segunda-feira, 9 de março de 2015

BIRDMAN (OU A INESPERADA VIRTUDE DA IGNORÂNCIA)

de Nilson Perissé
De que falamos quando falamos de amor?” é uma questão proposta num livro de contos de autoria de Raymond Carver, escritor norte-americano falecido precocemente de câncer aos 50 anos. De certa forma, em torno dessa obra gira o filme “Birdman (ou a inesperada virtude da ignorância)”, do diretor mexicano Alejandro Gonzalez Inarritu, lançado em 2014.
De que falamos quando falamos de amor é uma pergunta que pode ter respostas distintas a partir do sujeito que a responde. Para os personagens de Birdman, amor parece estar associado a reconhecimento, ao olhar aprovador do Outro, olhar onipotente que dá sentido e pode legitimar uma existência. Riggan Thomson (Michael Keaton) é um ator hollywoodiano que, na década de 90, protagonizou três filmes blockbusters de um super-herói, o Homem-Pássaro do título. No protagonismo da franquia de sucesso, o ator ganhou seu passaporte para a fama e para o coração de milhares de espectadores que se apaixonaram pela trilogia. Ator e personagem se fundiram no imaginário social e, de certa forma, no imaginário de Riggan também. Tanto que, vinte anos depois, já velho e sem o physique du role apropriado para representar o herói, ele continua a ser atormentado pelo imaginário Birdman (que aqui bem representa sua divisão subjetiva) para participar de um quarto filme da série, ao invés de aventurar-se numa missão aparentemente suicida de reinventar-se como ator dramático na Broadway, numa peça adaptada, dirigida e protagonizada por ele (no caso, uma adaptação de “De que falamos quando falamos de amor?” de Raymond Carver). A tentação de voltar atrás e retomar um sucesso fácil nas telas não sai de sua cabeça ao longo do filme, mas, ironicamente, seus novos esforços de ator-escritor-diretor são apenas outra face de uma mesma busca - o reconhecimento de público e critica no circuito sofisticado do teatro novaiorquino. Mudam as identidades (ator de filmes de ação X ator dramático) e o outro (público de filmes-pipoca X público refinado do teatro), mas a busca é a mesma. Entre fugas alucinatórias nas quais se imagina com o poder de levitar, de projetar objetos contra a parede ou mesmo voar, Riggan quer ser amado - não apenas como ator legitimado pelo talento, mas também como pai, pelas vias de um tardio reconhecimento da filha Sam (Emma Stone), e como marido, através de fracassadas tentativas de retomar o casamento com a ex-mulher Sylvia (Amy Ryan).
Mas Riggan não está só. Lesley (Naomi Watts), uma das atrizes que participa de sua peça, segue a mesma trilha, vendo na possibilidade de pisar num palco da Broadway a aspiração maior. Ao longo da narrativa, porém, ela demonstra um certo estranhamento, como se a proximidade da realização de sua ambição profissional não trouxesse o contentamento esperado ou a fizesse perceber-se diante da nudez do seu próprio enigma (ainda não era isso, diria Lacan). Mike Shiner (Edward Norton), outro ator da peça, leva ainda mais longe a questão - impotente na vida real, tem uma ereção enquanto atua, da mesma forma que só se sente verdadeiramente vivo quando representa um papel diante da plateia (aqui metaforizada como o Outro ou o objeto olhar).
Não é apenas com esses personagens que Birdman brinca com a tentação fácil do prestígio, do poder, do dinheiro e do amor dos fãs. Num divertido, porém melancólico momento do filme, Riggan tenta substituir um dos atores de sua peça por algum artista talentoso, porém todos de quem lembra estão ocupados com projetos blockbusters: Woody Harrelson está filmando a franquia “Jogos Vorazes”, Michael Fassbender está ocupado com os filmes dos “X-Men”. Ironicamente, mesmo os atores reais de Birdman têm currículos semelhantes: Naomi Watts atuou em King Kong, Emma Stone em Homem-Aranha, Edward Norton foi Hulk e o próprio Michael Keaton protagonizou dois filmes de Batman.
