de Tiago Sanches Nogueira
Em
sessão, um jovem cruelmente torturado por
seu
padrasto,
mostra-se aprisionado em uma ficção muito semelhante
àquela
apresentada em um filme que ele diz adorar. Trata-se de um filme
chamado Premature
(2014),
cujo título foi traduzido para o português
como “Precoce”.
Nele, o protagonista também adolescente, está pronto para entrar
para a faculdade e prestes a sair com a garota mais bonita da escola.
Em outras palavras,
está
prestes a enfrentar a entrada no mundo adulto que coloca em xeque
suas próprias insígnias
fálicas.
O
filme inicia com um sonho do rapaz, no qual ele transa com uma jovem
de três seios. No momento do ápice sexual com aquela que para ele
era uma mulher perfeita, o jovem desperta do sonho em pleno orgasmo e
se depara com sua cueca molhada de sêmen. Neste exato momento sua
mãe adentra ao quarto e flagra desconcertada o seu filho
completamente “gozado”.
A única
coisa que ela pode dizer a ele é:
Just
put those sheets in the laundry, honey
(“só
coloque
esses lençóis
para lavar, querido”).
A
cena que inicialmente parece
banal,
passa
a fazer sentido a
posteriori,
sobretudo
quando acompanhamos o desenrolar do dia do jovem. Enfrentando os
desafios de alguém marcado por uma sexualidade masculina típica
daquilo que no lunfardo argentino chama-se pollerudo1,
o
rapaz, além de humilhado pelos valentões,
é
também
intimidado pelas belas garotas da escola.
No
entanto, uma bela jovem que transpira sexualidade convida-o
para ir à
sua casa com o pretexto de estudar. A
moça
deseja transar com o garoto.
Contudo,
este encontro seria no mesmo dia em que o jovem combina com sua
melhor amiga de assistirem juntos a um tradicional concurso de
soletração. O garoto se vê diante de um dilema: sair com a garota
de reputação duvidosa, aquela que realizaria seus mais íntimos
desejos carnais; ou encontrar uma amiga pela qual ele nutre um
sentimento especial, uma amizade que se transformará,
posteriormente, em amor.
O
jovem decide escolher a “garota pra transar” e não a “garota
pra amar”. Ele vai até a casa dela e, sentado na cama de seu
quarto, sofre investidas da moça. O ponto que aqui nos chama atenção
é que o encontro com essa mulher, na verdade o encontro com o toque
desta mulher, produz uma ejaculação precoce no garoto. Um simples
toque em seu pênis leva-o imediatamente para a cena inicial do
filme, na qual o garoto “gozado” na própria cama, desperta deste
que agora descobrimos ser um sonho “realizado”. Novamente vemos a
mãe entrar no quarto e dizer a frase do início: “só coloque
esses lençóis para lavar, querido”.
A
cena será repetida infinitamente durante todo o filme. A vergonha
diante do olhar materno - este outro que o vê “gozado” - revela
que o sentido daquilo que será repetido intermitentemente apresenta
o caráter de uma cena traumática, na qual o encontro com o sexo
inicia e termina, prematuramente (eis o nome do filme), nos olhos do
Outro que o flagra.
Estamos
diante, portanto, de um desses filmes em que o personagem fica preso
no tempo, no qual a repetição do dia se dá em função de um
instante marcado pelo encontro com determinado acontecimento. Toda a
vez que o sujeito encontra com tal acontecimento, ele é lançado
automaticamente à um momento anterior, no qual o sentido é
ressignificado e, ao mesmo tempo, também colocado em questão devido
aos excessos provocados pela repetição.
Há
uma tradição de filmes que apresentam este tipo de narrativa:
“Feitiço do Tempo” (1993), “Meia-noite e um” (1993),
“Inferno na Estrada” (1997), “Efeito Borboleta” (2004),
“Contra o tempo” (2011) e até o blockbuster
“No limite do amanhã” (2014). Tais filmes são exemplos de
histórias em que seus protagonistas ficam presos em uma espécie de
looping
temporal. Todos os roteiros de tais filmes trazem consigo a marca da
dubiedade da experiência de repetição, na qual reconhece-se a
malignidade do aprisionamento em um tempo infinito, mas que também
produz intervenções cujos efeitos modificam a própria experiência
repetida.
Os
personagens em um primeiro momento vivenciam uma estranheza, na qual
não se reconhecem ou se reconhecem como loucos. Mais ainda, pensam
que estão em um sonho. Primeiro tempo marcado pela experiência de
ilusão e pela pergunta “o que está acontecendo comigo”? O
não-reconhecimento da própria experiência é seguido por um
momento de cálculo, no qual se percebe o instante que se repete.
Este segundo tempo promove um tipo de aprendizado - não sem
sofrimento - que permite ao sujeito realizar pequenas modificações
nas cenas que se repetem, já que descobre por tentativa e erro que
os objetos dispostos nestas cenas estão lá quase como se fossem
autômatos - objetos da ficção.
A
satisfação inicial causada por essas pequenas mudanças acionam no
sujeito uma sensação de liberdade que logo prescreve, pois
rapidamente ele descobre que tais modificações não impedem o
reencontro com aquilo que dispara o looping
temporal. Dá-se início a um momento de extrema angústia na qual a
inevitabilidade do encontro com o “acontecimento-gatilho” lança
o sujeito em uma passividade quase absoluta, na qual ele se vê
aprisionado.
Aqui
o
filme torna-se
mais interessante,
pois neste momento nos deparamos com a
estratégia
que
o
garoto utiliza
para
“sair
de cena” e voltar ao início da história.
