Bacurau (2019),
de Kleber Mendonça e Juliano Dornelles pode ser visto como um filme
previsível sobre a violência, particularmente no Brasil profundo do
sertão onde o Estado só chega em nome da corrupção.
Um nordeastern que
reforça o preconceito de que nosso inimigo fala inglês, que o sul
usa o nordeste para empreender sua miséria em estrutura de vídeo
game, que a pobreza traz necessariamente violência e que todos os
políticos são corruptos. Um filme que usa a paratopia, baseada no
fato de que o enredo se passa no futuro, apenas para mostrar como o
tempo não passa e que no fundo repetimos padrões do cangaço, da
ditadura militar, da escravidão e do colonialismo. Resultado: em vez
de recriar um presente a partir da sua exageração no futuro, como
em Terra
em Transe,
por exemplo, estamos apenas mitificando o presente a partir da
alegorização do passado.
O
ponto mais inaceitável de Bacurau é
que ele consagra a moral da vingança e do ressentimento como única
alternativa contra um estado de opressão e anomia, onde a vida vale
pouco e a morte se contabiliza em gotas de gozo. Violência contra
violência gera mais violência, mais polarização e no fundo
sanciona a lei do mais forte, que supostamente queríamos reverter.
Há uma teoria da transformação em jogo aqui: eu “viro” meu
inimigo ao agir como ele age. Assim fazendo, perco toda a razão pois
sanciono a lei proposta por ele, a lei da guerra. O inimigo vence
quando me faz trair a razão emancipatória, baseada na organização
do conflito pela palavra e pelas instituições civilizatórias de
educação, urbanidade e civilidade. Por isso o filme repete o que há
de pior na trilogia da qual faz parte. Tal como em O
som ao redor (2013),
em Bacurau nos
sentimos presos às estruturas latifundiárias e sua retórica da
transgressão libertadora. Tal como em Aquarius (2016),
aqui nos percebemos imersos em um sistema da favorecimentos encoberto
pelo governo onde a única saída é a sobrevalorização defensiva
dos particulares: meu corpo, minha casa, minha família, minha história.
Tudo
verdade… mas nem toda verdade.
Tudo
realidade… mas com um traço de Real.
A
chave para uma segunda leitura de Bacurau se
encontrará na peça Casa
Submersa,
dirigida por Kiko Marques, com a Velha Companhia, em cartaz no Sesc
Pompéia em São Paulo. Também aqui encontramos o fechamento de uma
trilogia. Iniciada com Cais
ou Da indiferença das embarcações (2012),
que trata do amor interrompido pela emergência do Estado Novo, e
seguida por Sinthia (2016)
que trata do retorno do filho para a casa onde, para uma mãe que
sempre quis ter uma menina agora encontrará seu filho tornado
mulher. A trilogia realiza uma tematização transversal da política,
primeiro com a intrusão de Vargas atrapalhando o grande amor de um
casal, depois com a Ditadura Militar oprimindo o amor de um filho por
sua mãe e agora, em Casa
Submersa (2019),
com a degradação de uma família à partir do assassinato do pai no
contexto da corrupção política emergente. A protagonista Maíra
vive um conjunto de efeitos pós-traumáticos, composto por
dissociações, rupturas de memória, despersonalizações e
desintegração de experiências de satisfação corporal, que é
remetido ao passado violento de sua própria família – um passado
que não cessa de não passar e que se reatualiza nas diversas
figuras da incompreensão de si mesma. Tudo acontece como se essas
irrupções sintomáticas, inclusive agressões e autoagressões,
fossem uma espécie de patologia da memória, símbolos que
esqueceram sua função rememorativa e sobretudo angústias que assim
colocadas possuem pequena força transformativa.
Registro
de Casa
Submersa,
nova montagem da Velha Companhia, dirigida por Kiko Marques (Nelson
Kao/Divulgação).
Aqui
nos lembramos das teses de Moisés
e a religião monoteísta1,
onde Freud postula que o trauma gera dois tipos de consequências.
Os efeitos positivos são aqueles nos quais repetimos o evento
traumático, fragmentando e retendo suas imagens e afetos coligados.
