de Graça Nunes
E a polidez é (...) “organização de defesa ante a sociedade; ...
equivale a um disfarce que permitirá a cada qual preservar intatas sua
sensibilidade e suas emoções... é um triunfo do espírito sobre a vida. Armado
dessa máscara, o indivíduo consegue manter sua supremacia ante o social... a
polidez implica uma presença contínua e soberana do indivíduo” Jorge Forbes
“A civilização tem de utilizar esforços
supremos a fim de estabelecer limites para os instintos agressivos do homem e
manter suas manifestações sob controle por formações psíquicas reativas”,
afirmava Freud (1930, p. 68). E caso essas restrições fossem abandonadas, não
saberíamos prever o destino da humanidade.
Alan
Cowan : ‘’Moralmente,
você deve superar seus impulsos, mas há momentos em que não quer superá-los. Eu
acredito no deus da carnificina. O deus do qual a lei não foi desafiada desde
tempos imemoriais.”.
“Carnage", um filme com ar de peça de
teatro, 89 minutos em uma única locação, o interior do apartamento de New York de
Michael & de Penélope Longstreet, os
pais de uma criança asmática Ethan, que foi espancado com um bastão por seu colega de
escola, Zachary, porque chamou Zach de ‘’um idiota’’. Com a
premissa de que “meu filho é melhor que o seu”,
os pais de Zachary, o advogado Alan & a corretora da bolsa de
valores Nancy Cowan, batem à porta do apartamento do vendedor Michael & da ativista de Direitos Humanos
Penélope.
O
encontro pacífico entre eles, para elaborar uma carta para prevenir fututras
ações legais, degenera abruptamente em
um jogo de insultos ao qual voltaremos
mais tarde. "Carnage" é uma
crítica aguda sobre a artificialidade das relações que se esconde atrás da capa
da etiqueta social.
De
início, é perceptível que a
responsabilização das crianças a
respeito do ocorrido – um insultou e o
outro revidou com violência causando a perda de um dente e talvez de um segundo
dente – não está nos planos dos casais. O filme revela o quanto, numa época de
multiplos modelos com o Outro
pulverizado, a quebra de orientação pelo
enfraquecimento do ordenador vertical
impactou na subjetividade, na formação de
um novo tipo de laço social e uma desorientação do sujeito
quanto aos modos de satisfação. Isso se
faz sentir em todos os espaços sociais e reflete nas novas formas de expressão
do sofrimento, os chamados novos
sintomas, entre eles e pertinente à esta
análise, a violência na escola.
"Carnage"
nos convida a especular um jogo de palavras camufladas por um arsenal de máscaras que aos poucos são perfuradas por sorrisos de
perfídia, insultos e elogios
dolorosamente ambíguos, manifestações
claras da hostilidade entre os personagens.
Num gozo excessivo, obsceno e explícito, os
quatro se entregam a um bate boca que pouco ou nada tem a ver com os fatos que
motivaram a reunião sem responsabilidade e implicação em suas próprias palavras, eludindo assim qualquer peso que as mesmas pudessem
ter.
Durante
todo o filme acompanharemos um diálogo rápido, inteligente e sarcástico, humor quick wit, uma batalha de sagacidade, palavras que ferem , incisivas,
penetrantes, palavras que são
como navalha na carne, palavras que irrompem descontroladamente
descortinando a verdade por trás da cena,
daí o nome de Carnage, a
carnificina de palavras, evidenciada na
descrição de Jacques Alain Miller :
‘’Se não
houvesse o gozo, uma palavra equivaleria
a outra, não haveria a palavra justa, a palavra que fere, elas teriam apenas a função
de demonstrar, porém as palavras trespassam, comovem, perturbam, inscrevem-se e são inesquecíveis pelo fato da
função da fala não ser ligada apenas a estrutura da linguagem, mas também a substância do gozo ‘’.... as palavras tem uma carga que dizemos
afetiva,
que é libidinal, uma carga de gozo.‘’ Miller, J.A.
Com uma veia irônica afiadíssima o diretor é
hábil ao desvelar o quanto as nuances
de classe, gosto e comportamento assumem enorme importância com a proximidade (o
inferno são sempre os outros) e detalhes e dificuldades antes ignorados expõem
fraquezas até então ocultas e à medida que a
verdade aparece e perpassa qualquer tentativa de decoro social, o sangue frio
se vai e os quatro continuam num
embate fálico enquanto desintegram-se as máscaras e os laços entre os casais.
Com as frentes de batalha traçadas sobre a mesa de centro
(decorada com vasos de tulipas e livro de arte de Oskar Kokoschka), rapidamente
percebemos que não haverá heróis nesta guerra.
Não a Penélope, passiva
agressiva, ou o Michael insensível, que
alegremente admite ter jogado o hamster amado da sua filha para fora na rua
"como se fosse um rato de esgoto". E certamente não a Nancy frágil, ou Alan, um advogado frio a quem o filme prodigaliza todas as
melhores linhas.
A certo
ponto o advogado Alan diz: "Moralmente,
você deve superar seus impulsos, mas há momentos em que não quer superá-los. Eu
acredito no deus da carnificina. O deus do qual a lei não foi desafiada desde
tempos imemoriais.".
