domingo, 14 de junho de 2020

PREMATURE - Ver-se gozado : trauma e repetição no filme de Dan Beers.



de Tiago Sanches Nogueira

Em sessão, um jovem cruelmente torturado por seu padrasto, mostra-se aprisionado em uma ficção muito semelhante àquela apresentada em um filme que ele diz adorar. Trata-se de um filme chamado Premature (2014), cujo título foi traduzido para o português como Precoce”. Nele, o protagonista também adolescente, está pronto para entrar para a faculdade e prestes a sair com a garota mais bonita da escola. Em outras palavras, está prestes a enfrentar a entrada no mundo adulto que coloca em xeque suas próprias insígnias fálicas.

O filme inicia com um sonho do rapaz, no qual ele transa com uma jovem de três seios. No momento do ápice sexual com aquela que para ele era uma mulher perfeita, o jovem desperta do sonho em pleno orgasmo e se depara com sua cueca molhada de sêmen. Neste exato momento sua mãe adentra ao quarto e flagra desconcertada o seu filho completamente “gozado. A única coisa que ela pode dizer a ele é: Just put those sheets in the laundry, honey (só coloque esses lençóis para lavar, querido).
A cena que inicialmente parece banal, passa a fazer sentido a posteriori, sobretudo quando acompanhamos o desenrolar do dia do jovem. Enfrentando os desafios de alguém marcado por uma sexualidade masculina típica daquilo que no lunfardo argentino chama-se pollerudo1, o rapaz, além de humilhado pelos valentões, é também intimidado pelas belas garotas da escola.
No entanto, uma bela jovem que transpira sexualidade convida-o para ir à sua casa com o pretexto de estudar. A moça deseja transar com o garoto. Contudo, este encontro seria no mesmo dia em que o jovem combina com sua melhor amiga de assistirem juntos a um tradicional concurso de soletração. O garoto se vê diante de um dilema: sair com a garota de reputação duvidosa, aquela que realizaria seus mais íntimos desejos carnais; ou encontrar uma amiga pela qual ele nutre um sentimento especial, uma amizade que se transformará, posteriormente, em amor.
O jovem decide escolher a “garota pra transar” e não a “garota pra amar”. Ele vai até a casa dela e, sentado na cama de seu quarto, sofre investidas da moça. O ponto que aqui nos chama atenção é que o encontro com essa mulher, na verdade o encontro com o toque desta mulher, produz uma ejaculação precoce no garoto. Um simples toque em seu pênis leva-o imediatamente para a cena inicial do filme, na qual o garoto “gozado” na própria cama, desperta deste que agora descobrimos ser um sonho “realizado”. Novamente vemos a mãe entrar no quarto e dizer a frase do início: “só coloque esses lençóis para lavar, querido”.
A cena será repetida infinitamente durante todo o filme. A vergonha diante do olhar materno - este outro que o vê “gozado” - revela que o sentido daquilo que será repetido intermitentemente apresenta o caráter de uma cena traumática, na qual o encontro com o sexo inicia e termina, prematuramente (eis o nome do filme), nos olhos do Outro que o flagra.
Estamos diante, portanto, de um desses filmes em que o personagem fica preso no tempo, no qual a repetição do dia se dá em função de um instante marcado pelo encontro com determinado acontecimento. Toda a vez que o sujeito encontra com tal acontecimento, ele é lançado automaticamente à um momento anterior, no qual o sentido é ressignificado e, ao mesmo tempo, também colocado em questão devido aos excessos provocados pela repetição.
Há uma tradição de filmes que apresentam este tipo de narrativa: “Feitiço do Tempo” (1993), “Meia-noite e um” (1993), “Inferno na Estrada” (1997), “Efeito Borboleta” (2004), “Contra o tempo” (2011) e até o blockbuster “No limite do amanhã” (2014). Tais filmes são exemplos de histórias em que seus protagonistas ficam presos em uma espécie de looping temporal. Todos os roteiros de tais filmes trazem consigo a marca da dubiedade da experiência de repetição, na qual reconhece-se a malignidade do aprisionamento em um tempo infinito, mas que também produz intervenções cujos efeitos modificam a própria experiência repetida.
Os personagens em um primeiro momento vivenciam uma estranheza, na qual não se reconhecem ou se reconhecem como loucos. Mais ainda, pensam que estão em um sonho. Primeiro tempo marcado pela experiência de ilusão e pela pergunta “o que está acontecendo comigo”? O não-reconhecimento da própria experiência é seguido por um momento de cálculo, no qual se percebe o instante que se repete. Este segundo tempo promove um tipo de aprendizado - não sem sofrimento - que permite ao sujeito realizar pequenas modificações nas cenas que se repetem, já que descobre por tentativa e erro que os objetos dispostos nestas cenas estão lá quase como se fossem autômatos - objetos da ficção.
A satisfação inicial causada por essas pequenas mudanças acionam no sujeito uma sensação de liberdade que logo prescreve, pois rapidamente ele descobre que tais modificações não impedem o reencontro com aquilo que dispara o looping temporal. Dá-se início a um momento de extrema angústia na qual a inevitabilidade do encontro com o “acontecimento-gatilho” lança o sujeito em uma passividade quase absoluta, na qual ele se vê aprisionado.
Aqui o filme torna-se mais interessante, pois neste momento nos deparamos com a estratégia que o garoto utiliza para “sair de cena” e voltar ao início da história. Qual estratégia será essa? Produzir um reencontro com o “acontecimento gatilho”, que no filme está associado ao ato de gozar. Comportamentos inadequados e bizarros como o de masturbar-se na frente do diretor da escola, ou ser agredido na região genital de forma tão intensa a ponto de lhe produzir um orgasmo - ambos realizados intencionalmente com o objetivo de dar um reset na história – apresentar-se-ão, ao mesmo tempo, como causa e efeito de suas repetição infernal.
Ao colocarmos uma lupa sobre este instante traumático marcado por uma repetição perpétua, notamos que se trata de um paradoxo provocado por um excesso extremo de tensão. Aprendemos com Freud que esse excesso produz formas de repetição. Quantas vezes não presenciamos nas análises que conduzimos a reiteração incessante de um tema que, além de ter função de elaboração (recordar, repetir e elaborar), também cumpre a função de escoar a tensão acumulada pelo impacto de determinado estímulo perceptivo (fonte de excitação). Tal constatação recupera a ideia de Zilberberg (2011) de que a repetição é a confirmação do esperado.
Nesses casos, a repetição parece surgir como uma forma de proteção contra a subtaneidade desta alguma coisa a advir. Se, para Freud, o princípio de prazer é uma tendência que opera para reduzir as excitações no aparelho psíquico, a compulsão à repetição serve para dominar retroativamente as excitações que, na ocasião de um trauma, fizeram efração no aparelho psíquico:
Quaisquer excitações provindas de fora que sejam suficientemente poderosas para atravessar o escudo protetor. Parece-me que o conceito de trauma implica necessariamente uma conexão desse tipo com uma ruptura numa barreira sob outros aspectos eficazes contra os estímulos. Um acontecimento como um trauma externo está destinado a provocar um distúrbio em grande escala no funcionamento do organismo e a colocar em movimento todas as medidas defensivas possíveis. (FREUD, 1920/1976, p. 45)  
Constatamos, portanto, que a repetição cria um efeito de parada na progressão da narrativa do filme. A entrada de algo novo dentro das próprias repetições do personagem vão transformando o sentido da repetição, que passa a ser a preparação para a mudança, o caminho sem surpresas para uma virada de impacto. Eis o ponto em que um certo real da repetição pode ser sobrepor à realidade através do trabalho ativo do trauma (DUNKER, 2006). Será neste ponto fértil da repetição que o analista poderá operar importantes transformações, permitindo que o sujeito traumatizado possa repetir de maneira diferente.
1 “Filhinhos da mamãe”, um registro da sexualidade masculina maravilhosamente descrito por Ricardo Estacolchic e Serio Rodríguez em “Pollerudos – Destinos en la Sexualidade Masculina” (2011).