Surgem pesadelos, acessos de angústia, bloqueios de memória e
intrusão de imagens violentas, que, em seu conjunto, são
reatualizações do ocorrido. Já os efeitos negativos do trauma são
mais perigosos justamente porque mais difíceis de localizar. Eles
aparecem como irrupções inexplicáveis de ódio e violência,
reações de evitação e indiferença, que efetivam uma espécie de
esterilização da palavra, trazendo desalento, desesperança e
suspensão do laço com o outro. Se os efeitos positivos prolongam o
trauma criando monumentos desconhecidos, os efeitos negativos
transmitem-se pelo silêncio, como que a reproduzir um ato que nunca
se realizou. As duas propriedades do trauma frequentemente se juntam
para efetivar o que se poderia chamar de potência trágica da
experiência traumática. Ou seja, ao negar e ao fugir do trauma
fazemos acontecer de novo aquilo que mais queríamos evitar, assim
como o jovem Édipo que foge de Corinto para proteger seus pais
(adotivos) e acaba encontrando e matando seu pai (biológico, Laio),
na encruzilhada de três fronteiras.
Casa
Submersa é
parte de uma grande alegoria da água, que aparece como metáfora
para o esquecimento, para a desaparição dos corpos e para o desejo
desesperado de escapar da asfixia e encontrar ar para respirar. Aqui
está o escafandrista que passa, como o coro nas tragédias antigas,
murmurando, sofregamente, a verdade que não conseguimos apreender.
Já Bacurau é
parte da alegoria da seca. Metonímia do pequeno Brasil, formado por
comunidades isoladas, natural e artificialmente: sem internet, sem
lugar no mapa, sem a proteção o Estado, sem água, que tem que vir
de fora. Aqui surge Lunga, o protagonista paratópico, meio curinga
meio trickster,
meio homem meio mulher, meio criança meio adulto, parte da
comunidade, mas que vive fora dela.
Walter
Benjamin definia a alegoria como a “facies hipocrática
da protopaisagem da história”2. Facies
hipocrática é
uma expressão que encontramos na medicina de Hipócrates para
designar a cara típica que um paciente faz de tal maneira que, a
partir de então, sabemos que não há mais cura possível e que a
morte virá inexoravelmente. É como se alegoria nos permitisse ver,
ainda que por um instante determinado, a paisagem completa da
história, nos conferindo o distanciamento necessário para
aprendê-la, do ponto de vista da totalidade, como uma unidade, mas
ao preço de nada podermos fazer para mudá-la. Ora, esse instante é
uma espécie de tratamento para o trauma. Ele permite realizar a
perda, abrindo ao processo de luto, nos fazendo reconhecer o que
realmente aconteceu e autorizando a experiência do acontecido. Ao
mesmo tempo, permite introduzir a resposta que faltou ao trauma no
momento de seu ocorrido, ainda que, e principalmente como uma
resposta ficcional. Ou seja, é na conjectura criada por uma nova
forma de linguagem, neste caso o cinema e o teatro, que podemos
inventar o
que poderia ter sido para
que hoje não continuarmos a ser obrigatoriamente
o que somos.
Chegamos
assim ao momento em que Freud e Benjamin se encontram para enfrentar
o nosso problema brasileiro de última hora: como enfrentar a
violência sem gerar mais violência? Como retratar e nomear a
violência sem usar a linguagem reificada e consagrada da
estetização a violência. Como não repetir com a estética da
violência o que um dia fizemos com a estética da fome? A questão
se desdobra para todas nossas maiores contradições sociais:
pobreza, racismo, opressão de gênero, segregação cultural e
social. A teoria freudiana do trauma é enunciada em um texto
conhecido por realizar uma inversão fundamental na teoria
psicanalítica da identidade: não é a família que vem primeiro e
depois aparecem os estrangeiros. No início está o estrangeiro,
o Unheimlich3,
o corpo estranho, o infamiliar. A família é a sutura para essa
indeterminação primária. A tese de que Moisés era egípcio e não
judeu sintetiza essa teoria.
A
teoria benjaminiana da alegoria se dá no contexto de uma pesquisa
sobre a violência. Há a violência da transgressão das leis (o
crime por exemplo), mas há também a violência daqueles que
instituem, aplicam e manipulam as leis administrando suas exceções.
