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sábado, 2 de novembro de 2019

Bacurau

de Christian Dunker

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Bacurau (2019), de Kleber Mendonça e Juliano Dornelles pode ser visto como um filme previsível sobre a violência, particularmente no Brasil profundo do sertão onde o Estado só chega em nome da corrupção. Um nordeastern que reforça o preconceito de que nosso inimigo fala inglês, que o sul usa o nordeste para empreender sua miséria em estrutura de vídeo game, que a pobreza traz necessariamente violência e que todos os políticos são corruptos. Um filme que usa a paratopia, baseada no fato de que o enredo se passa no futuro, apenas para mostrar como o tempo não passa e que no fundo repetimos padrões do cangaço, da ditadura militar, da escravidão e do colonialismo. Resultado: em vez de recriar um presente a partir da sua exageração no futuro, como em Terra em Transe, por exemplo, estamos apenas mitificando o presente a partir da alegorização do passado.

O ponto mais inaceitável de Bacurau é que ele consagra a moral da vingança e do ressentimento como única alternativa contra um estado de opressão e anomia, onde a vida vale pouco e a morte se contabiliza em gotas de gozo. Violência contra violência gera mais violência, mais polarização e no fundo sanciona a lei do mais forte, que supostamente queríamos reverter. Há uma teoria da transformação em jogo aqui: eu “viro” meu inimigo ao agir como ele age. Assim fazendo, perco toda a razão pois sanciono a lei proposta por ele, a lei da guerra. O inimigo vence quando me faz trair a razão emancipatória, baseada na organização do conflito pela palavra e pelas instituições civilizatórias de educação, urbanidade e civilidade. Por isso o filme repete o que há de pior na trilogia da qual faz parte. Tal como em O som ao redor (2013), em Bacurau nos sentimos presos às estruturas latifundiárias e sua retórica da transgressão libertadora. Tal como em Aquarius (2016), aqui nos percebemos imersos em um sistema da favorecimentos encoberto pelo governo onde a única saída é a sobrevalorização defensiva dos particulares: meu corpo, minha casa, minha família, minha história.

Tudo verdade… mas nem toda verdade.

Tudo realidade… mas com um traço de Real.

A chave para uma segunda leitura de Bacurau se encontrará na peça Casa Submersa, dirigida por Kiko Marques, com a Velha Companhia, em cartaz no Sesc Pompéia em São Paulo. Também aqui encontramos o fechamento de uma trilogia. Iniciada com Cais ou Da indiferença das embarcações (2012), que trata do amor interrompido pela emergência do Estado Novo, e seguida por Sinthia (2016) que trata do retorno do filho para a casa onde, para uma mãe que sempre quis ter uma menina agora encontrará seu filho tornado mulher. A trilogia realiza uma tematização transversal da política, primeiro com a intrusão de Vargas atrapalhando o grande amor de um casal, depois com a Ditadura Militar oprimindo o amor de um filho por sua mãe e agora, em Casa Submersa (2019), com a degradação de uma família à partir do assassinato do pai no contexto da corrupção política emergente. A protagonista Maíra vive um conjunto de efeitos pós-traumáticos, composto por dissociações, rupturas de memória, despersonalizações e desintegração de experiências de satisfação corporal, que é remetido ao passado violento de sua própria família – um passado que não cessa de não passar e que se reatualiza nas diversas figuras da incompreensão de si mesma. Tudo acontece como se essas irrupções sintomáticas, inclusive agressões e autoagressões, fossem uma espécie de patologia da memória, símbolos que esqueceram sua função rememorativa e sobretudo angústias que assim colocadas possuem pequena força transformativa.
Registro de Casa Submersa, nova montagem da Velha Companhia, dirigida por Kiko Marques (Nelson Kao/Divulgação).
Aqui nos lembramos das teses de Moisés e a religião monoteísta1, onde Freud postula que o trauma gera dois tipos de consequências. Os efeitos positivos são aqueles nos quais repetimos o evento traumático, fragmentando e retendo suas imagens e afetos coligados. Surgem pesadelos, acessos de angústia, bloqueios de memória e intrusão de imagens violentas, que, em seu conjunto, são reatualizações do ocorrido. Já os efeitos negativos do trauma são mais perigosos justamente porque mais difíceis de localizar. Eles aparecem como irrupções inexplicáveis de ódio e violência, reações de evitação e indiferença, que efetivam uma espécie de esterilização da palavra, trazendo desalento, desesperança e suspensão do laço com o outro. Se os efeitos positivos prolongam o trauma criando monumentos desconhecidos, os efeitos negativos transmitem-se pelo silêncio, como que a reproduzir um ato que nunca se realizou. As duas propriedades do trauma frequentemente se juntam para efetivar o que se poderia chamar de potência trágica da experiência traumática. Ou seja, ao negar e ao fugir do trauma fazemos acontecer de novo aquilo que mais queríamos evitar, assim como o jovem Édipo que foge de Corinto para proteger seus pais (adotivos) e acaba encontrando e matando seu pai (biológico, Laio), na encruzilhada de três fronteiras.