A psicanálise nos alerta que a constituição subjetiva não se dá apenas por olhar o outro (espelhar-nos num pai, num irmão, ou numa figura representativa de nossas relações), mas também pelo olhar do outro. Lacan lembra que tornar-se sujeito passa ainda pelo momento em que a criança, mirando-se no espelho, volta-se para a mãe e a olha como que pedindo que aquela autentique sua descoberta. Será no reconhecimento da mãe, que reagirá dizendo algo como “Sim, é você, Pedro”, que confirmará para a criança a ideia do “sou eu”. Lacan dirá: “É desse lugar que depende o fato de que tenha direito ou defesa de se chamar Pedro” (O Seminário: Livro I, pág. 97).
A necessidade de ser alguém para alguém, de ser legitimado, de ter uma identidade reconhecida (segundo os analistas da obra de Raymond Carver, temáticas presentes nos textos deste autor) perpassa toda a tessitura deste Birdman, porém com um enfoque realista. Não se trata aqui dos tradicionais filmes nos quais o personagem central luta para provar seu talento e ao final é reconhecido e aclamado por uma crítica severa e exigente, porém justa. Em Birdman, o valor da adaptação teatral que estava sendo encenada não será medido por suas próprias virtudes, mas pelo olhar que lhe será depositado através de uma poderosa crítica do caderno cultural do New York Times, Tabitha Dickinson (Lindsay Duncan). Esta personagem secundária tem apenas uma pequena participação no filme, mas oferece importantes elementos de reflexão, pois assemelha-se a um supereu autoritário, exigente, cruel, impossível de ser saciado, motivada que ela está por razões diferentes de um critério de justiça – no fundo, guiada por seus próprios preconceitos. Também é significativo que a personagem não passe de uma mulher envelhecida, solitária e amarga, feia como “alguém que lambeu o rabo de uma cabra” (conforme comparação feita no filme). Essa crítica tem na história – como o supereu na vida – o poder de erguer ou demolir a produção artística alheia, mas não se sustenta como autoridade detentora de uma verdade, apenas como semblante instituído pela via simbólica de um jornal de prestígio. Birdman mostra que, ao fim e ao cabo, o Outro que me destrói ou me legitima não é autoridade de nada, apenas alguém que eu, por minhas próprias razões, legitimo nesse lugar e dou consistência.
Riggan Thomson, então, se dá conta do vazio e da inconsistência desse reconhecimento. Em momentos nos quais recapitula seu passado, lembra da fase em que foi aclamado, rico e invejado – sintomaticamente, uma fase na qual, esvaziado de motivação e desejo de viver, tentou o suicídio por afogamento. Ele identifica que, nos momentos em que parecia que havia conquistado tudo, seu casamento ia mal, o papel de pai era insípido e o vazio era tamponado com a bebida.
Porém, elaborar e compreender seu percurso através desse prisma não lhe traz iluminação nem paz. Ao contrário, faz parecer – como diz o subtítulo do filme - que a ignorância é, de fato, uma virtude inesperada. Riggan não pode voltar ao passado e recuperar o casamento desfeito nem preencher as lacunas de convivência com a filha cujo crescimento não acompanhou. Projetar-se no vazio do alto de um prédio ou da janela de seu quarto de hospital parece ser o símbolo máximo da dificuldade em lidar com o próprio desencanto, e ainda que possa não fazê-lo realmente, ele assim alucina. Incapaz de inventar sua própria solução, ele busca saídas na bala de uma arma ou na inveja pelo voo alienado e anônimo de uma ave em meio ao bando.