Podemos caracterizar essa segunda forma de violência como uma
alternância calculada entre, por um lado, a mão pesada que pune,
mata e destrói em nome da lei entendida como purificação e ordem,
e por outro, a mão que oculta, protege e prestidigita, tipicamente
em favor dos poderosos. Por isso Benjamin se pergunta se não
haveria uma terceira forma de violência, capaz de suspender a
inversão simples entre violência
de Estado e violência
contra o Estado.
Esse terceiro tipo de violência ele nomeia violência
divina.
Nela uma margem não se conecta com a outra e a divisão entre
familiar e estrangeiro é suspensa, ainda que por um instante. Para
entender a violência divina é preciso conectá-la com a teoria da
alegoria. Ou seja, ela é uma violência posta em estrutura de
ficção, não é uma violência na realidade, muito menos a
legitimação da violência realística que já está em curso.
Trata-se uma violência Real, em sentido lacaniano, que permite
destruir e negar produtivamente os dualismos que operam na
constituição simbólico-imaginária de nossa realidade. A
violência Real não é traumática no mesmo sentido da violência
que viola corpos e famílias, que impõe rupturas e supressões na
história. Ela é a violência que advém da descoberta do
estrangeiro dentro de si mesmo. Ela perturba a identidade entre o
trauma e seu retorno convidando à inserção de um fragmento de
reparação ou de suplemento na experiência. Por isso seu traço
semiológico de reconhecimento sinaliza a insegurança ontológica
na identidade dos egos e a indeterminação na relação de
propriedade dos entes. O que o trauma da morte violenta de alguém
cria é a identidade entre as duas coisas, forçando a identificação
entre o trauma realístico e o trauma Real. Por isso sua cura
depende de como conseguimos separar as duas coisas que estão
soldadas, por exemplo, na mesma imagem. Inversamente, isso nos abre
para essa pesquisa sobre a verdade e o real, também chamada luto.
Mais
do que a regressão da biopolítica para a necropolítica e do
círculo fechado e inversivo entre soberania e violência, o
que Bacurau,
lido junto com Casa
Submersa,
propõe é uma oniropolítica, ou seja, a restauração de nossa
capacidade de sonhar, de olhar para o lado e de coabitar várias
temporalidades contraditórias. Uma oniropolítica, como redefinição
de nossas formas de desejar, vem se insinuando no trabalho
dramatúrgico recente de Denise Fraga, em Eu
de Você,
no recente livro de Vera Iaconelli4,
nos estudos anteriores de Tales Ab’Saber5,
no último livro de Vladimir Safatle6 e
nas pesquisas recentes do grupo de Miriam Debieux Rosa e Rose Gurski
na clínica do traumático, ou de Jaime Guinsburg na crítica
literária.
O
resgate da língua do pai negro comida pelos peixes, em Casa
Submersa,
ou o retorno de Teresa para o funeral de sua avó (assim como o
anúncio da retomada dos enforcamentos públicos no Vale do
Anhangabaú), em Bacurau,
devem ser lidos como uma alegoria cuja potência reside justamente na
indeterminação da identidade e do sentido da mensagem. Seriam uma
alusão ao assassinato da língua do pretês, como queria Lélia
Gonzalez? Seria Teresa uma versão rediviva de Marielle Franco? Os
enforcamentos e as desaparições estão acontecendo novamente, mas
seriam eles os mesmos? Daí a importância de analisar tais produções
como sonhos e não por seu valor prescritivo, em chave literal.
Enquanto as imagens oníricas forem memes de repetição da miséria
da violência permaneceremos submetidos ao empuxo para contemplá-las
em posição de obediência, como se fossem uma nomenclatura que
teríamos que repetir em nome da vida ou da morte, da paz ou da
guerra.
É
justamente por não sabemos se as pílulas tomadas pelos moradores de
Bacurau são de anestesia ou de coragem, se são para acordar ou para
dormir, que encontramos um novo caminho em formação na nossa
relação com as imagens. Por isso, ainda que as armas estejam nos
museus, nas escolas e nas igrejas desertas (e ainda que suas portas
se encontrem abertas), não sabemos mais como usá-las em nosso
próprio tempo. Os sonhos possuem essa propriedade reparadora de
alterar nossa relação com o tempo. Eles nos fazem perguntar como o
hoje, o ontem e o amanhã habitam a construção da mesma imagem. Com
isso, demandam um trabalho de leitura e construção que chamamos
desejo. Afinal, as imagens não são apenas imaginárias, mas também
simbólicas, quando nos permitem reencontrar a história de nossos
desejos, e ainda, quando bem postas e bem lidas, capazes de indicar o
lugar do real. É exatamente o contrário não simétrico dessa
relação pedagógica e ortopédica com as imagens, com as palavras e
com o tempo, que encontramos nas atitudes de estupidez calculada de
Bolsonaro ou no discurso tosco que o subvenciona no varejo. Não
importa o olhar, não importa o lugar de onde se vê, não importam
as vozes que falam, múltiplas em uma narrativa… tudo o que
interessa são objetos malévolos, imagens de poder e glória
cooptadas pelos inimigos naturais.
