Mostrando postagens com marcador Pedro Almodóvar. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Pedro Almodóvar. Mostrar todas as postagens

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2022

Mães : paralelas que se encontram no infinito

de Ana Laura Prates

AVISO: CONTÉM SPOILER


"Há verdades que só podem ser reveladas se forem descobertas"

(Incêndios, Wajdi Mouawad)


O filme Mães paralelas de Pedro Almodóvar transmite, em uma temática contemporânea, a estrutura do trágico, em sua tripla função clássica: estética, catártica e educativa. Mas é, acima de tudo, um filme sobre a dimensão da verdade. Não “A” verdade com letra maiúscula buscada pela tradição filosófica e pela religião, mas aquela com a qual nós psicanalistas nos deparamos a partir da escuta do inconsciente: a verdade que não pode ser de todo dita, pois que sua estrutura mesma inclui o que as palavras não alcançam. Que a verdade seja da ordem de um meio dizer, entretanto, não autoriza de modo algum a sustentação da mentira ou o relativismo cínico da pós-verdade.

Mães paralelas coloca novamente em cena a questão fundamental da peça Antígona, de Sófocles: o direito à lapide e à memória contra a vontade do tirano. A leitura original que Lacan realiza de Antígona aponta para o crime de desumanização praticado por Creonte ao impedir o sepultamento de Polinices. Assim, é contra o apagamento do nome e da memória que ela se insurge. Não por acaso, no final do filme podemos ler um trecho da seguinte citação de Eduardo Galeano: “não há história muda”. Por mais que a queimem, por mais que a quebrem, por mais que a desmintam, a história humana se nega a calar a boca. O tempo que foi segue batendo, vivo dentro do tempo que é, mesmo que o tempo que é não o queira ou não o saiba. O direito de recordar não figura entre os direitos humanos consagrados pelas Nações Unidas, mas hoje é mais do que nunca necessário reivindicá-lo e colocá-lo em prática: não para repetir o passado, mas para evitar que se repita (…). Recordar o passado, para liberarmos de suas maldições, não para atar os pés do tempo presente, mas para que o presente caminhe livre de armadilhas”. Trata-se de uma passagem extremamente complexa, pois Galeano aponta para a lógica descoberta por Freud: o que não se recorda e não se elabora está fadado a se repetir. Mas, tal como um desdobramento da questão subjetiva, Galeano aponta para a dimensão política presente na memória.

E é exatamente nesse ponto nodal entre o que há de mais íntimo e o político – os interesses da cidade, ou seja, a lógica do coletivo – que Almodóvar situa sua Antígona, Janis – personagem principal magistralmente interpretada por Penélope Cruz – assim nomeada por sua mãe hippie em homenagem a Janis Joplin (aliás, a trilha sonora do filme é um capítulo à parte). A intimidade, e o que fazemos com ela, queiramos ou não, saibamos ou não, é política! A mãe de Janis teve uma overdose quando ela tinha apenas 5 anos, e nossa Antígona espanhola foi criada pela avó em um povoado no qual, todos sabiam, havia uma vala comum na qual estavam os corpos de seu bisavô e de outras pessoas torturadas e assassinadas pelo Estado durante a guerra civil espanhola. A outra protagonista é Ana (Milena Smit), adolescente filha de uma família da elite, que deveria ter sido tradicional, não fosse o fato de que sua mãe escolheu a carreira de atriz, deixando a filha com o pai.