Referências Bibliográficas
Contra o tempo (SOURCE CODE). Direção: Duncan Jones. Produção: Mark Gordon; Jordan Wynn; Phillippe Rousselet. Estados Unidos, França e Canadá. Summit Entertainment, 2011.
DUNKER, C. I. L. A função terapêutica do real: trauma, ato e fantasia. Pulsional. Revista de psicanálise, ano XIX, n. 186, junho/2006.
Efeito Borboleta (The Butterfly Effect). Direção: Eric Bress; J. Mackye Gruber. Produção: Anthony Rhulen; Chris Bender; Ashton Kutcher; J.C. Spink; A. J. Dix. Estados Unidos, New Line Cinema, 2004.
ESTACOLCHIC, R & RODRÍGUEZ, S. (2011) Pollerudos Destinos en la Sexualidade MasculinaBuenos Aires: Ed. de la Flor.
          Feitiço do Tempo (Groundhog Day). Direção: Harold Ramis. Produção de Trevor Albert e Harold Ramis. Estados Unidos, Columbia Pictures, 1993.
           FREUD, S. (1920). Além do princípio de prazer. In. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Tradução J. Salomão vol. XVIII. Rio de Janeiro: Imago, 1976.
Inferno na Estrada (Retroactive). Direção: Louis Morneau. Produção: David Bixler; Brad Krevoy; Michael Nadeau; Steven Stabler. Estados Unidos, Orion Pictures Entertainment, 1997.
Meia-noite e um (12:01). Direção: Jack Sholder. Produção: Bob Degus; Jonathan Heap; Cindy Hornickel. Estados Unidos, New Line Home Video, 1993.
No limite do amanhã (Edge of Tomorrow). Direção: Doug Liman. Produção: Erwin Stoff; Tom Lassaly et al. Estados Unidos, Warner Bros, 2014.
PREMATURE. Direção: Dan Beers. Produção: Aaron Ryder; Karen Lunder. Estados Unidos, IFC Films, 2014.
ZILBERBERG, C. Elementos de semiótica tensiva. Tradução de Ivã Lopes, Luiz Tatit e Waldir Beividas. São Paulo: Ateliê Editorial, 2011. 

Tiago Sanches Nogueira é Psicólogo, Psicanalista, Doutor em Psicologia Clínica pela USP, Mestre em Psicologia Clínica pela PUC-SP. Autor do livro "Ensaio sobre um Infinito: Música e Psicanálise"; Músico-criador, autor do Álbum Musical ESGRITOS: ROMANCE DE FORMAÇÃO e de trilhas sonoras para teatro. Membro do Laboratório de Psicanálise, Sociedade e Política USP. tiagosanchesnogueira@gmail.com

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