É
muito importante lembrar que Bacurau e Casa
Submersa foram
pensados antes da
emergência deste encolhimento democrático que vivemos. Filme e peça
foram precedidos primeiro em 2013 e depois em 2016 pela construção
de uma série sobre violência e história. Se ambos parecem
proféticos e ilustrativos para 2019 é porque fecham um ciclo que já
estava anunciado por nossas práticas de esquecimento e negação da
história. É porque a repetição do trauma se anunciava mais forte
do que a reparação. Eles surgem como uma facies
hipocrática do
presente pois foram capazes de pensar o presente antes que ele fosse
presente. E só o fizeram porque nos trazem uma teoria do tempo
subversiva e uma nova relação com a imagem que é crítica… se
não divina.
Notas
1 Sigmund
Freud, “Moisés y la religión monoteísta” [1939], Obras
completas de Sigmund Freud,
Vol. XXIV (Buenos Aires, Amorrortu).
2 Walter Benjamin, Origem do drama barroco alemão (tradução, apresentação e notas de Sérgio Paulo Roanet, São Paulo, Brasiliense, 1984), p. 188.
3 Sigmund Freud, O Infamiliar [1919] (trad. Ernani Chaves e Pedro Heliodoro Tavares, Belo Horizonte, Autêntica, 2019).
4 Vera Iaconelli, Como criar filhos no século XXI (São Paulo, Contexto, 2019).
5 Tales Ab’Saber, O sonhar restaurado (Campinas, Editora 34, 2005).
6 Vladimir Safatle, Dar corpo ao impossível: o sentido da dialética a partir de Theodor Adorno (Belo Horizonte, Autêntica, 2019).
2 Walter Benjamin, Origem do drama barroco alemão (tradução, apresentação e notas de Sérgio Paulo Roanet, São Paulo, Brasiliense, 1984), p. 188.
3 Sigmund Freud, O Infamiliar [1919] (trad. Ernani Chaves e Pedro Heliodoro Tavares, Belo Horizonte, Autêntica, 2019).
4 Vera Iaconelli, Como criar filhos no século XXI (São Paulo, Contexto, 2019).
5 Tales Ab’Saber, O sonhar restaurado (Campinas, Editora 34, 2005).
6 Vladimir Safatle, Dar corpo ao impossível: o sentido da dialética a partir de Theodor Adorno (Belo Horizonte, Autêntica, 2019).
Christian
Ingo Lenz Dunker é
psicanalista, professor Livre-Docente do Instituto de Psicologia da
Universidade de São Paulo (USP), Analista Membro de Escola (A.M.E.)
do Fórum do Campo Lacaniano e fundador do Laboratório de Teoria
Social, Filosofia e Psicanálise da USP. Autor de Estrutura
e Constituição da Clínica Psicanalítica (AnnaBlume,
2011) vencedor do prêmio Jabuti de melhor livro em Psicologia e
Psicanálise em 2012 e um dos autores da coletânea Bala
Perdida: a violência policial no Brasil e os desafios para sua
superação (Boitempo,
2015). Seu livro mais recente é Mal-estar,
sofrimento e sintoma: a psicopatologia do Brasil entre
muros (Boitempo,
2015), também vencedor do prêmio Jabuti na categoria de Psicologia
e Psicanálise. Desde 2008 coordena, junto com Vladimir Safatle e
Nelson da Silva Junior, o projeto de pesquisa Patologias
do Social: crítica da razão diagnóstica em psicanálise. Colabora
com o Blog
da Boitempo mensalmente,
às quartas.
FONTE (autorizada pelo autor)
TRAILER
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