**Alerta
de (MUITO) spoiler**
Todos os que acompanham minhas resenhas de filme sabem que não está
entre minhas preferências os de super-heróis. Primeiro por sempre
ser algo muito surreal, segundo, e por isso mesmo, meu raciocínio
não conseguir acompanhar todo o enredo, terceiro porque, não
acompanhando, minha memória não funciona para que eu possa assistir
as continuações. Pois bem, já assisti vários do Batman e sabia da
existência do Coringa, mas então hoje fui ao cinema pela segunda
vez assistir sobre sua história (eu nunca fui ao cinema duas vezes
para ver o mesmo filme).
Logo
no começo, primeira cena, Arthur Fleck está se pintando de palhaço,
um sorriso forjado com os dedos e uma lágrima descendo pelo rosto.
Não se trata daquela famosa lágrima desenhada, é uma real, que
desce discretamente. Ele trabalha para uma empresa que “fornece"
palhaços para eventos em geral. São tempos de violência gratuita,
da banalidade do mal (salve Hannah Arendt), e Arthur é espancado por
um grupo de meninos na rua. O motivo: porque querem lhe roubar a
placa(?); porque só querem sacaneá-lo mesmo(?); sabe-se lá o que
explica o prazer em causar dano gratuitamente ao outro. Ele leva uma
bronca do patrão porque o cliente se queixou de seu sumiço, ao
passo que ganha uma 38 do colega de trabalho.
Corta
para a conversa com a assistente social que o "atende", e a
pergunta de Arthur é: "É impressão minha ou o mundo está
ficando mais maluco?”.
Arthur
veio ao mundo sob a seguinte sentença: "aquele que nasceu para
fazer rir e trazer alegria”. Sua mãe o chama de "Feliz”. O
local onde trabalha se chama Haha’s e seu slogan é "coloque
um sorriso nessa cara”. Há um imperativo à felicidade, à
alegria, ao riso indispensável, a que Arthur obedece, tanto se
tornando palhaço, como sonhando em ser comediante, mas, sobretudo,
colocando o imperativo no real com seus ataques de riso a que ele
chama de distúrbio neurológico. E todos perguntam, quando acontece:
“do que você está rindo, idiota? Não tem graça". São
tentativas de cumprir o destino do dizer da mãe, agora uma senhora
que é cuidada (alimentação, banho, etc) por Arthur, desde cedo “o
homem da casa”. Ambos vivem uma loucura a dois, para ficar mais
chique, folie à deux. A mãe vive repetidamente questionando por que
Thomas Wayne não responde suas cartas. Ele, um homem importante,
quer se candidatar a prefeito (sim! o pai do Batman!), ela, uma
mulher que trabalhou na casa dos Wayne há trinta anos.
Vamos
para o segundo momento em que Arthur está de novo como um objeto a
ser batido, espancado, gratuitamente. Ele acaba de ser demitido
porque a arma cai de sua perna no meio de uma apresentação num
hospital infantil. "É um adereço, faz parte do show", mas
seu chefe não acredita e o demite aos berros, por telefone. No
metrô, três babacas, os típicos cidadãos de bem de Gotham (nada
que lembre nossos cidadãos de bem por aqui) estão assediando uma
moça e Arthur começa a gargalhar. Não tem graça, nunca tem. Os
três homens começam a espancá-lo e ele reage matando os três a
tiros. É difícil admitir isso, mas a gente torce e sente um alívio
quando ele consegue se levantar do espancamento brutal e mata os
três. Talvez isso seja material para a polêmica em torno do filme,
de que incitaria à violência. Mas me parece que a arte imita a vida
mais do que o contrário, e se sentimos um certo gozo na cena, é
porque podemos fantasiar ao invés de ir ao ato (salve a arte!).
Depois disso, ele corre, aturdido e entra num banheiro público. Lá
se desenrola uma dança que parece quase involuntária, quase tanto
quanto seu riso. Uma cena que me fez arrepiar inteira e eu queria
abraçar aquele ator por ter escolhido ser ator e fazer aquilo tão
bem. O assassinato no metrô causa rebuliço em Gotham e o candidato
a prefeito e empresário Wayne (o entojado) diz: “o problema dessas
pessoas que fazem esse tipo de coisa é que não suportam as pessoas
bem-sucedidas como nós, já que eles continuam sendo meros
palhaços”. Arthur ouve esta fala que está sendo transmitida na
televisão. Wayne é chamado a dizer algo, pois os três rapazes eram
funcionários de sua empresa.