A história dessas maternidades paralelas, de mulheres que, cada uma a seu modo, não aceitou o destino inexorável de uma realização absoluta enquanto mães, encontram-se agora por obra do acaso em uma maternidade onde suas filhas estão parindo. Ambas estão grávidas e solteiras. Janis escolhe levar uma gravidez não planejada, porém desejada, mesmo que para isso tenha rompido o romance com o pai do bebê. Ana, saberemos depois, engravidou enquanto vítima de um estupro coletivo não denunciado por sua família. Elas, que bem poderiam ser mãe e filha pela diferença de idade, selam seu destino ao se tornarem mães no mesmo dia e local. O artifício clássico utilizado pelo mago Almodóvar – trocar as crianças na maternidade e matar uma delas – é apenas um recurso mais uma vez emprestado do trágico, aliás recorrente em sua obra como por exemplo em “Tudo sobre minha mãe”. Ele sempre o utiliza, entretanto, para apontar outra coisa, menos explícita e visível. No cinema de Almodóvar, o importante se passa, assim como nos sonhos, na Outra cena. Neste caso, questionar a própria maternidade natural, elevando-a a guardiã da transmissão simbólica. Se o pai é o representante da lei simbólica, são as mães que a veiculam através de sua própria divisão. Não por acaso o pai da filha de Janis, Arturo (Israel Elejalde) é antropólogo forense e enquanto o drama subjetivo das duas mulheres está transcorrendo, sabemos que, no pano de fundo, ele está abrindo uma investigação para autorizar a abertura da vala comum do povoado, a partir dos testemunhos de suas moradoras. Também não é por acaso que, embora ofendida, Janis escute a observação de Arturo de que sua filha não tinha semelhança biológica com o casal parental, a não ser por um possível e desconhecido avô venezuelano.

Janis, contudo, não é tomada pela paixão da ignorância. Antes, ela quer saber a verdade que, uma vez revelada, entretanto, a faz hesitar. É belíssimo o curto tempo do filme durante o qual ela tenta sustentar a mentira, sumindo do mapa e produzindo em si própria uma angústia insuportável. Saber da morte súbita da filha biológica, criada até então por Ana como sua, produz o efeito de aproximação improvável e radical entre as duas mães. Janis precisa desesperadamente que Ana saia da alienação produzida por sua família “neutra” politicamente, demonstrando magistralmente a conivência da neutralidade com a tirania. Janis precisa que Ana saiba a verdade sobre seu país, seus desaparecidos, mas também a verdade crua do DNA – que como sabemos, não é suficiente para produzir uma filiação. E Ana aceita a formação política paralelamente às aulas de culinária e cultura musical – apontando a responsabilidade que temos com as novas gerações!

Que essa voz que age pelo direito fundamental aos rituais fúnebres, assim como Antígona, seja a de uma mulher não é um mero detalhe. Que a história do povoado seja guardada por mulheres, tampouco. O mago Almodóvar prova que o feminismo só se sustenta na política e que é incontornável que a política seja feminista, como aparece na camiseta de Janis, enquanto ensina Ana a fazer tortillas. Mas a memória inclui os homens que morreram por justiça ou que ainda lutam por ela, por meio da ciência (Arturo) ou da arte (Almodóvar). Os últimos 20 minutos do filme se passam no tempo das escavações e da descoberta das ossadas. Como não lembrar aqui do trabalho extraordinário de Eugênia Gonzaga – nossa Antígona brasileira! – com o cemitério clandestino de Perus em São Paulo, e o fato de que uma das primeiras providências do atual presidente do Brasil foi exonerá-la, dizendo que “quem gosta de osso é cachorro”.

Mas nós, que não reduzimos o cadáver a carniça somos convocados pelo mago do olhar quando finalmente ocorre o ritual fúnebre e o povoado pode despedir-se de seus mortos e honrar sua memória. Almodóvar nos inclui na cena e choramos juntos pelos nossos desaparecidos. Somos parte do povoado! Cecília, a menina, tem duas mães e o filho ou filha de Arturo que Janis agora traz no ventre é nomeado por Ana de “seu irmãozinho”. Se for homem, terá o nome do bisavô de Janis; se for mulher, se chamará Ana. Assim como em Incêndios de Wajdi Mouawad, e assim como descobrimos no divã, uma filiação só pode se concluir através de um desejo que não seja anônimo. É preciso, portanto, inscrever o nome na lápide e fazer a história das sucessivas gerações que chamamos humanidade. Só assim uma história de estupro, o trauma original que nos constitui, pode virar uma história de amor. Cecília tem duas mães, mas, mais importante do que isso, Cecília tem um povoado, é filha de um povo. É belíssima a cena em que a pequena menina olha as caveiras e, nelas, vê corpos, projetando a imagem da vida que outrora pulsava. Nossos mortos vivem, ainda, enquanto forem falados, lembrados e imaginados, e são essas vidas paralelas que se encontram no infinito que chamamos de eternidade. Daí a utopia de Maiakowski em seu poema “O amor”: “Para que doravante a família seja o pai; pelo menos o Universo, a mãe, pelo menos a Terra” (trad. Augusto de Campos e Boria Schnaiderman)