O desfecho da trama é ambíguo e sujeito a múltiplas compreensões. Porém, mais importante que encontrar uma interpretação genial e definitiva é contemplar Riggan como qualquer homem contemporâneo perplexo diante de seus impasses. Mais que um homem dividido entre um personagem imaginário (Birdman) e um personagem atormentado pelo Real (o personagem do texto de Raymond Carver a quem dava vida na peça): Riggan Thomson é cada um de nós que se procura e se perde em equivocadas buscas de poder, reconhecimento, popularidade e prestígio – ou naquilo que falamos quando falamos de amor.
Trailer Oficial do filme

Nilson Perissé é sujeito em permanente formação psicanalítica. É autor da dissertação de mestrado “As pessoas já entram se sentindo menores: impactos da terceirização na subjetividade do trabalhador”. No Cinefreudiano, publicou o artigo “O Desejo em Woody Allen” e resenhou o filme “Freud, Além da Alma” em três partes. Para correspondência: nilsonperisse@hotmail.com

domingo, 1 de março de 2015

KIESLOWSKI - “HONRARÁS PAI E MÃE” : O que é um pai? Sobre a encarnação da lei no desejo


DECÁLOGO IV  -  KRZYSZTOF KIESLOWSKI
de  Silvia Helena Facó Amoedo


A arte e suas manifestações são entrelinhas do saber psicanalítico. Desde sua origem, a psicanálise se articula com a música, a dança, a pintura, a escultura, o teatro, literatura e o cinema, a sétima arte.
Para Freud, “os escritores criativos” são precursores e aliados. Citando Shakespeare ele ressalta “que há mais coisas entre o céu e a terra do que supõe nossa vã filosofia.” Os textos literários dão oportunidade de validar o método analítico. De Sófocles a Goethe, Freud encontrou uma antecipação da descoberta do inconsciente e, portanto, para ele, os textos são passíveis de interpretação.
Por sua vez, Lacan inverte a posição freudiana: os trabalhos artísticos não seriam produtos do inconsciente, não seriam passíveis de interpretação. Lacan observa que “A única vantagem que o psicanalista tem o direito de tirar de sua posição, sendo-lhe esta reconhecida como tal, é de se lembrar, com Freud, que em sua matéria o artista sempre o precede”. E acrescenta: “O artista desbrava o caminho, revela saber sem mim aquilo que ensino”.
A psicanálise é contemporânea do cinema. Em 28 de dezembro de 1895, no Salão Grand Café, em Paris, os Irmãos Lumière fizeram uma apresentação pública, com uma série de dez filmes, inaugurando, com esse ato, a sétima arte, o cinema. Em 1895, Freud escrevia seu artigo As neuropsicoses de defesa, assim como os Estudos sobre a histeria, textos precurssores da fantasia e do complexo de Édipo.
Foi através da correspondência com Fliess – durante o período de 1887 a 1902 – que Freud, em 1897, que Freud escreveu e revelou a descoberta fundamental da psicanálise, o complexo de Édipo, quando descobriu em si mesmo os sentimentos de amor pela mãe e ciúme do pai, ficando convencido de que essa era uma característica humana, que era um acontecimento universal da infância. Conforme suas próprias palavras, a lenda grega capta uma compulsão que toda pessoa reconhece em si mesma, porque cada pessoa da plateia foi, um dia, “um Édipo em potencial na fantasia, e cada qual recua, horrorizada, diante da realização de sonho ali transposta para a realidade, com toda a carga de recalcamento que separa seu estado infantil do seu estado atual” 1.
No período do nascimento do cinema, Freud estava às voltas com a questão das neuroses. Qual a causa das neuroses? Ao procurar o trauma real como causa dos sintomas histéricos, Freud encontrou o trauma encenado de fantasias impregnadas de desejos que apontavam para a existência do complexo de Édipo, e não fatos reais. Ele concluiu, com isso, que o real não passava de uma ficção. Substituiu, então, a realidade histórica do trauma pela fantasia, asseverando que “as fantasias possuem realidade psíquica, em contraste com a realidade material, e gradualmente aprendemos a entender que, no mundo das neuroses, a realidade psíquica é a realidade decisiva” 2.
