sábado, 16 de maio de 2015

O(s) Solista(s) de um mundo normatizado : laço de amizade é possível ?

de Henrique Senhorini

Eu não sei ao certo o que me levou assistir novamente o belo filme O Solista do diretor Joe Wright. Talvez, motivado pelo interessantíssimo texto da colega Isloany Machado sobre o filme “Garota Ideal” ou talvez pelo clima outonal deste mês de abril ou, simplesmente, para confirmar que pouca coisa, que quase nada mudou no mundo dos normais em relação aos chamados loucos da nossa sociedade, desde então. Não importa o que me fez assisti-lo mais uma vez, pois sei que algo fez.

Trata-se da história de Nathaniel Anthony Ayers Jr., apresentada como verídica, contada através de Steve Lopez - jornalista e colunista do Los Angeles Times - e roteirizada para o cinema.
Ayers é um sem-teto, morador de rua, exímio músico, apaixonado por Beethoven, com passagem numa conceituada escola de música e apresentado com diagnóstico de esquizofrenia. Já o outro protagonista, Steve Lopez, é um jornalista/colunista que se encontra em plena crise, talvez não só dele mas de todas redações de jornais tradicionais de sua época, promovida, de certo modo, pelo medo oriundo das demissões e falências causados pelo avanço da internet concomitante a falta de interesse dos jovens por este velho hábito. Em luta, ele - Steve Lopez - procura uma grande história para se manter vivo no emprego e também manter vivo o hábito de se ler jornais. Talvez, procurasse um mais além do que isso.

E em sua busca - já no filme - Lopez escuta, no parque Pershing, o som de um violino sobressaindo dos barulhos tradicionais de uma grande cidade. Reconhecendo o som como música clássica, levanta-se do banquinho da praça e aos pés de uma estátua de Beethoven encontra um morador de rua tocando seu violino. Lopez se aproxima e vendo as inscrições no boné do músico pergunta: “Fã de Stveie Wonder?”. O sem-teto responde: “Ma Cherie Amour, é a canção da minha vida”. Assim se apresentam e iniciam uma conversa sobre violinos. Nathaniel Ayers fala do seu instrumento com somente duas cordas, fala de onde veio - Cleveland - enquanto Lopez diz do seu trabalho. O músico, por sua vez, continua sua fala, só que cada vez mais acelerada, quase sem pontuações, num fluxo palavroso com frases sem sentido, que se mostra - não só para Lopez - como uma verborreia, apresentada desta maneira:

Há muitas estátuas militares em Cleveland. Em Los Angeles tem a polícia e o Los Angeles Times. Vocês tem o L.A. Lakers. Esses são os exércitos também. A regimentação, experimentação. Telhado romano, catolicismo romano, o coronel Sanders, o condutor da orquestra. O violoncelo pode apoiá-lo, mas não pode ser condutor...”