Em “Mães paralelas”, Almodóvar ultrapassa a força de sua artimanha estética, nos deixando de herança seu filme mais ético!

Ana Laura Prates – Possui graduação em Psicologia pela Universidade de São Paulo (1989), mestrado em Psicologia Clínica pela Universidade de São Paulo (1996), doutorado em Psicologia Clínica pela Universidade de São Paulo (2006) e Pós-doutorado em Psicanálise pela UERJ (2012).

Fonte : https://jornalggn.com.br/editoria/cultura/maes-paralelas-que-se-encontram-no-infinito-por-ana-laura-prates/?fbclid=IwAR30kQR-DXAJYc87hIW0Vr8kn5DymRFG3pcyO-xXaXbCjDoQEvBKWJfR6QA

Postado com a autorização da autora.

TRAILER




sexta-feira, 2 de outubro de 2020

Habitar peles esfuracadas: dimensões do feminino em A pele que habito¹

de  Pedro H. Mendonça 

É preciso, antes de tudo, começar com honestidade. Se o presente trabalho toma como objeto - de estudo - um filme (a saber, A pele que habito, Almodóvar), a dimensão pulsional de minha escritura o toma mais como alvo ou destino da pulsão que como objeto. Trata-se de um pedaço de contorno através do qual a pulsão em mim se dobra em torno do objeto que lhe/me interessa. E nenhum objeto poderia encarnar mais propriamente o pequeno a, perdido junto do Real, que a mulher - talvez, mais propriamente, o feminino. Trocando em miúdos, sirvo-me das mulheres que habitam as peles de Almodóvar para nomear, a partir de sua montagem enquanto personagens e de suas relações com os homens do filme, aquilo elas denunciam da mulher: ora submetida às lógicas fálicas, como mãe ou como castrada, ora as desafiando no vazio do significante fálico que estrutura o simbólico.

Vale, então, questionar: quem são as mulheres em A pele que habito? É um espetáculo psicanalítico que a primeira a aparecer no filme é a mãe – Marilia –, embora ainda não saibamos deste parentesco, qual um de seus filhos, o cirurgião Robert, não saberá até o fim. A ela, no entanto, retornarei mais adiante, no momento em que importe tratar do lugar em que os homens – ambos seus filhos – têm as mulheres. Além de Marilia, há Gal e Norma, mãe e filha um tanto indistintas por entre o enredo. São, as duas, o grande objeto e a grande sina de Robert. Se o são, porém, como veremos, é sobretudo porque são também seu grande enigma. Como pano de fundo às três gerações que rodeiam Robert, há Vera? Afirmo sob um ponto de interrogação não só por não sabermos o quanto de fato Vera se torna mulher, mas sobretudo porque é ela mesma esta incógnita – provavelmente para o próprio Robert – que se espalha pelo filme sem poder ser precisada exatamente no tempo e no espaço.

Antes de todas estas, no entanto, há outra insígnia (feminina?), outra literalidade psicanalítica atuante não sobre Vera, mas sobre Vicente. Entre todo o mistério com que a personagem de Vera é apresentada, algo começa a se amarrar pela primeira vez depois de 1h15 de filme: Vicente desperta na mesa de cirurgia (com um olhar quase apaixonado para Robert?) para descobrir que sofreu uma vaginoplastia, punição pelo suposto estupro de Norma. Aqui a angústia de castração sequer precisa do órgão feminino no corpo da outra para se atualizar: estão realizadas, no próprio corpo, “as ameaças que provocou contra si, ao brincar com este órgão” (FREUD, 1996 [1933], p. 125). Se tanto se pode dizer, numa perspectiva feminista, contra a inveja do pênis, Almodóvar, já em 2011, denuncia, o mais literalmente possível, o quanto nossa imaginarização do falo no pênis ainda é operante.