Tal como a tela da fantasia, o cinema é como um quadro que vem colocar-se no enquadramento de uma janela através do qual olhamos o mundo. Sentimos, através da tela, um alto grau de relaxamento da censura, o que nos permite adentrar em nossos próprios enigmas e desejos.
Para tratar da questão “O que é um pai? Sobre a encarnação da lei no desejo”, privilegiei a sequencia da narrativa escrita, os diálogos, o movimento das palavras, os silêncios e as interrupções.
Advertida da traição – própria da tradução – das legendas infiéis ao texto falado, dos cortes, das palavras quebradas, das reticências, busquei interrogar as palavras: o que isso quer dizer? E, para isso dizer outra coisa, que não a mesma, procurei apreender o não dito.
Abre-se a tela. A música faz sua entrada capturando os nossos sentidos. O tom é sombrio.
Os sujeitos se revezam em seu deslocamento de um lugar para outro, mas o objeto situa-se em outro lugar, em outra cena. Um homem, Michel. Uma mulher, Anka. Um pai, Michel. Uma filha, Anka.
Junto a um passaporte, um bilhete de avião e outros objetos, um envelope escrito com a letra de Michel: “Abrir depois da minha morte”. O antes da morte é a vida. Anka e Michel, um homem e uma mulher, comemoram a páscoa num tom de cumplicidade. Nascimento de quê? Passaporte para onde?
O telefone toca para Anka. Michel escuta por meio da extensão. O que ele quer escutar?
Na cena seguinte, durante a despedida do pai, no aeroporto, Anka, a filha, depara com um problema de visão quando vê o avião a certa distância... um pontinho preto. Um obscuro ponto de vista? O que ela não pode ver? Procura um especialista. No exame sente dificuldade de ler a palavra “pai”, que sugere a reposta e remete ao enigma da carta. O que é um pai?
Cortar ou não o envelope que guarda um segredo? Um impasse. Ela corta. Dentro do envelope, outro envelope: “Para minha filha, Anka”, escrito com a letra da mãe. O que re-vela a carta? Anka, surpreende-se ao revê-la, vê a cena que sabe sem saber, a outra cena, o inconsciente.
No texto inspirado no conto “A carta roubada”, de Edgar Allan Poe, Lacan trata da escrita de uma carta que não requer a leitura de sua mensagem para alcançar o destino que a aguarda desde o tempo de sua escritura. O sujeito se escreve entre as letras que o produz, na mensagem que vem do Outro.
Trata-se de um conto policial. Um certo documento de extrema importância foi roubado dos aposentos reais. O documento em questão – uma carta – que tinha sido recebida pela rainha. Para esconder o documento do rei, a rainha colocou a carta rapidamente sobre o tampo da mesa, virada para baixo, o que não despertou atenção. Foi nesse momento que ministro D. entrou e percebeu o desarvoramento da rainha. O ministro trocou, displicentemente, a carta embaraçante por outra, cujo aspecto se assemelhava ao da primeira. A rainha percebe, mas, para resguardar sua segurança e a honra diante do rei, nada pode fazer. Ela sabe que o ministro detém a carta e, com ela, o poder.
O inspetor de polícia procura o detetive Auguste Dupin para ajudá-lo a desvendar o enigma que envolve a carta. Explica a Dupin que foram feitas as mais minuciosas inspeções na casa do ministro e a carta não foi encontrada pela polícia, portanto, não estava em poder do ministro.
Dupin aceita o desafia e resolve o enigma, o que deixa o inspetor estupefato. Como conseguiu? Dupin conta que foi à casa do ministro e examinou o recinto. Deparou com um porta-cartas bem à vista de todos. Ele conclui que estava diante do que procurava. Dupin deixou, propositalmente, sua tabaqueira sobre a mesa para buscá-la no dia seguinte, apoderar-se da carta e substituí-la por outra, escrita com sua letra, com a seguinte mensagem: “Um desígnio tão funesto. Se não é digno de Atreu, é digno de Tiestes” 3. O ministro não tem mais a posse da carta.