O
que nos leva diretamente ao texto de Freud, O Mal estar na Civilização:
[...] a maneira
pela qual os relacionamentos mútuos dos homens, seus relacionamentos sociais,
são regulados - relacionamentos estes que afetam uma pessoa como próximo, como
fonte de auxílio, como objeto sexual de outra pessoa, como membro de uma
família e de um Estado. Este seria para Freud o aspecto mais importante da
civilização.
Sendo
que o maior impedimento para Freud seria :
[...] a agressão constitui no homem uma disposição
original e auto-subsistente, tendo como representante a pulsão de morte.
"Nós não somos todos filhos da puta de pavio curto!", Penélope
grita enquanto só vemos evidências do contrário . A esta altura todos estão embriagados de whiskey. Michael insidiosamente enfraquece Penélope, Penélope
ataca Michael, Nancy tem um
colapso nervoso, Penélope chora e grita,
Nancy joga o celular de Alan dentro do
vaso de tulipas, Alan pega seu celular
mergulhado em meio as tulipas de Penélope,
Nancy destrói as tulipas . A tensão em
graus agonizantes é muito para Nancy, que
vomita copiosamente sobre a mesa de café, sobre o
precioso livro de Oskar Kokoschka de Penélope. É uma cena tão surpreendente que funciona
como um ótimo quebra-gelo em meio a toda a angústia.
Em parte
o filme versa sobre “narcisismo
das pequenas diferenças’’, termo que
Freud atribuiu aos membros de um grupo em que todos estão identificados ao UM
do ideal do eu e que, por serem todos iguais perante esse mestre, tentam se
distinguir uns dos outros salientando suas pequenas diferenças e lutando
incessantemente por elas [...] o
narcisismo das pequenas diferenças aparece no grupo como defesa, pois cada um
se atém à sua particularidade e diferenças imaginárias para não ser apanhado
por essa identificação especular com o outro. “Para não ser outrificado, o
sujeito se atém às suas mínimas diferenças, provocando as rivalidades
imaginárias e a angústia vinculada à competição.”. na precisa descrição de Antonio Quinet.
A violência na
escola pode, se ampliarmos o contexto do
filme para a sociedade, ser vista como um sintoma no sentido
psicanalítico (condensa verdade e gozo) e surge como manifestação do que não está bem na ordem da civilização. Lacan indicou, particularmente em Televisão,
que o gozo contemporâneo, indexado pela barra sobre o Outro, já não se situa pela castração: com a queda dos ideais, não é mais o
significante mestre ou os semblantes ordenadores da civilização a regular o
gozo. Encontramos uma bela resposta
sobre o que é a civilização em "O Outro que não existe e seus comitês de
ética "uma civilização é um sistema de distribuição do gozo a partir de
semblantes, um modo de gozo, uma distribuição sistematizada dos meios e
maneiras de gozar.’’ (Miller, J.A.)
O
que pode uma mãe frente a atos violentos de seu filho na escola? As palavras da psicanalista Claudia Riolfi são claras : Quando
uma criança separa a mamãe que dá colinho da mulher que preza sua honra e é
capaz de dizer “isso não dá para mim”, capta a existência do que a psicanálise
chama de “ponto de vergonha”, um lugar a partir do qual precisa parar se não
quiser entrar no campo do intolerável.
O que
pode uma análise quanto a criança envolvida em atos violentos? A análise permitiria um deslocamento de criança sintoma para a
criança que tem um sintoma através do percurso da desalienação em relação aos
seus pais. Quando a criança se aliena ao
que é falado sobre ela, torna-se dependente do que imagina que é o que querem
dela, isso ao preço de muito sofrimento psíquico.
Uma
das saídas do impasse que originou o encontro e a discussão seria a
aposta na passagem
de uma posição irresponsável e inconsequente para a posição de decisão e implicação nos
diferentes aspectos da vida, da reinvenção
dos laços familiares, deixando para trás a busca por um culpado, mostrando aos filhos
que atos inconsequentes não existem.
A aposta
é no não sentido, no limite do saber e da presença do incompleto.
A inserção na cultura é feita pela via
do desejo e para se construir laços satisfatórios
é necessária uma grande dose de renúncia
na sua satisfação e narcisismo e , finalmente, parafraseando Jorge Forbes:
o estabelecimento de uma ética
que ultrapasse as leis morais, responsabilizando-se
não só pelo que é compreensível, mas também pelo contingente e pelo desconhecido, através da análise estabelecer uma ética para além das leis morais, "uma fantasia que sustente um semblante atrás do qual ela se satisfaça
e satisfaça ao outro’’.
Direção
de Roman Polanski - 2011
Elenco : Kate
Winslet (Nancy, Judy Foster (Penélope) ,
Christofh Waltz (Alan) e John C. Reilly (Michael)
Roteiro
adaptado da peça da roteirista e escritora francesa Yasmina Reza , ‘’Le Dieu du
Carnage".
Graça Nunes é Psicóloga,
Psicanalista em formação contínua, analisanda. Participa semanalmente, sendo
2017 o sexto ano, de aulas e sessões clinicas no IPLA sob direção de
Jorge Forbes, Instituto da Psicanálise Lacaniana. Especialização
de 2 anos em Terapia Familiar Sistêmica no Intercef em Curitiba. Especialização
em Gestação, pós-parto e puerpério com Maria Tereza Maldonado.
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