É bem verdade que por enquanto não se trata propriamente da questão da mulher – Vicente ainda não é Vera –, mas tão somente do estatuto da vagina tomada enquanto ausência de pênis frente à subjetivação fálica de um homem e ao corpo social que insiste em dar a um órgão imaginário o estatuto que deveria ser próprio de um significante. Que acontece então a Vicente a partir daí? Quando chega, se é que chega, a se tornar Vera?

De fato, um giro estonteante acontece a partir da vaginoplastia. Na primeira hora de filme, Vicente é um homem cativo, acorrentado num porão, punição do crime que supostamente cometeu – supostamente na medida em que o próprio não se lembra se efetuou o ato ou não, e a cena é cortada no momento preciso: se um estupro é o ato sexual que se segue a uma negativa, Almodóvar nos faz saltar direto da negativa para o momento em que o rapaz se retira. Da castração em diante, a figura cada vez mais indefinível Vicente/Vera passa a habitar um quarto, no andar superior, e não só ter satisfeitas suas necessidades básicas, mas mesmo suas demandas mais humanas: do café da manhã aos livros de yoga. É curioso que por um lado Robert leva a cabo seu ato castrador no próprio dia da morte de Norma, mas de outro lado é justamente a partir deste ato que destitui Vicente de seu posto de homem que lhe roubou a filha, para incluí-lo na série das mulheres-objeto a serem desejadas e cuidadas.

Qual é este novo posto? Sob o olhar de Robert, podemos dizer que se trata da mulher que se reveste de significado fálico – e isso menos por ser objeto de sua criação do que por ser significante de seu desejo. Trata-se desta que, dada a impossibilidade do pequeno a, encarna o significante fálico que permite desejar sobre esta falta – refiro-me aqui à feminilidade enquanto semblante (RODRIGUES, 2008). E temos outra vez uma ambiguidade: de um lado, Vera é criatura de Robert, sua própria obra, signo de seu poder; de outro, a partir deste mesmo lugar, ela se torna objeto último de seu desejo, sobrepondo-se na série Marilia/Gal/Norma, apontada por Dombronsky (2013) inclusive em suas semelhanças físicas. Mais do que se sobrepondo, talvez encerrando a série. Afinal, eis em carne sua idealização última. Pergunta Vera:

Ainda tem algo que você queira mudar? — quase ‘ainda falta?’

Não.

Então acabou?

Eis o grande problema: acabou. A criação está feita, o objeto está pronto. Como desejar se nada mais falta? Algo acontece: logo em seguida Vera se faz sedutora, num jogo histérico de produzir desejo, a princípio jogo frustrado. Frustrado? Ainda que por enquanto nada se efetue em ato, ela não deixa passar: “eu sei que você me observa”. Aliás, parece que sempre sabe quando é observada, mas talvez incapaz de distinguir por quem: aos 27 minutos de filme, responde a Zeca pela câmera, indagando-o com os olhos. Pensava ser Robert?

De fato, em meio às seduções, se produz, neste primeiro nível, uma complementariedade no jogo dos sexos: ele a toma como objeto de/para desejo, ela se faz histérica e produz desejo. Trata-se mesmo do jogo dos papéis de gênero com que se desenrola o amor moderno: ele desejante, ela desejada. Aliás, daí em diante, pouco a pouco ela passa a se fazer desejável: entre seduções, roupas, maquiagem (que só surge no final do filme!), focos da câmera num decote e jogos de idas e vindas, os signos sociais da mulher-objeto se fazem cada vez mais presentes, talvez alcançando seu ápice quando Vera sai às compras.