Em
seu caderninho de piadas para o show de stand-up comedy que está
preparando, escreve: "A pior parte de ter uma doença mental é
que as pessoas esperam que você aja como se não tivesse uma”. Na
conversa com a assistente social, ela sempre lhe faz as mesmas
perguntas e ele diz: “Você não escuta o que eu digo. Sempre
pergunta como eu me sinto, se tenho pensamentos ruins. Eu sempre
tenho pensamentos ruins. Sempre me senti como se não existisse. Você
não me ouve". E parece que não ouve mesmo. Ao fim deste
encontro, ela lhe dá a notícia de que a verba do programa de saúde
foi cortado e, portanto, é o último atendimento. “E como vou
conseguir meus remédios?". A pergunta cai no vazio.
A
mãe de Arthur pede a ele que poste mais uma carta para Wayne. Ele
decide abrir a maldita carta para saber o que tanto esta mulher tem a
dizer. Ela pede ajuda: “somente você pode ajudar a mim e a seu
filho". Estarrecido, aos berros, Arthur quer saber se aquilo é
verdade. A mãe diz que na juventude, quando ela trabalhava na casa
dele, se apaixonaram, mas ele achou melhor não ficarem juntos por
questões sociais e que a fez assinar uns papéis. E nós ficamos sem
saber se é delírio (eu ia dizer “se é verdade ou delírio”,
mas um delírio não é uma verdade?). Pois Arthur vai até Wayne,
que nega a paternidade e ainda diz que sua mãe é uma louca, que o
adotou quando ainda trabalhava para sua família, mas que foi
internada num sanatório depois. Decidido a saber de sua verdade
(tanto quanto o pobre Édipo que acaba vendo justo aquilo que mais
temia enxergar), vai ao sanatório e descobre que sua mãe foi
diagnosticada como psicótica, que tinha um filho adotivo (ele) a
quem deixava sofrer maus tratos por parte de seus namorados. Nessa
cena, tudo acontece muito rápido e as questões que ficam são: a
mulher era realmente louca? Ela adotou mesmo o menino ou foi obrigada
a assinar papéis falsos segundo a versão da poderosa família
Wayne? Se acaso não era louca, ela ficou a partir dali, a ponto de
permitir que seu filho sofresse abusos físicos: “Eu nunca o ouvi
chorar, ele sempre foi um garotinho tão feliz".
Ser
feliz é o imperativo do Outro materno a quem Arthur está
absolutamente alienado, sem corte, sem castração, foracluído. Uma
psicose não tem como causa as mazelas sociais, ainda que a maneira
como a loucura é tratada (ainda) seja um grave problema social, sim.
Estando fora do discurso, Arthur se coloca fora da lei e, para romper
com o imperativo da mãe, precisa matá-la no real. Enquanto um
“neurotiquinho" qualquer passaria anos em análise, deitado no
divã, matando o Outro aos poucos, Arthur faz uma passagem ao ato e
diz, enquanto a sufoca com o travesseiro: “É muito difícil tentar
ser feliz o tempo inteiro. Eu nunca fui feliz nesta minha vida
desgraçada. Lembra quando você dizia que meu riso era um distúrbio?
Eu descobri que não é, eu sou assim mesmo". Édipo mata o pai
sem saber que é seu pai. Arthur mata a mãe porque sabe (o saber
psicótico é intransitivo).
Para
saber o desfecho (mais do que já abri meu bocão) vocês precisarão
ir ao cinema, até porque minhas palavras não conseguem transmitir o
impacto que o filme causa. Não relatam sobre a atuação do Joaquin
Phoenix (CASA COMIGO, JOAQUIN??). Tenho para mim que ele ganhará o
Oscar de melhor ator.
Isloany Machado é psicóloga clínica, psicanalista, membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano-Fórum do Campo Lacaniano de MS. Revisora de textos na Oficina do Texto. Especialista em Direitos Humanos pela UFGD e em Avessos Humanos pelo Ágora Instituto Lacaniano. Mestre em Psicologia pela UFMS. Dispensadora da ciência e costuradora de palavras por opção. Autora dos livros “Costurando Palavras: contos e crônicas crônicas” (2012); “Em defesa dos avessos humanos” e do romance “Nau dos amoucos” (2017). É a mãe do Adriano.
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