que Freud atribuiu aos membros de um grupo em que todos estão identificados ao UM do ideal do eu e que, por serem todos iguais perante esse mestre, tentam se distinguir uns dos outros salientando suas pequenas diferenças e lutando incessantemente por elas [...]  o narcisismo das pequenas diferenças aparece no grupo como defesa, pois cada um se atém à sua particularidade e diferenças imaginárias para não ser apanhado por essa identificação especular com o outro. “Para não ser outrificado, o sujeito se atém às suas mínimas diferenças, provocando as rivalidades imaginárias e a angústia vinculada à competição.”.  na precisa descrição de Antonio Quinet.
A violência na escola pode,  se ampliarmos o contexto do filme para a sociedade, ser vista como um sintoma no sentido psicanalítico (condensa verdade e gozo) e surge como manifestação do que não está bem na ordem da civilização.   Lacan indicou, particularmente em  Televisão,  que o gozo contemporâneo, indexado pela barra sobre o Outro,  já não se situa pela castração:  com a queda dos ideais, não é mais o significante mestre ou os semblantes ordenadores da civilização a regular o gozo.  Encontramos uma bela resposta sobre o que é a civilização em "O Outro que não existe e seus comitês de ética  "uma civilização é um sistema de distribuição do gozo a partir de semblantes, um modo de gozo, uma distribuição sistematizada dos meios e maneiras de gozar.’’ (Miller, J.A.)
O que pode uma mãe frente a atos violentos de seu filho na escola?  As palavras da psicanalista Claudia Riolfi são claras :   Quando uma criança separa a mamãe que dá colinho da mulher que preza sua honra e é capaz de dizer “isso não dá para mim”, capta a existência do que a psicanálise chama de “ponto de vergonha”, um lugar a partir do qual precisa parar se não quiser entrar no campo do intolerável.
O que pode uma análise quanto a criança envolvida em atos violentos?  A análise permitiria um deslocamento de criança sintoma para a criança que tem um sintoma através do percurso da desalienação em relação aos seus pais.  Quando a criança se aliena ao que é falado sobre ela, torna-se dependente do que imagina que é o que querem dela, isso ao preço de muito sofrimento psíquico.
Uma das saídas do impasse que originou o encontro e a discussão  seria  a aposta na  passagem de uma posição  irresponsável  e inconsequente  para a posição de decisão e implicação nos diferentes aspectos da vida,  da reinvenção dos laços familiares,  deixando para trás  a busca por um culpado, mostrando aos filhos que atos inconsequentes não existem.
A aposta  é no não sentido,  no limite do saber e da presença do incompleto.  A inserção na cultura é feita pela via do desejo e para se  construir laços satisfatórios  é necessária uma grande dose de renúncia na sua satisfação e narcisismo e , finalmente, parafraseando  Jorge Forbes:  o  estabelecimento de uma ética que ultrapasse as leis morais,  responsabilizando-se não só pelo que é compreensível, mas também pelo contingente e  pelo desconhecido,  através da análise estabelecer  uma ética para além das  leis morais,  "uma fantasia que sustente um semblante atrás do qual ela se satisfaça e satisfaça ao outro’’.

Direção de Roman Polanski  - 2011
Elenco : Kate Winslet (Nancy,  Judy Foster (Penélope) ,  Christofh Waltz  (Alan) e John C. Reilly (Michael)
Roteiro adaptado da peça da roteirista e escritora francesa Yasmina Reza , ‘’Le Dieu du Carnage".

Graça Nunes é Psicóloga, Psicanalista em formação contínua, analisanda. Participa semanalmente, sendo 2017 o sexto ano, de  aulas e sessões clinicas no IPLA sob direção de Jorge Forbes, Instituto da Psicanálise Lacaniana. Especialização de 2 anos em Terapia Familiar  Sistêmica no Intercef em Curitiba. Especialização em  Gestação, pós-parto e puerpério com Maria Tereza Maldonado.

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