Corto. É preciso questionar: trata-se tão somente disso? Parece que até aqui, no modo como descrevo, incluo Vera-objeto como suprassumo da série Marilia/Gal/Norma. Acontece que já deixei meu prenúncio: há outro aspecto de Vera, aquele que não se insere na continuidade da cadeia de mulheres, mas que se faz seu próprio pano de fundo: Vera-enigma, este feminino insondável que se aguenta em suspenso por todo o filme, sobretudo na sua primeira metade. Há algo aqui que se soma à mulher-objeto e faz dela não só objeto, mas sina. Sina de Robert, anunciada por sua insabida mãe já ao fim do filme: “parece uma criança, sempre te aconteceu igual com as mulheres”.

Mas, para tocar esta sina, é preciso uma pequena digressão que percorra a maternidade de Marilia, seu jogo incestuoso com Zeca, seu segredo quanto a Robert, a perversão de Zeca-Tigre e a (perversão?) de Robert. Quando a bizarra figura de Zeca fantasiado de tigre aparece, o incesto se encarna já de início num quase-beijo. No entanto, muito pouco se nota de uma atitude incestuosa ativa por parte de Marilia. Muito pelo contrário: a mãe nos dá a impressão de que nada pode contra o Tigre, pelo amor ou pelo ódio, pelo incesto ou pela castração. Suas tentativas quase inertes de pará-lo, quando este se determina a ir atrás de Vera, são literalmente amarradas na perversão do filho e caladas por um guardanapo – que “antes te cabía entera”, assim como dois minutos depois, estuprando Vera, que pensava ser Gal, lhe diz (num paralelismo sintático no original espanhol) que “antes te volvía loca”: sobreposição de oralidade e genitalidade, jogando com tamanhos e encaixes?

Se o perverso mantém o incesto ou o incesto produz o perverso é impossível responder pelo próprio filme, a não ser pela hipótese de Marilia: “são de pais diferentes, mas ambos nasceram loucos. São minhas entranhas, a loucura está em minhas entranhas.” De fato, também a Robert, algo da perversão foi transmitido. Ainda assim, se vem das entranhas de Marilia, o segredo sobre sua maternidade parece ter lhe garantido algo, talvez justamente algo da ordem do segredo, do enigma. Se tomarmos a série das mulheres-objeto cronologicamente, Marilia é quem a inaugura, e o faz em segredo. Entre seu desejo e seus lutos, a mulher para Robert se tornou, ela mesma insígnia do enigma, o qual abre a série com Marilia e a encerra com Vera. Não à toa, quando Robert reclama que todas as mulheres que opera fazem Marilia se lembrar de alguém, ela já sabe: não esta, ela é diferente. Profecia?

De todo modo, é esta recorrente denúncia de Marilia que é preciso acentuar, pois se refere precisamente ao cerne do argumento do filme: Vera-enigma. Repetidamente, comentaristas e analistas afirmam Robert como perverso (LA PIEL, 2013; ESTRADA, 2012; CAZALLA, 2014). É certamente inegável que seu grande experimento e sua grande vingança movimentam um gozo absolutamente perverso, e Cazalla demonstra de modo bastante interessante a crítica à própria perversão do discurso científico e técnico tecida por Almodóvar. Mas ao escutar o Tigre, este que é plenamente filho de sua mãe, o contraste com seu meio-irmão faz gritar uma diferença implacável. O Tigre rouba, invade e estupra. O Tigre não tem Outro, ele é a própria Lei desfrutando de seus objetos. Também Robert faz sua própria lei, desafia a bioética, transforma Vicente em “brinquedo” (na descrição do próprio Vicente) e não hesita em matar o Tigre. Mas tomá-lo como perverso é deixar passar em completa ignorância o fato de que, se não hesita em matar o Tigre, hesita sim em matar Vera. Aliás, a certa altura – depois que a obra perversa está acabada e a sedução histérica entra em cena – ele está de novo submetido a seus jogos. É sua sina, é a profecia de Marilia. Logo no início, e sem qualquer explicação no enredo, o leitreiro² “maternidade” ganha enorme foco logo antes da palestra do Dr. Ledgard. De fato, parece que o segredo de sua maternidade criou sua sina, mas também sua salvação: garantiu este ponto de enigma, este mistério Real que a perversão contornará, mas não submeterá.