Casa Submersa é parte de uma grande alegoria da água, que aparece como metáfora para o esquecimento, para a desaparição dos corpos e para o desejo desesperado de escapar da asfixia e encontrar ar para respirar. Aqui está o escafandrista que passa, como o coro nas tragédias antigas, murmurando, sofregamente, a verdade que não conseguimos apreender. Já Bacurau é parte da alegoria da seca. Metonímia do pequeno Brasil, formado por comunidades isoladas, natural e artificialmente: sem internet, sem lugar no mapa, sem a proteção o Estado, sem água, que tem que vir de fora. Aqui surge Lunga, o protagonista paratópico, meio curinga meio trickster, meio homem meio mulher, meio criança meio adulto, parte da comunidade, mas que vive fora dela.

Walter Benjamin definia a alegoria como a “facies hipocrática da protopaisagem da história”2Facies hipocrática é uma expressão que encontramos na medicina de Hipócrates para designar a cara típica que um paciente faz de tal maneira que, a partir de então, sabemos que não há mais cura possível e que a morte virá inexoravelmente. É como se alegoria nos permitisse ver, ainda que por um instante determinado, a paisagem completa da história, nos conferindo o distanciamento necessário para aprendê-la, do ponto de vista da totalidade, como uma unidade, mas ao preço de nada podermos fazer para mudá-la. Ora, esse instante é uma espécie de tratamento para o trauma. Ele permite realizar a perda, abrindo ao processo de luto, nos fazendo reconhecer o que realmente aconteceu e autorizando a experiência do acontecido. Ao mesmo tempo, permite introduzir a resposta que faltou ao trauma no momento de seu ocorrido, ainda que, e principalmente como uma resposta ficcional. Ou seja, é na conjectura criada por uma nova  forma de linguagem, neste caso o cinema e o teatro, que podemos inventar o que poderia ter sido para que hoje não continuarmos a ser obrigatoriamente o que somos.

Chegamos assim ao momento em que Freud e Benjamin se encontram para enfrentar o nosso problema brasileiro de última hora: como enfrentar a violência sem gerar mais violência? Como retratar e nomear a violência sem usar a linguagem reificada e consagrada da estetização a violência. Como não repetir com a estética da violência o que um dia fizemos com a estética da fome? A questão se desdobra para todas nossas maiores contradições sociais: pobreza, racismo, opressão de gênero, segregação cultural e social. A teoria freudiana do trauma é enunciada em um texto conhecido por realizar uma inversão fundamental na teoria psicanalítica da identidade: não é a família que vem primeiro e depois aparecem os estrangeiros. No início está o estrangeiro, o Unheimlich3, o corpo estranho, o infamiliar. A família é a sutura para essa indeterminação primária. A tese de que Moisés era egípcio e não judeu sintetiza essa teoria.