abro um parênteses aqui
Neste instante, a fala de Ayers remeteu-me novamente a uma frase - é de Leclaire? - ligada à época na qual trabalhei em um hospital psiquiátrico e também com moradores de rua. A frase que se fez presente é a seguinte: o psicótico faz amor com as palavras. E o por quê desta lembrança? É que nesta época minha escuta estava mais sensível para a clínica da psicose e esta fala do Nathaniel - no filme - é um belo exemplo. É uma fala de um sujeito absorto a algo parecido a uma associação livre sem fim, como um discurso ininterrupto. Um sem fim da cadeia significante que por falta do significante mestre (S¹) – Nome-do-Pai, enquanto função paterna – “as frases não possuem a representação meta que permitiria precipitar uma significação”, como nos diz Quinet (2006) em seu livro “Psicose e Laço Social”. Pois o Nome-do-Pai (pai como termo referencial), que para nós neuróticos é o nosso ponto de ancoragem, além de ter a função de amarração da cadeia de significantes com a dos significados, exerce também o ponto de basta (estabilização do significante e do significado através da metáfora paterna) que daria um fim ao sem fim destas associações, um basta na cadeia de significantes. Também é bom lembrar que o significante mestre, Nome-do-Pai, é um significante de comando que não necessita estar encarnado pelo pai real, observando que, segundo Quinet, o real para Lacan em 1956 correspondia à realidade e em 1970 ao impossível, sendo o pai, “no primeiro, o pai do desejo, o totem da lei”. No segundo, já em 1970, o pai gozador, impossível de suportar, que condena “todo sujeito a ter apenas restos de gozo”. E os psicóticos, diferentes dos chamados normais (das normas) - os neuróticos das normas do pai - possuem o Nome-do-Pai foracluído, que seria a não inclusão na norma edipiana. Porém, o excluído pelo sujeito psicótico retorna como delírios e alucinações do lado de fora. E “quando falamos de volta no Real do que está forcluído, estamos falando de volta no Real de um lugar e de uma função que não fazem parte da organização psicótica do sujeito.”, de acordo com Calligaris (1989) no seu clássico “Introdução a uma clínica diferencial das psicoses”.
fecho parênteses

Bem... voltando ao filme, Nathaniel continua seu desfile... “O comandante é Itzhack Perlman, Jascha Heifetz... Não se pode tocar no inverno em Cleveland por causa do gelo e neve. É por isso que eu prefiro L.A., cidade de Beethoven, porque nunca chove no sul da Califórnia e se chove basta entrar no túnel e posso tocar o quanto quiser. Esta estátua me assusta, não te assusta? Ela me encanta, realmente me encanta. Como alguém como Beethoven era o líder de Los Angeles?”
Lopez, ouvindo todo o isso a céu aberto, faz cara de interrogação e se vira, dando de ombros, para uma rápida e estratégica retirada, do tipo... deixa eu ir embora que esse cara é maluco. Mas ao virar-se vê três nomes esculpidos numa árvore próxima. Pergunta quem são e obtém de Nathaniel a resposta que foram seus colegas da Juilliard (escola de artes de Nova York, criadora de talentos mundialmente famosos). O jornalista colunista cresce os olhos... estaria aí sua grande matéria, um maluco sem-teto músico da Juilliard Scholl ?

Em função disso, da coluna para o L.A.Times, Lopez faz ligações. Primeiro para Juilliard, buscando confirmação da presença do músico naquela instituição, depois para a irmã de Ayers, obtendo mais informações sobre o irmão músico. Decide, então, escrever sua coluna contando a história de Nathaniel Anthony Ayers, Jr.. Resultado: Sucesso!!!

Uma leitora sensibilizada doa, ao músico sem-teto, seu antigo instrumento de cordas esfregadas, cujo tipo fez Ayers se introduzir na arte da música, um violoncelo. Aquele instrumento que apoia mas não conduz, nas palavras dele, que tem que ser tratado como uma criança. O mesmo tipo de instrumento que, na sua infância, o fez conhecer, apaixonar e idolatrar Beethoven. Que também o fez, anos a fio obsessivamente, se dedicar integralmente à música, a viver para ela, pois, através dela - talvez movido pela profecia materna e também de seu professor - o mundo se abriria para ele. Obsessivamente a ponto de marcar as posições das cordas do violoncelo no próprio braço para treinar a noite, em sua cama, até adormecer. Estaria Nathaniel, sem querer querendo e sem saber sabendo, envolto numa construção sintomática, de tipo obsessiva, para tentar reparar a foraclusão do Nome-do-Pai? Colette Soler (2007), no livro “O inconsciente a céu aberto da psicose”, nos lembra que Lacan mostrou que esse tipo de construção pode funcionar como “forma de equilibração de uma psicose latente” que ele, Lacan, “a trouxe [a forma de equilibração] à luz no caso de Joyce, no qual ela é um efeito da arte”. Seria o mesmo com Ayers? É possível.