O inspetor pede, então, a Dupin que lhe explique como desvendou o enigma. Dupin explica que, tendo já tomado conhecimento do caso e conhecendo o ministro como uma pessoa esperta, sabia que ele não esconderia a carta em um lugar onde a polícia pudesse encontrar, mas, antes, a deixaria à vista de todos, para confundir os investigadores.
Que se depreende do conto? Três olhares: o primeiro, que nada vê: o rei e a polícia; o segundo, um olhar que vê que o primeiro nada vê e se engana por ver encoberto o que ele oculta: a rainha e o ministro; o terceiro, o que vê nos dois olhares, que deixam descoberto o que é para esconder, para que disso qualquer um se apodere: o ministro e Dupin.
Com o desejo de saber, Anka vasculha os objetos da mãe. Encontra uma foto de dois casais, envelopes em branco... Retira um envelope e escreve com a letra da mãe: “Para minha filha, Anka”. Mãe e filha, a mesma letra, uma nova inscrição.
Nesse ínterim, um amigo do pai, Adam, vem buscar uns desenhos. Anka indaga o amigo sobre o que ele sabe sobre sua mãe. “Era intuitiva igual a você” – diz ele. “Acha que ela poderia ter um segredo?” – ela pergunta. Adam responde: “Ela teria escrito uma carta, ou...”
O pai retorna. Encontra, inesperadamente, com a filha usando óculos. “Há algo errado, o que há?” pergunta o pai. Anka, para enxergar o que não vê, tira os óculos e diz: “Minha querida filhinha”. “Como?” – pergunta o pai.
Minha querida filhinha. Não sei como será quando ler esta carta. Deve ser uma mulher bem crescida e o Michel já deve estar morto. Quando escrevi isto, você ainda era um bebê. Só te vi uma vez. Há uma coisa importante que tenho que te dizer: Michel não é seu pai. Mas não importa muito quem seja o seu pai. Um momento de estupidez, negligência e distração. Sei que Michel vai te amar como filha. Estou pensando no momento em que ler esta carta. Tem o cabelo preto, não tem? Tem mãos finas e um pescoço delicado... E gostaria tanto de...”
Reticências... deixam entrever uma continuidade, não encerram, tal como um ponto final. A palavra é reticente, há sempre uma palavra a mais que não alcança o dito do sujeito... que insiste em dizer.
Realidade ou fantasia? Pouco importa. A verdadeira realidade é a ficção, a realidade psíquica. A partir do momento em que surge, a carta desempenha um papel essencial de mediação, muda pai e filha em presença. E, nesse sentido, é um ato que faz existir o que não existia antes. Quando Anka revela o conteúdo da carta ao pai, este reage dando-lhe um tapa no rosto. A reação do pai re-vela a dimensão do texto, a verdade ordenada de ficção.
Algo se quebra entre os dois. O pai expressa isso quando, em casa, quebra uma porta de vidro. Na sequência, Anka procura o namorado para casar, querendo admitir que seu pai não era seu pai. Mas, o que é um pai? Aqui, não fica explícita, para Hanka, a dimensão do Nome-do-Pai, isto é, a função simbólica paterna. O pai como um lugar onde se articula a lei, que é “port(a)dor” da ameaça de castração, além da ausência ou da presença da mãe.
Anka encontra com o pai no elevador. Entreolham-se. No terceiro andar, ela diz: “Esse é nosso andar”. Ele ignora, pede desculpas e a abraça. Nesse momento, os dois são surpreendidos pelo olhar de um terceiro, de um senhor que entra no elevador. Tal como o ministro e Dupin, eles deixam descoberto o que é para esconder. Esse é o andar deles...