Assim é que os dois homens apresentam, no filme, duas articulações possíveis do feminino. De um lado, Vera-objeto ora é boneca sexual da perversão de Zeca, ora é, sim, desejante, mas sob o modo histérico de um se fazer mulher para ser desejada por Robert, selando a série Marilia/Gal/Norma/Vera-objeto. De outro lado, Vera-enigma denuncia algo do feminino que transcende o desejo fálico. Trata-se deste pano de fundo, que mal se sabe quem é ao longo de toda a primeira hora de filme, desta personagem ao mesmo tempo destituída de subjetividade, mas também articuladora de toda subjetivação pensável no enredo (para homens e mulheres!). É a mulher enquanto indefinido. Indefinição esta que alcança seu ápice não em Vicente submetido, nem em Vera de maquiagem e salto alto, mas no ponto em que não se pode nomear nenhum dos dois. 1h22: Vicente/Vera, não à toa vestida em sua segunda pele e sua máscara, foge de Robert pela casa, e não escapa. Interessa menos a perseguição em si do que esta figura impensável, que não pode mais ser Vicente, mas ainda não é Vera. Até mesmo sua voz é mais infantil do que masculina ou feminina. É a figura que invoca a indagação que Almodóvar nos impõe acerca de Vera desde o início: quem é ela?

Esta articulação do feminino enquanto enigma parece falar de algo que antecede a própria proposição freudiana de que, a princípio, “a menininha é um homenzinho” (FREUD, 1996 [1933], p. 118) que posteriormente terá de inverter sua relação com o falo para se fazer mulher-desejada já na ordem fálica. Não caberia aqui adentrar as minúcias de um feminino que escapa à própria inscrição do falo, tal como Lacan o desenvolve, mas vale sim notar que, se do lado masculino o desejo se inscreve ao modo fálico, do lado feminino ele sempre pode também se submeter a tal dinâmica, sob a égide da sedução histérica, mas algo restará. Irigaray (2017) nos ajuda com uma distinção fecunda: se a feminista pós-lacaniana busca um modo de falar deste resto como um falar-mulher, também não deixará que este falar-mulher se confunda com um falar histérico. Afinal, a histeria é já o feminino submetido ao fálico, é já Vera-enigma transformada em Vera-objeto, que não fala-mulher. Ao contrário, no falar histérico, “isso fala como sintomas de um ‘isso não pode falar a si nem sobre si’” (IRIGARAY, 2017, p. 156).

Este, sim, é o grande enigma de Robert – provavelmente de todos homens, e da maior parte das mulheres. Enigma que se atualiza e se refaz na série das mulheres-objeto Marilia/Gal/Norma, tal como o falo se faz significante de uma falta, se assenta sobre a perda do objeto a. Mas Vera está além do aprisionamento fálico do gozo, e até o fim deixa sua questão: o assassinato de Robert estabelece a perdição final do médico no feminino ou, ao contrário, a efetuação radical de sua sina e resposta de seu enigma? E, quanto a Vicente/Vera, de fato se tornou Vera? E, se sim, se tornou histérica ou se fez num constante devir-mulher indefinível? E a falicidade de Vera assassina é resto do masculino Vicente ou é apropriação feminina de uma femme fatale, que não seria nova em Almodóvar (Rodrigues, 2008)? O fim reedita este mistério insondável. Dombronsky (2013) vê uma androginia em Vicente já de início, que honestamente não pude encontrar, a não ser quando aparece debaixo da cama para dar fim em Marilia (e encerrar a série de mulheres-objeto). E toda a composição a partir daí será ambígua: ainda que andrógina, mata maquiada. Veste sua jaqueta de couro vermelho, sobre o vestido que desejara para Cristina – chega em casa e se apresenta no masculino: “Sou Vicente, fui raptado”.