E diante da boa repercussão da coluna do L.A.Times, Steve volta a procurar Nathaniel para que, talvez, possa dar continuidade na sua história e consequentemente maior visibilidade na sua coluna do jornal, pois encontrara aí, quem sabe, seu veio de ouro. Até então, para ele, o maluco nada mais era que um músico com uma história interessante para ser contada. Lopez o encontra entre carros, quase sendo atropelado, tentando retirar a sujeira das ruas (uma bituca de cigarro) pois não tolera a degradação da cidade causada por aqueles que “não respeitam Beethoven”. Neste encontro, o jornalista entrega o violoncelo doado e o diretor do filme, Joe Wright, nos brinda com a mais bela cena do filme, na minha opinião, embalada pelos acordes do violoncelo na mãos de Ayers. Nesse momento majestoso, parece que Nathaniel, para Steve, se transforma em algo maior que uma simples história de coluna de jornal. Um laço social começa a se formar?
Lopez, preocupado com a integridade física do músico, tenta convencê-lo ir a um abrigo, para que este se afaste dos perigos eminentes das ruas, condicionando (palavra feia, né?) a sua ida à Lamp Community ao violoncelo. Porém, Nathaniel reluta em sair das ruas - via régia do inconsciente para os sujeitos psicóticos - dizendo, em vão, que não é assim que se começa uma relação. Mas, depois de alguns dias cede à exigência.

outro parênteses aqui
A Lamp Community (http://lampcommunity.org/) é uma instituição sem fins lucrativos, vive de doações, não é governamental e está estrategicamente inserida numa espécie de cracolândia paulistana deles. Enfim, é uma casa que recebe e auxilia, sem exigências prévias, as pessoas mais vulneráveis - mais de 9.000 moradores de rua em Los Angeles - como se definem, oferecendo até habitação para quem queira.
fecho parênteses

Nesta comunidade, Steve encontra várias pessoas ditas loucas, entra em contato com elas, conversa, interage, ouve suas queixas, vê a importância delas terem seus espaços para falarem o que der na veneta e principalmente ter alguém disposto a escutá-las. Acredita que está no caminho certo. Porém, como muitos de nós, cai na armadilha que detém um saber sobre o outro. O “eu sei que é melhor para você” é tão comum entre nós, que isso se dá até - e principalmente - nas relações mais íntimas, começando nos laços familiares. Muitos apelam dizendo que fazem isso em nome do amor, esquecendo que com isso retira a competência desse outro de aprender, cuidar e viver a própria vida. Chama o outro, mesmo que indiretamente, de incompetente. Ceder a esta tentação, a tentação de ocupar este lugar de saber, entendemos que não é nada fácil, pois acontece até com quem não deveria deixar acontecer. No caso, talvez por culpa da formação, muitos psicólogos e alguns psicanalistas que se esquecem da advertência lacaniana, que em relação ao outro somos ignorantes. Doutos, porém ignorantes.

Lopez crê, como muitos, que somente através de um diagnóstico psiquiátrico (tipo DSM/CID) e da medicamentação, compulsória se preciso, estaria prestando uma grande ajuda ao músico, pois este ficaria (na fantasia de Lopez) dentro da “realidade”, esquecendo-se que cada um - mesmo os neuróticos - tem a sua versão e ou perdas e alterações fragmentadas da mesma realidade compartilhada. E em busca de aliados da sua verdade, aproxima-se de David (tipo coordenador da Lamp) para que este providencie a satisfação de seu desejo. Porém recebe, a contra-gosto, a resposta que este, o coordenador da Lamp, não se interessa muito por diagnósticos. Sem entender e indignado, Lopez retruca: “como pode ajudar alguém se não se sabe o que ele tem?”. “Olhe para estas pessoas”, tenta explicar David, “todas foram diagnosticadas mais do que pode imaginar. Pelo que eu vejo, não fez bem a ninguém.”. Lopez insiste: “mas ele precisa de medicação”. “O que ele não precisa é de mais uma pessoa dizendo-lhe que precisa”, finaliza David.