A teoria benjaminiana da alegoria se dá no contexto de uma pesquisa sobre a violência. Há a violência da transgressão das leis (o crime por exemplo), mas há também a violência daqueles que instituem, aplicam e manipulam as leis administrando suas exceções. Podemos caracterizar essa segunda forma de violência como uma alternância calculada entre, por um lado, a mão pesada que pune, mata e destrói em nome da lei entendida como purificação e ordem, e por outro, a mão que oculta, protege e prestidigita, tipicamente em favor dos poderosos. Por isso Benjamin se pergunta se não haveria uma terceira forma de violência, capaz de suspender a inversão simples entre violência de Estado e violência contra o Estado. Esse terceiro tipo de violência ele nomeia violência divina. Nela uma margem não se conecta com a outra e a divisão entre familiar e estrangeiro é suspensa, ainda que por um instante. Para entender a violência divina é preciso conectá-la com a teoria da alegoria. Ou seja, ela é uma violência posta em estrutura de ficção, não é uma violência na realidade, muito menos a legitimação da violência realística que já está em curso. Trata-se uma violência Real, em sentido lacaniano, que permite destruir e negar produtivamente os dualismos que operam na constituição simbólico-imaginária de nossa realidade. A violência Real não é traumática no mesmo sentido da violência que viola corpos e famílias, que impõe rupturas e supressões na história. Ela é a violência que advém da descoberta do estrangeiro dentro de si mesmo. Ela perturba a identidade entre o trauma e seu retorno convidando à inserção de um fragmento de reparação ou de suplemento na experiência. Por isso seu traço semiológico de reconhecimento sinaliza a insegurança ontológica na identidade dos egos e a indeterminação na relação de propriedade dos entes. O que o trauma da morte violenta de alguém cria é a identidade entre as duas coisas, forçando a identificação entre o trauma realístico e o trauma Real. Por isso sua cura depende de como conseguimos separar as duas coisas que estão soldadas, por exemplo, na mesma imagem. Inversamente, isso nos abre para essa pesquisa sobre a verdade e o real, também chamada luto.

Mais do que a regressão da biopolítica para a necropolítica e do círculo fechado e inversivo entre soberania e violência, o que Bacurau, lido junto com Casa Submersa, propõe é uma oniropolítica, ou seja, a restauração de nossa capacidade de sonhar, de olhar para o lado e de coabitar várias temporalidades contraditórias. Uma oniropolítica, como redefinição de nossas formas de desejar, vem se insinuando no trabalho dramatúrgico recente de Denise Fraga, em Eu de Você, no recente livro de Vera Iaconelli4, nos estudos anteriores de Tales Ab’Saber5, no último livro de Vladimir Safatle6 e nas pesquisas recentes do grupo de Miriam Debieux Rosa e Rose Gurski na clínica do traumático, ou de Jaime Guinsburg na crítica literária.

O resgate da língua do pai negro comida pelos peixes, em Casa Submersa, ou o retorno de Teresa para o funeral de sua avó (assim como o anúncio da retomada dos enforcamentos públicos no Vale do Anhangabaú), em Bacurau, devem ser lidos como uma alegoria cuja potência reside justamente na indeterminação da identidade e do sentido da mensagem. Seriam uma alusão ao assassinato da língua do pretês, como queria Lélia Gonzalez? Seria Teresa uma versão rediviva de Marielle Franco? Os enforcamentos e as desaparições estão acontecendo novamente, mas seriam eles os mesmos? Daí a importância de analisar tais produções como sonhos e não por seu valor prescritivo, em chave literal. Enquanto as imagens oníricas forem memes de repetição da miséria da violência permaneceremos submetidos ao empuxo para contemplá-las em posição de obediência, como se fossem uma nomenclatura que teríamos que repetir em nome da vida ou da morte, da paz ou da guerra.