E é certo que não se poderia encerrar nem o filme, nem este trabalho a não ser com interrogações:

Lacan dirá que a mulher rejeita uma parte essencial de sua feminilidade na mascarada, já que ela não estaria totalmente assujeitada à função fálica. Em última análise, poderíamos chamar de semblante aquilo que tem função de velar o nada. Nesse sentido, o véu é o primeiro semblante. Temos como testemunho as artes, a história, a antropologia, que revelam uma preocupação de velar, cobrir a mulher. Por que não se pode descobrir a mulher? Ela representa a castração, ou seja, a mulher é velada porque, ao se retirar o véu, encontra-se o nada. (Rodrigues, 2008, p. 95)

Pode ser que se trate realmente deste impasse. Seria mesmo possível libertar a mulher do fálico, seja o fálico da femme fatale, seja o fálico a que está submetida a sedução histérica? Aquilo, amulher (termo de Irigaray, 2017), que não se inscreve no fálico é, propriamente, algo? Ou arrancando qualquer referência falogocêntrica da mulher, encontraríamos simplesmente o nada?

Eis o questionamento que move minha escrita, e provavelmente ainda a moverá por algum tempo. Irigaray (2017) demonstra que definir a mulher como indizível ainda reproduz uma linguagem falogocêntrica (o neologismo é da autora), por mais que a liberte do sintoma histérico. Afinal, quem não pode falar d’amulher, não pode justamente porque fala a partir de uma referência fálica, à qual amulher sempre escapa. Será, então, possível inventar uma linguagem, um modo de simbolizar, que fale-mulher? Irigaray tenta, e nos deixa um vislumbre de que – para além do falo e para além do nada – algo pode nascer Quando nossos lábios se falam³.

¹ Trabalho apresentado como requisito semestral no curso Semiótica psicanalítica: clínica da culutra, COGEAE/PUC-SP.

² Logo na primeira escrita do trabalho, um inconsciente leiteiro se impôs sobre meu letreiro. Faço questão de não o corrigir.

³ Título do último texto publicado em Ce sexe qui n’en est pas unEste sexo que não é só um sexo, na pobre tradução para o português (IRIGARAY, 2017, p. 231-246). Quando nossos lábios se falam é, no fundo, sua grande abertura feminina e consumação de seu falar-mulher.

Referências bibliográficas

CAZALLA, Camilo. Comentario sobre La piel que habito. Conclusiones Analíticas, La Plata, v. 1, n. 1, p. 273-277, 02 set. 2014. Disponível em: http://sedici.unlp.edu.ar/handle/10915/39392. Acesso em: 14 jun. 2020.

ESTRADA, Cinthya. La piel que habito y la cuestión de La mujer como enigma. 2012. Disponível em: http://www.nel-mexico.org/articulos/seccion/varite/edicion/Cine-y-Psicoanalisis-una-mirada-hacia-lo-imposible/514/La-piel-que-habito-y-la-cuestion-de-La-mujer-como-enigma. Acesso em: 14 jun. 2020.

FREUD, Sigmund (1933). A feminilidade. In: Obras completas (Edição Standard). Rio de Janeiro: Imago, 1996. v. XXII.

GARCIA-ROZA, Luiz Alfredo. Freud e o Inconsciente. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.

IRIGARAY, Luce. Este sexo que não só um sexo: sexualidade e status social da mulher. São Paulo: Senac, 2017.

DOMBRONSKY, María Nélida. La piel que habito I (Almodóvar) – Cine y Psicoanálisis. (2013). (9m43s). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?time_continue=323&v=hShssbGTdAI&feature=emb_logo. Acesso em: 21 jun. 2020.

RODRIGUES, Ana Lucilia. Pedro Almodóvar e a feminilidade. São Paulo: Escuta, 2008.

Pedro H. Mendonça é graduado em Psicologia pela PUC-SP, especializando em Semiótica Psicanálitica pela COGEAE (PUC-SP), com formação teórico-prática em Acompanhamento Terapêutico. Colaborador em Instituto Dasein e membro da Oficina Clínica de Psicanálise.

trailer