Steve não percebe, não entende ou não quer entender, que ocupar o lugar de suplente do significante-mestre de referência, como uma “pseudometáfora paterna” (Calligaris) para o músico tentar promover um tipo de autofiliação que lhe dê sustentação, “a cada momento, com sua certeza”, apenas(?) oferecendo sua amizade para que Nathaniel tente se enlaçar socialmente a ele, não é pouca coisa. Não, uma amizade, definitivamente, não é pouca coisa!
Até então, numa tentativa de dar sentido ao sem-sentido, Beethoven ocupava este lugar - lugar da foracluída metáfora paterna - através da construção de uma “metáfora delirante”. Sabemos que, para Freud, o delírio é uma tentativa de “cura” da psicose, assim como as tentativas de inserção no laço social, para Lacan. Pois apesar dos sujeitos psicóticos se encontrarem “fora-do-discurso [os 4 discursos: do mestre, do universitário, da histérica, do analista] e, portanto fora do laço social” isto não impede “todas as suas tentativas de estabelecimento de laço social, na medida em que está tanto no campo da linguagem quanto no campo do gozo”, nas palavras de Quinet.

Entretanto, Lopez insiste e persiste, como que tomado por um furor sanandi, enquadrar no nosso quadradinho o que é não é quadrado. É difícil conviver com o diferente, com os que não pensam, não agem, não seguem as mesmas normas e regras dos considerados normais. Para alguns, além do impossível da convivência, é muito difícil até de aceitar que existem pessoas que simplesmente não são como nós, que não compartilham do nosso modo de ser. E já que não é possível transformar um psicótico em um neurótico, queremos porque queremos fazer com que sejam, no mínimo, parecidos com a gente - nem que for na marra - sob o pretexto que desejamos o melhor para eles. Ah... Essa hipocrisia, socialmente aceita, nos faz dormir melhor?
E caso não aceitem e não queiram se enquadrar, nós os varremos do nosso campo de visão, pois o que não vejo, logo não existe ou, pelo menos, posso pensar que não, ou ainda tentar esquecer (na maior parte do tempo) que existe gente assim. É o que acontece desde sempre, ao longo da história, via hospícios, manicômios (o horror de Barbacena), extermínios (Hitler), política e polícia repressora e outras formas de exclusão em nome da higienização. Mas que higiene é essa? Higiene de quê?

Bem... daí surgiram expressões como louco “varrido”, por exemplo, para identificá-los.
Somente agora - no Brasil após a reforma psiquiátrica e da lei antimanicomial (LEI No10.216, DE 6 DE ABRIL DE 2001) - podemos enxergar alguma luz no fim do túnel para os sujeitos psicóticos. Mesmo assim, precisamos de algum esforço para ver esta luz sem o uso de uma boa luneta, mesmo parecendo ser simples promover a inclusão do psicótico na sociedade, pois para tanto basta incluir as diferenças, a diferença do psicótico, pela mesma. Ah... lembrei de mais uma expressão: lunáticos.

Ao filme... O jornalista, apesar de todo seu ceticismo, tenta se convencer das palavras ditas por profissionais da área psi, que a amizade é o melhor que ele poderia oferecer para o bem do músico, agora amigo. É o que acontece no fim do filme. Steve Lopez, quebrando alguns de seus pré-conceitos em relação a loucura, percebe, enfim, que é possível construir e manter um laço social viável entre um psicótico e um neurótico, também, pela via da amizade. Por incrível que pareça, tenho a impressão que a dificuldade em aceitar esta possibilidade está mais do nosso lado (dos ditos normais, das normas do Pai) do que do lado deles (dos fora das nossas normas, do falocentrismo). No final, na cena final, suscita a última questão: estaria aí nesta nova amizade, para Lopez, seu mais além do veio de ouro? Quem sabe...
São Paulo, 27 de abril de 2015.