É justamente por não sabemos se as pílulas tomadas pelos moradores de Bacurau são de anestesia ou de coragem, se são para acordar ou para dormir, que encontramos um novo caminho em formação na nossa relação com as imagens. Por isso, ainda que as armas estejam nos museus, nas escolas e nas igrejas desertas (e ainda que suas portas se encontrem abertas), não sabemos mais como usá-las em nosso próprio tempo. Os sonhos possuem essa propriedade reparadora de alterar nossa relação com o tempo. Eles nos fazem perguntar como o hoje, o ontem e o amanhã habitam a construção da mesma imagem. Com isso, demandam um trabalho de leitura e construção que chamamos desejo. Afinal, as imagens não são apenas imaginárias, mas também simbólicas, quando nos permitem reencontrar a história de nossos desejos, e ainda, quando bem postas e bem lidas, capazes de indicar o lugar do real. É exatamente o contrário não simétrico dessa relação pedagógica e ortopédica com as imagens, com as palavras e com o tempo, que encontramos nas atitudes de estupidez calculada de Bolsonaro ou no discurso tosco que o subvenciona no varejo. Não importa o olhar, não importa o lugar de onde se vê, não importam as vozes que falam, múltiplas em uma narrativa… tudo o que interessa são objetos malévolos, imagens de poder e glória cooptadas pelos inimigos naturais.


É muito importante lembrar que Bacurau e Casa Submersa foram pensados antes da emergência deste encolhimento democrático que vivemos. Filme e peça foram precedidos primeiro em 2013 e depois em 2016 pela construção de uma série sobre violência e história. Se ambos parecem proféticos e ilustrativos para 2019 é porque fecham um ciclo que já estava anunciado por nossas práticas de esquecimento e negação da história. É porque a repetição do trauma se anunciava mais forte do que a reparação. Eles surgem como uma facies hipocrática do presente pois foram capazes de pensar o presente antes que ele fosse presente. E só o fizeram porque nos trazem uma teoria do tempo subversiva e uma nova relação com a imagem que é crítica… se não divina.

Notas

1 Sigmund Freud, “Moisés y la religión monoteísta” [1939], Obras completas de Sigmund Freud, Vol. XXIV (Buenos Aires, Amorrortu).
2 Walter Benjamin, Origem do drama barroco alemão (tradução, apresentação e notas de Sérgio Paulo Roanet, São Paulo, Brasiliense, 1984), p. 188.
3 Sigmund Freud, O Infamiliar [1919] (trad. Ernani Chaves e Pedro Heliodoro Tavares, Belo Horizonte, Autêntica, 2019).
4 Vera Iaconelli, Como criar filhos no século XXI (São Paulo, Contexto, 2019).
5 Tales Ab’Saber, O sonhar restaurado (Campinas, Editora 34, 2005).
6 Vladimir Safatle, Dar corpo ao impossível: o sentido da dialética a partir de Theodor Adorno (Belo Horizonte, Autêntica, 2019).

Christian Ingo Lenz Dunker é psicanalista, professor Livre-Docente do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), Analista Membro de Escola (A.M.E.) do Fórum do Campo Lacaniano e fundador do Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da USP. Autor de Estrutura e Constituição da Clínica Psicanalítica (AnnaBlume, 2011) vencedor do prêmio Jabuti de melhor livro em Psicologia e Psicanálise em 2012 e um dos autores da coletânea Bala Perdida: a violência policial no Brasil e os desafios para sua superação (Boitempo, 2015). Seu livro mais recente é Mal-estar, sofrimento e sintoma: a psicopatologia do Brasil entre muros (Boitempo, 2015), também vencedor do prêmio Jabuti na categoria de Psicologia e Psicanálise. Desde 2008 coordena, junto com Vladimir Safatle e Nelson da Silva Junior, o projeto de pesquisa Patologias do Social: crítica da razão diagnóstica em psicanálise. Colabora com o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas.