Qual estratégia será essa? Produzir um reencontro com o
“acontecimento gatilho”,
que no
filme
está
associado ao ato de gozar. Comportamentos inadequados e bizarros como
o de masturbar-se na frente do diretor da escola, ou ser agredido na
região
genital de forma tão
intensa a ponto de lhe produzir um orgasmo - ambos realizados
intencionalmente com o objetivo de dar um reset
na história
–
apresentar-se-ão, ao mesmo tempo, como causa e efeito de suas
repetição
infernal.
Ao
colocarmos uma lupa sobre este
instante traumático
marcado por uma repetição
perpétua,
notamos que se
trata
de um paradoxo provocado por um excesso extremo de tensão.
Aprendemos com Freud que esse excesso produz formas de repetição.
Quantas vezes não presenciamos nas análises
que conduzimos a reiteração incessante de um tema que, além
de ter função
de elaboração
(recordar, repetir e elaborar), também
cumpre a função de escoar a tensão acumulada pelo impacto de
determinado estímulo
perceptivo (fonte de excitação).
Tal constatação
recupera a ideia de Zilberberg (2011) de que a repetição
é
a
confirmação
do esperado.
Nesses
casos, a repetição parece surgir como uma forma de proteção
contra a subtaneidade desta “alguma
coisa a advir”.
Se, para Freud, o princípio
de prazer é
uma
tendência
que opera para reduzir as excitações no aparelho psíquico,
a compulsão
à repetição
serve para dominar retroativamente as excitações que, na ocasião
de um trauma, fizeram efração no aparelho psíquico:
Quaisquer
excitações
provindas de fora que sejam suficientemente poderosas para atravessar
o escudo protetor. Parece-me que o conceito de trauma implica
necessariamente uma conexão desse tipo com uma ruptura numa barreira
sob outros aspectos eficazes contra os estímulos.
Um acontecimento como um trauma externo está
destinado
a provocar um distúrbio
em grande escala no funcionamento do organismo e a colocar em
movimento todas as medidas defensivas possíveis.
(FREUD, 1920/1976, p. 45)
Constatamos,
portanto, que a
repetição
cria um efeito de parada na progressão
da
narrativa do filme.
A entrada de algo novo dentro das próprias repetições do
personagem vão transformando
o sentido da repetição, que passa a ser a preparação para a
mudança,
o caminho sem surpresas para uma virada de impacto. Eis o ponto em
que um certo real da repetição pode ser sobrepor
à
realidade através do trabalho ativo do trauma (DUNKER, 2006).
Será
neste ponto fértil da repetição que o analista poderá operar
importantes transformações, permitindo que o sujeito traumatizado
possa repetir de maneira diferente.
1
“Filhinhos da mamãe”, um registro da sexualidade masculina
maravilhosamente descrito por Ricardo Estacolchic e Serio Rodríguez
em “Pollerudos
– Destinos en la Sexualidade Masculina” (2011).
Referências
Bibliográficas
Contra
o tempo (SOURCE
CODE).
Direção: Duncan Jones. Produção: Mark Gordon; Jordan Wynn;
Phillippe Rousselet. Estados Unidos, França e Canadá. Summit
Entertainment, 2011.
DUNKER,
C. I. L. A função terapêutica do real: trauma, ato e fantasia.
Pulsional.
Revista de psicanálise,
ano XIX, n. 186, junho/2006.
Efeito
Borboleta (The Butterfly Effect).
Direção: Eric Bress; J. Mackye Gruber. Produção: Anthony Rhulen;
Chris Bender; Ashton Kutcher; J.C. Spink; A. J. Dix. Estados Unidos,
New Line Cinema, 2004.
ESTACOLCHIC,
R & RODRÍGUEZ,
S. (2011) “Pollerudos
– Destinos
en la Sexualidade Masculina”
Buenos
Aires: Ed. de la Flor.
Feitiço
do Tempo (Groundhog
Day).
Direção: Harold Ramis. Produção de Trevor Albert e Harold Ramis.
Estados Unidos, Columbia Pictures, 1993.
FREUD,
S.
(1920). Além
do princípio
de prazer. In. Edição
Standard Brasileira das Obras Psicológicas
Completas de Sigmund Freud. Tradução
J. Salomão
vol. XVIII. Rio de Janeiro: Imago, 1976.
Inferno
na Estrada (Retroactive).
Direção: Louis Morneau. Produção: David Bixler; Brad Krevoy;
Michael Nadeau; Steven Stabler. Estados Unidos, Orion Pictures
Entertainment, 1997.
Meia-noite
e um (12:01).
Direção: Jack Sholder. Produção: Bob Degus; Jonathan Heap; Cindy
Hornickel. Estados Unidos, New Line Home Video, 1993.
No
limite do amanhã (Edge of Tomorrow).
Direção: Doug Liman. Produção: Erwin Stoff; Tom Lassaly et al.
Estados Unidos, Warner Bros, 2014.
PREMATURE.
Direção: Dan Beers. Produção: Aaron Ryder; Karen Lunder. Estados
Unidos, IFC Films, 2014.
ZILBERBERG,
C. Elementos
de semiótica tensiva. Tradução
de Ivã Lopes, Luiz Tatit e Waldir Beividas. São Paulo: Ateliê
Editorial, 2011.
Tiago
Sanches Nogueira é
Psicólogo,
Psicanalista, Doutor em Psicologia Clínica pela USP, Mestre em
Psicologia Clínica pela PUC-SP. Autor do livro "Ensaio sobre um
Infinito: Música e Psicanálise"; Músico-criador, autor do
Álbum Musical ESGRITOS: ROMANCE DE FORMAÇÃO e de trilhas sonoras
para teatro. Membro do Laboratório de Psicanálise, Sociedade e
Política USP. tiagosanchesnogueira@gmail.com
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