Trailer do Filme

sábado, 2 de maio de 2015

Ida e seu sacrifício cristão

de Andréa Brunetto

Ida, filme polonês de 2013, dirigido por Pawel Pawlikowski, ganhou o Oscar de Filme estrangeiro desse ano. Já tinha ganhado ano passado dois prêmios, mas teve sua fama estendida após o Oscar e suscitou acaloradas polêmicas em seu país. Os poloneses não gostaram muito de se ver nele, e que seu país fosse exposto no mundo inteiro pela questão judaica. Nele, cristãos mostram-se indiferentes ao destino dos judeus e um deles mata a machadadas uma mulher e uma criança judias só para ficar com a casa delas. Essa cena não é mostrada, ela faz parte da história a ser resgatada no tempo atual em que a ação se desenrola. O filme se passa na década de 60 do século XX, mais de uma década depois de terminada a II Guerra Mundial.

Antes de entrar no debate sobre o filme, faço algumas considerações sobre o país. Uma cena sobre a Polônia que li e me marcou: o jornalista polonês Ryszard Kapuscinski, que viveu décadas de sua vida como correspondente na África, conta em seu livro “Ébano, minha vida na África” que uma vez um africano disse para ele que ele, homem branco, não sabe o que é ser escravizado por outro povo. Ele respondeu: sei sim, meu povo já foi oprimido por três outros povos. O africano teve descrédito e desconfiança com o que ele tinha dito, não achava que um povo branco pudesse ser tão oprimido. Mas podem, e esses são os poloneses, que já estiveram sob o jugo dos austro-húngaros, dos russos e dos alemães; que já tiveram seu território retalhado e distribuído a bel prazer dos conquistadores algumas vezes; que após o fim da Segunda Guerra estiveram sob o domínio da Rússia por muito tempo. E que tiveram uma posição estratégica bem ruim durante a guerra, no meio do fogo cruzado entre russos e alemães. E eles têm tragédias muito grandes durante essa guerra, como o massacre de Katyn, por exemplo.

Então, não se prestam muito bem a serem considerados pró-nazistas ou algozes. Mas que os cristãos lá, bem como em outros países europeus, fizeram vista grossa ao que acontecia aos seus vizinhos judeus, fizeram. Há relatos em vários livros que li sobre a conivência dos cristãos poloneses com o destino dos judeus. O livro de Claude Lanzman dá vários exemplos. Esse autor fez uma grande pesquisa nas pequenas cidades polonesas para seu filme Shoah. Boa parte dessas histórias de segregações dos cristãos poloneses eu li antes de estar na Polônia. E foi muito chocante quando estive lá - andei pelo país em 2011, fui a Auschwitz - pois em contraposição a isso, nunca conheci um povo tão acolhedor, tão simples, tão simpático como esse. E tão cristão. Sobretudo na Cracóvia, de João Paulo II.  Deixando essa questão de lado, entro no filme.

Anna, uma jovem às vésperas de fazer seus votos e tornar-se freira, é instada pela madre superiora a procurar sua tia, única parente viva, a conversar com ela e só depois, confirmar sua vocação. Sai à procura da tia e com isso descobre que seu nome é Ida Lebenstein, uma judia, filha da irmã dessa tia, Wanda. A tia é uma magistrada, alcóolatra, aparentemente faz parte do partido comunista que conduz o país após o final da Segunda Guerra. Essa camarada está desiludida com os rumos do país, e culpada por ter deixado seu filho com a irmã e sua própria filha ainda bebê, para lutar na resistência. O filho de Wanda e a irmã foram mortos a machadadas pelos vizinhos cristãos que ficaram com a casa deles. Quando o homem que os matou, mostra onde estão as ossadas, ele dentro da cova que abriu, Ida pergunta a ele: por que eu não estou aí com eles? Ele responde: você era tão pequena, passava bem por cristã. O menino não, era moreno e circuncidado. Ser branca a salvou da morte. Assim Ida sobreviveu, porque passaria por cristã. É isso Anna\Ida: uma judia que se passa por cristã, uma indiferente a tudo o que vê, que não se envolve, se passando por doce e bondosa.