FONTE (autorizada pelo autor)

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terça-feira, 10 de janeiro de 2017

AQUARIUS

Vocês esqueceram a revolução sexual
de Christian Dunker 
Encontrei Kleber Mendonça Filho no dia em que ele tinha terminado de editar Aquarius. Ele estava meio distante, com aquele branco cansado de quem passou pela maratona da sala de montagem. Conversamos sobre a Fundação Joaquim Nabuco, sobre a Ocupação Estelita e sobre a crítica que eu havia feito de Som ao Redor. Ele parecia longe. Como alguém que olha a vida com um recuo, tipo quinze anos para trás ou para frente. Uma distância que ninguém na mesa, em tempos de impeachment, conseguia ter.
Um ano depois, Kleber deixou a Fundação para fazer mais cinema, a Ocupação do cais Estelita obteve vitórias substanciais, apesar da indiferença da imprensa local, Dilma caiu e eu acabo de sair do cinema, consternado com a rede de contradições que Aquarius conseguiu formalizar sobre o Brasil, com seu recuo histórico. Muitos disseram tratar-se de um estudo de personagem, a arquetípica Sonia Braga, e seus conflitos de elite em torno da intransigência e da resistência para não deixar “seu lugar”, na praia da Boa Viagem, ser tomado por uma construtora.
Não é.
Seria o mesmo que dizer que a Fenomenologia do Espírito de Hegel é um romance filosófico causado pelo impacto de alguém que assistiu a entrada de Napoleão em Jena. Análogo de afirmar que Memórias Póstumas de Bráz Cubas ou Grande Sertão: Veredas são estudos sobre psicologia de personagens. Correto desde que se entenda, equivocadamente, que a psicologia é apenas o estudo de indivíduos típicos e suas generalizações identitárias. Isso nos levará ao apequenamento de quem só consegue discutir quantos negros, homossexuais, mulheres ou pobres comporão o banquete universitário de fim de ano. Verdadeiras pessoas são universos em contradição, não personagens que valem pelo tipo que representam.Tolice de quem não entende que cinema é linguagem e pensamento.Seu papel foi crucial para o pouco de reflexão sobre o Brasil dos anos 1980 ao fim do Lulismo. Aqueles que se demitiram de pensar o Brasil, que se evadiram dos conceitos e suas práticas, são os mesmos que agora lamentam que a abstinência política nos levou ao pior.
Aquarius é uma enciclopédia sobre o Brasil que encontra, literalmente, o universal em seu quintal. Uma aventura filosófico-psicanalítica de quem nasceu sob a ditadura civil militar e que tinha diante si o projeto de reconstruir o Brasil sem recursos opulentos, apenas Taiguara, Chico e Caetano e o novo rock de Legião, Titãs e Barão Vermelho. Um filme sobre causas impossíveis. Um filme diagnóstico, como Invasor, de Beto Brant, Central do Brasil, de Walter Sales e Que Horas Ela Volta?,de Ana Muylaert.
O filme começa, com uma tomada dos anos 1980, na festa de aniversário de 70 anos de Tia Lúcia, mulher “liberal” que tem sua biografia lida cerimoniosamente pelos sobrinhos. Enquanto eles fazem a tradicional nobiliarquia familiar, ela relembra tórridas noitadas com o seu amante, casado e que jamais deixaria sua família, sem por isso deixar de consagrar-se, para ela, como um grande amor. Nossa memória pertence e depende de lugares. Neste caso uma espécie de cômoda, em cima da qual ela criava momentos de lúbrico sexo oral. O móvel antigo faz função inversa ao da máquina de lavar com a qual Maeve Jinkings, a solitária e narcísica dona de casa de Som ao Redor, se masturba. Esta lembrança faz Tia Lúcia interromper o tom elegíaco da festa familiar e lembrar em alto e bom tom seu amante. Um marco que aponta, simbolicamente, que aquele lugar não pode e não deve ser abandonado. Neste momento diagnóstico, ela proclama: “Vocês estão esquecendo a revolução sexual”.