Descem até o porão, onde estão os objetos da mãe. O pai mostra a foto dos dois casais e pergunta à filha se ela reconhece sua mãe. Aponta para a foto e observa: “Um deles pode ser seu pai". A filha pergunta se ele sabia, e ele responde que sim, que supunha. “Desde quando você sabe?” – insiste a filha. Ele responde que nunca soube com certeza, que apenas desconfiava. Ela diz, então, que foi enganada e que ele devia ter-lhe contado. “Nunca dei importância. Você sempre foi minha filha” – diz o pai.
Destaco estas duas falas: “Um deles pode ser seu pai" e “Nunca dei importância. Você sempre foi minha filha.” A partir desse momento, o pai intervém com o registro da lei – o registro do simbólico.
Segundo relata o pai, ele adiou mostrar a carta, num primeiro momento porque Anka era muito pequena – cedo demais. Depois, porque já era grande – tarde demais. Então ele colocou a carta no envelope amarelo. E acrescenta: “Pensei que as coisas continuariam iguais entre nós.” “Mas você está mentindo, está, sim” – insiste a filha. O que se passou nesse ínterim? Teria sido o futuro anterior?
O vidro quebrado entre a filha e o pai. O pai diz que foi o vento, a filha olha... “Por que eu li a carta? Li porque você quis” – diz Anka. Conta que a primeira vez que viu a carta foi no dia da mudança, acidentalmente, quando caíram papéis de uma das pastas do pai. Na ocasião, ela tinha 16 anos. Então, ela colocou a carta outra vez na pasta, mas já sabia que ela existia. Foi muito excitante, no início, saber que havia alguma coisa que ela só poderia saber depois da morte do pai.
Anka faz revelações de maneira reticente, de forma imprecisa. Ela conta ao pai que notou que ele tirou a carta quando foi embora e, que, de propósito, nessa última viagem, não a levou. Que andou três dias com ela e acabou abrindo-a. Pergunta se alguma vez o pai a leu e ele responde que não.
Ler a carta, na verdade” – diz Anka – “não foi assim tão exaustivo”. No momento surgiu-lhe a lembrança de um momento anterior e ela disse: “Pensem quando dizem as coisas que dizem, pensem no sentido que está implícito.” E, em seguida, ela perguntou ao pai se ele não queria saber o sentido implícito. O sentido implícito é o que ela sentiu. Acrescenta que adivinhou as palavras daquela carta há muitos anos, quando teve seu primeiro namorado. Sabia que estava decepcionando alguém, mas não conseguia perceber que esse alguém era o pai. Diz, ainda, que continuou à procura de outra pessoa, mas que quando era tocada, pensava nas mãos do pai. Enfim, que quando estava perto de alguém, não estava realmente com essa pessoa, mas... “Como vou te chamar? Não sei”.
O nome que ela sabe sem saber que sabe é o Nome-do-Pai. O sentido implícito, evocado pelo recurso à palavra, que fala, quer o sujeito o ouça quer ou não, com seu ouvido, fale ou não com sua voz. É por uma anterioridade lógica, não cronológica, a qualquer despertar do significado que o sujeito sabe sem saber, tal como no conto de Poe.
O pai aproxima a mão do corpo da filha, sem, no entanto, tocá-la. Cobre o corpo da filha. Ela pergunta: “De quem tem medo: de mim ou de você?. Não há razão para ter medo, vou me casar. Sempre me senti culpada na cama”. E observa: “você mentiu quando disse que não sentia isso”. O pai diz que não tem o direito de proibi-la de nada e que o modo como um pai sente ciúmes da filha seria um ciúme normal, tal como um homem sente ciúmes de uma mulher. Nenhum pai gosta que sua filha comece a dormir com um homem.
Na relação com o Outro há um engodo, um nó, que se chama Édipo, um desejo que é desejo do Outro, articulado assim: “tu não desejarás aquela que foi meu desejo”. O que acontece com o desfecho do complexo de Édipo na mulher? O menino se identifica com o pai como possuidor do falo, e a menina reconhece o homem como aquele que possui o falo. Ela, a mulher, não precisa se identificar ao pai para obter, como o menino, as insígnias da virilidade. Ela sabe onde deve ir buscá-las – do lado do pai – e vai em direção àquele que as tem. A feminilidade tem sempre essa dimensão de álibi.