Wanda e Anna\Ida viajam ao interior, a cidade onde tudo isso se passou, conversam com as pessoas. Todos os cristãos tem um segredo a esconder, são resistentes, não querem tocar nessa história do extermínio dos judeus; estão bem acomodados na casa que agora é deles, que foi tomada com sangue e assassinato. Quando Wanda investiga, quando é dura com os assassinos cristãos, Ida se afasta, não quer ouvir, sai da casa. Ida não quer participar do resgate dessa história. Ela está bem certa de que é cristã, que será freira. Sua tia culpada, atormentada, deprimida, ensaiando uma posição de objeto a ser descartado, caminha para um suicídio que se concretizará ao final do filme, jogando-se pela janela, e Anna\Ida não diz nada, não ora por ela, não a acalma. Ela está sempre numa vacuidade. Nunca está onde aparentemente está. Ela parece indiferente a tudo. Por isso tenho dificuldade em dizer que ela é Ida. Ela renega suas raízes judias, ela é Anna. Ela só sai da indiferença quando surge o desejo por um homem.

No começo da busca delas pela verdade, Wanda dirigindo, diz a Anna que ela vai deixar os homens loucos e pergunta se ela tem maus pensamentos com os homens. Ela responde que não. Pois devia, senão que sacrifício terá nesses  votos que vai fazer? Mas depois darão carona a um músico, um belo rapaz, que vai despertar-lhe o desejo, e aí os “maus pensamentos” vem. Ele lhe diz: você não tem ideia do efeito que causa. Ela não diz nada, mas vai para o quarto e tira o véu, fica se olhando. A partir do desejo dele, que a torna desejável, vê-se como uma mulher no espelho. E após o suicídio da tia, liga para ele, encontram-se, vão para cama e ela descobre o sexo. Acordam, ele faz planos, terão uma casa, um casamento, viagens a trabalho para ele tocar e ela o acompanhando. Ela volta a sua indiferença de antes, não diz nada. Ele dorme, ela faz a mala e volta para o convento.

O filme tem cenas belíssimas, com neve que não acaba mais, e estradas brancas e árvores secas. E é esta a cena final: ela chegando, à pé no meio da neve, sozinha, para seu sacrifício dos votos. Viveu o desejo que sentiu, virou as costas sem dizer nada ao homem. Ele fica lá, dormindo ainda, sem saber que foi usado como objeto sexual. Nenhuma palavra lhe será dita para explicar nada, sem a casa, sem o casamento. Sem nada. Ele e Wanda são os objetos a serem defenestrados. Assim como em outro tempo foram Roza e o menino. Os cristãos, sejam aqueles durante a guerra, seja Anna, são indiferentes à dor do outro. O retrato que o filme trata dos cristãos é bem triste. Retrato ruim de ver, e creio que foi isso que esse país tão cristão não gostou de ver.
A grande personagem do filme é Wanda. Ética, culpada, buscando a verdade, desorientada, pois perdeu seus ideais. A que se sacrifica é ela. Anna só se sacrifica por si mesma. Anna é uma raposa-indiferente em pele de cordeiro. Sua pele\pêlo é a beleza branquinha. Ouvi dias atrás um ditado pela primeira vez: uma raposa perde o pêlo, mas não perde o vício. Anna é isso, uma raposa. No filme, todos os cristãos o são.

Trailer do filme

Andréa Brunetto é Psicóloga e Psicanalista, membro (AME) da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano, fundadora do Ágora Instituto Lacaniano, de Campo Grande. Autora de Psicanálise e educação: sobre Hefesto, Édipo e outros desamparados dos dias de hoje (UFMS, 2008). Escreve, publica e apresenta trabalhos na interface da psicanálise com outros saberes. Fundadora do blog http://andreabrunetto.blogspot.com.br/