Clara, a heroína de Aquarius, não veio do nada. Ela foi formada por Tia Lúcia, uma destas mulheres que fizeram a revolução sexual, mostrando em ato o que pode um corpo. Mas uma verdadeira transmissão simbólica, como diria Lacan, decide-se em três e não em duas gerações. Daí o mal-estar de Clara diante dos filhos, a quem não carece amor. Seu filho homossexual não consegue apresentar seu amante para a mãe. Sua filha não consegue desprender-se do rancor de sua vida instrumental. Seu outro filho parece preso em um ideal plástico de bom casamento. Em suma, um desejo que fracassou na sua transmissão. Um sonho esquecido que não criou as condições para realizar seu próprio futuro. Um sonho que se mantém pela resistência do corpo. 
É assim entre gerações, é assim entre brasis.  Os jovens pós-revolucionários, herdeiros dos anos 1970, tornaram-se yuppies nos anos 1990 e criaram uma geração X de normalopatas conformados. Exceção improvável da namorada de Facebook, estrangeira, que chega do Rio de Janeiro, lembrando que uma tia, e não só uma mãe, é capaz de transmitir o desejo. No mais, uma tropa de anestésicos performativos, ocupados e carreiristas.
A revolução sexual dos anos 1960 não foi apenas uma modernização de costumes, trazendo aumento da tolerância para temas como divórcio, homossexualidade e padrões de família. Foi uma revolução bovarista, no sentido de que ela nos mostrou que outro futuro é possível, que podemos ser “outros para nós mesmos” (como Madame Bovary) e que o futuro começa pela relação com o corpo e com o desejo. Aquarius é um filme essencial a ser estudado por aqueles que estão em busca do próximo capítulo, depois do “aquilo deu nisso”, que vai de Lula e Temer.
Clara não é um ser anacronicamente ligado a uma vida que já passou. Ela nos fala do futuro possível, feito de um passado imprevisível. O contraste é brutal com o falso futuro que nos oferece Diego, o empreendedor, neto do dono da construtora, que quer fazer seu primeiro grande negócio comprando o último apartamento que falta para criar o “Novo Aquarius”. É um filme sobre o papel dodesejo, do corpo e da memória na história.
Desejo que se transmite e se repete desde Tia Lúcia, como reconciliação com a experiência de amor que não terminou com a viuvez. Exemplo. Diante do bacanal contratado por Diego para perturbá-la noite a fora, em vez de intimidada, chamar a polícia, ela chama o amante profissional. Resposta exata e inversa ao ódio banal do ressentido, em vez de acabar com a festa do outro, entrar nela, por seus próprios meios. Desejo que a faz se afastar dos três filhos para escrever um livro sobre Villa-Lobos. Desejo que a torna uma Antígona brasileira. Desejo que aparece sempre na enunciação musical que atravessa o filme de Queen (um marco da internacionalização brasileira desde o antológico show de 1981) até Altemar Dutra, Paulinho da Viola e Alcione.
Memória que trabalha tanto no corpo mutilado e sobrevivente do câncer, como no rico repertório de recriação de experiências que ela construiu para si em seu apartamento. Sozinha, mas não só. Com ela estão neto, empregada, salva vidas, amigas, antigos conhecidos de jornal, filhos, sobrinhos e ao final os próprios capangas da construtora, entre eles o impagável Irandhir Santos. É isso que Diego, o jovem e impiedoso negociante, com seu MBA feito nos USA, herdeiro profissional, não consegue entender, pois não consegue lidar com pessoas que não vivem apenas no presente.