O pai revela que costumava ir embora, passar a noite fora deixando-a sozinha porque queria que alguma coisa acontecesse, alguma coisa irreversível. A filha diz que por isso, no passado tinha abortado, pois não queria que o pai dissesse: ”Tudo bem”.
A filha diz ao pai que ele não se casou de novo para esperá-la. Tira a roupa e convoca Michel: “Eu não sou filha, sou uma mulher. Quer me tocar?” O pai, tomado pela angústia, cobre o corpo da filha e a abraça, sem querer possuir o objeto do desejo e da lei. Aqui, o pai encarna a lei no desejo.
Lacan ilustra o fenômeno da angústia com o exemplo princeps do Édipo, no qual o objeto irredutível é da ordem da imagem. Édipo foi aquele que possuiu o objeto do desejo e da lei, mas deu um passo a mais: ele viu o que fez. O que ele fez resultou em que, no instante seguinte, ele visse seus próprios olhos no chão. Por ter arrancado os olhos, ele perdeu a visão; no entanto não deixou de vê-los, “de vê-los como tais, como o objeto-causa enfim desvelado da concupiscência derradeira, suprema, não culpada, mas fora dos limites – a de ter querido saber” 4. O momento da angústia fica visível nessa imagem, na visão impossível que ameaça: os próprios olhos destacados no chão. Na angústia, portanto, o sujeito está implicado no mais íntimo de si mesmo.
Por que você queria que eu lesse aquela carta – pergunta a filha? “Eu queria o impossível” – responde o pai. Diferentemente do destino da carta roubada, de um saber que não se sabe, Édipo viu as cartas na mesa. E leu. Desvendou o enigma.
Hanka diz ao pai que não leu a carta, nem sequer abriu-a. Que o que disse no aeroporto foi ela quem escreveu. Tal como em A carta roubada, “Um desígnio tão funesto. Se não é digno de Atreu, é digno de Tiestes”. Hanka queima a carta na presença do pai, deixando apenas uma cortina de fumaça. Dessa forma, resta a mensagem implícita: onde há fumaça há fogo.
Sobre a encarnação da lei do desejo, são necessárias as funções do pai e da mãe. Destaco: funções.
Da função da mãe, segundo Lacan, na medida em que seus cuidados trazem a marca de um interesse particularizado, nem que seja por intermédio de suas próprias faltas. No filme, ficam claros a função materna e o interesse particularizado. Tenha ou não acontecido, pouco importa; o importante é que tenha sido falado. Do função do pai, na medida em que seu nome é vetor de uma encarnação da Lei no desejo.
O que isso quer dizer? Com o ato de queimar a carta, pai e filha, suspendem as certezas. As últimas miragens se consomem num olhar que encobre o que oculta... “eu gostaria de te dizer uma coisa muito importante. Michel não é...”

[1 FREUD, 1986, p. 273).
[2] (FREUD, 1917 [1916-1917], p. 430).
[3] “Um projeto tão funesto, se não é digno de Atreu, é digno de Tiestes”. Atreu foi um rei lendário de Micenas, que, com o auxilio de seu irmão Tiestes, degolou seu outro irmão, Trisipo. Tiestes, mais tarde, tornou-se amante da esposa de Atreu e procurou tomar-lhe o trono. Após ser exilado, voltou em busca de perdão. Foi bem recebido, mas durante o banquete Atreu mandou servi-lhe a carne dos próprios filhos de Tiestes, Tântalo e Plístenes.”
[4] LACAN, 1962-1963, p. 181.

Filme Legendado
Link:  https://www.youtube.com/watch?v=lB2NeAX9u2E

Silvia Helena Facó Amoedo é Psicanalista. Membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano – Brasil / Fórum Natal. Mestre em Psicologia pela Universidade Federal do Ceará.