Corpo que nos fala do presente como instante de sobrevivência e de urgência. Presente que é expresso nos banhos de mar diários, na maconha vivida com exuberância, no vinho e no sexo sem piedade ou constrangimento. Clara é o anti-síndico, cura e solução para o que chamei de vida em forma de condomínio.  Ela extrai do corpo algo mais do que o cultivo narcísico de uma imagem, pois encontra nele um princípio de fidelidade ao futuro, resistência ao presente e invenção do passado. Por isso, se o filme começa e termina com Hoje, de Taiguara, sua chave secreta é Universo no teu Corpo, do mesmo autor. Falecido em 1996, de câncer, aos cinquenta anos de idade, depois de dois exílios e 68 músicas censuradas pela ditadura entre elas “o meu pedaço de universo é no seu corpo”, que sugiro ao leitor escutar enquanto lê o resto deste texto. Ela começa pelo absolutamente contemporâneo: “Eu desisto, não existe esta manhã que eu perseguia. Um lugar que me dê trégua ou me sorria. E uma gente que não viva só para si.” Ou seja, a constatação de que nossas ilusões de transformação do mundo, de justiça, igualdade e liberdade não são mais do que ilusões. Nada mais atual do que recomeçar a conversa por: “eu desisto”. Reconhecimento de que a aposta em outro mundo precisa de nova formulação. Que o futuro, como universal, pode ser reinventado a partir do pequeno particular que o nega enquanto tal: o corpo.
Momento de inversão e desilusão. Instante no qual o real bate à porta mais uma vez, perguntando se “por uns velhos e vãos motivos, somos cegos e cativos, no deserto sem amor”.  Clara vive um mundo sem ilusões, por isso mesmo sem concessões. Sem entregar-se ao imperativo instrumental que transforma em dinheiro lembranças, sonhos e experiências insubstituíveis dos lugares que ela viveu nos anos 1980, com seus discos de vinil. Portanto, ela não é mais uma destas viúvas da revolução que tem à mão o modelo prét-à-porter de futuro revolucionário. “Estou morto para este triste mundo antigo”. Ela vive além dos anos 2010, com suas crises de identidade, suas ofensas narcísicas e objetivos instrumentais. “Só encontro gente amarga mergulhada no passado, procurando repartir seu mundo errado”. Estes são os jovens neoliberais que só pensam em seu primeiro sucesso, feito de negócios, de estratégias de imagem e de marketing. São também os jovens ressentidos com um futuro brilhante e fácil que não lhes foi entregue na realidade. Os jovens como Diego, que não sabem desistir, portanto não sabem fracassar.
Mas felizmente há outros jovens. Há jovens que ocupam escolas, como Clara ocupa sua própria casa. No filme de Kleber Mendonça e na canção de Taiguara eles dizem “vem comigo”. Não como um apelo grupalizante, mas como endosso de uma atitude de resistência.Sonia Braga formou-se na herança da pornochanchada, do teatro de resistência (trabalhou no Hair) e do cinema marginal (a cena do Opala na praia é uma citação de O Bandido da Luz Vermelha). Consagra-se como heroína da telenovela nos anos 1980 com os personagens de Jorge Amado, e nos anos 90, faz sucesso em Hollywood. Aos 66 anos de idade, com um seio a menos, Sonia é um signo perfeito para representar a transição e a contradição entre um Brasil fechado em seu próprio atraso dos anos 1980, sua súbita e impensada internacionalização nos anos 1990 e o desastre daqueles de esqueceram a revolução sexual. A revolução sexual não era apenas o incremento do direito das mulheres e a luta por equidade, mas uma forma de ligar desejo, história e corpo.
Nos anos 2000, Sonia Braga fica sem trabalho no Brasil, mesmo com suas aparições em Sex and the City (2001), Law and Order (2003) e CSI Miami (2005). Efeitos do envelhecimento do corpo ou porque sua corporeidade tornou-se excessivamente brasileira? Assim como Aquarius não é indicado ao Oscar, pelo Ministério da Cultura, em uma operação obscena para esconder a brasilidade real diante a brasilidade imaginária (aquela da qual nos envergonhamos diante do “estrangeiro”). Por isso também o filme é inicialmente censurado e recomendado para 18 e não 16 anos, como em outros países, porque afinal nossa brasilidade deve responder ao olhar do outro, não ao nosso. O fato de seu elenco ter denunciado o golpe em Cannes é secundário diante da própria mensagem estética do filme. É ela que não deve aparecer, no regime de censura branca no qual nós entramos. 
Indagada sobre sua própria análise, Sonia Braga disse: “Fazia [psicanálise]. Quando percebi que o analista já estava melhor, se vestindo direitinho, sorrindo de novo, dei alta para ele.” Ou seja,  a relação de autoridade tradicional, pela qual supõe-se que o analista é quem dá alta, sendo ele mesmo um paradigma de normalidade, é invertida, corretamente. É isso que se vê no filme. Todos a consideram uma louca, mas é ela mesma que nos guia para algum senso de lucidez.         
Ela nos lembra que fomos criados por uma história que nos antecedeu. Que Temer ou Trump não são acasos fortuitos do passado, mas invenções de um futuro antigo. Um futuro feito apenas de regras e exceções: sem corpos, sem memórias e sem desejos. Futuro para o qual devemos estar prontos a estar mortos de antemão, como Lacan dizia da posição do psicanalista. Contra ele, o filme traz algumas respostas.
É preciso Maria Bethânia para reencontrar a intensidade da palavra capaz de causar amor, de verdade. É preciso coragem para mostrar uma mastectomia radical sem que isso perca seu erotismo. É preciso ternura para mostrar como alguém que sobrevive ao câncer pode formar uma nova atitude diante a vida. É preciso democracia para mostrar um baile de negros e brancos, de ricos e pobres, de velhos e moços. É preciso astúcia para mostrar uma empregada doméstica branca defender sua patroa morena diante de um síndico educado, atencioso e canalha. É preciso delicadeza para mostrar um bombeiro-salva-vidas criar uma exceção à lei e deixar uma velha senhora nadar na zona dos tubarões, ou invadir um domicílio, se for preciso. É preciso solidariedade para mostrar dois funcionários, demitidos profissionalmente, reconhecer o bom trato recebido, pessoalmente, sob condição de desigualdade. É preciso lucidez para mostrar como uma linhagem de mulheres resistentes pode gerar uma filha funcional e adaptada, cujo único sonho é a sobrevivência. É preciso sensibilidade para introduzir em meio às recordações de filhos e netos que nos auto-realizam, o contraste com a memória do filho morto da empregada, atropelado sem consequência, sem justiça e sem relevância.
Brasília Teimosa, o bairro que resiste à incorporação imobiliária em Recife, toca-se dialeticamente com o Edifício Aquarius, onde Clara resiste solitária contra o bacanal, as igrejas, a insegurança, o interesse familiar, os princípios de segurança razoável e ao final … os cupins, que roem por dentro, em silêncio, como o câncer. Os cupins que roem tudo, menos a cara de pau dos empreiteiros. Lembremos que é um filme profético, feito e concebido antes da Lava a Jato.
Esquecermos da revolução sexual não significa que nos tornamos mais caretas, mas que desaprendemos a desobedecer. Pulamos a parte na qual, em vez de querermos limitar os poderosos, estávamos em busca de mais liberdade para aqueles que não são poderosos. A parte universal na qual nossos desejos valiam mais que nossas imagens. 
*Publicado originalmente em Revista Brasileiros - 2016 : http://brasileiros.com.br/
Christian Ingo Lenz Dunker é psicanalista, professor Livre-Docente do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), Analista Membro de Escola (A.M.E.) do Fórum do Campo Lacaniano e fundador do Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da USP. Autor de vários livros, entre eles Estrutura e Constituição da Clínica Psicanalítica (AnnaBlume, 2011) vencedor do prêmio Jabuti de melhor livro em Psicologia e Psicanálise em 2012  e o finalista do Jabuti 2016 :          Mal-estar, sofrimento e sintoma: a psicopatologia do Brasil entre muros  (Boitempo, 2015)
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