sexta-feira, 23 de agosto de 2019

Lykke-Per - UM HOMEM DE SORTE

(com spoiler)
de Isloany Machado
Um amigo* me recomendou o filme Um homem de sorte (disponível na Netflix, dirigido por Bille August) e eu, vasculhando minhas anotações, resolvi que assistiria ontem. Baseado no livro “Lykke-Per”, do autor dinamarquês Henrik Pontoppidan, o filme conta a história de Peter Andreas Sidenius, um jovem de família cristã, que decide romper com a linhagem clerical e seguir seu sonho de ir para Copenhague cursar engenharia. A primeira cena do filme mostra Peter recebendo a notícia de sua aprovação na faculdade. Em seguida, frustrado com a escolha do filho, o pai faz uma oração em família pedindo a deus que mantenha o rapaz perto de seus ensinamentos, uma fala toda baseada na culpa e ameaça da fúria divina. Mas quem está furioso é Peter, que quer se libertar de sua origem religiosa tão pobre e austera. Numa discussão, o pai o amaldiçoa após o rapaz dizer que sempre se sentiu um "exilado e sem-teto" naquela casa: "Exilado seja aquele que desafia o Senhor!”. É uma cena carregada de muito ódio entre pai e filho.
Na partida, o vento da liberdade lhe tocando o rosto durante a viagem de trem (é um filme de época). Na faculdade, uma ideia obstinada: encontrar outras formas de obter energia elétrica (recursos naturais: água e vento) que não dependam do uso do carvão. Uma constante: o ódio a tudo que remete ao pai e ao cristianismo. Peter, que é muito pobre, conhece uma família de ricos judeus, fica de olho na filha mais nova, mas acaba flertando com a mais velha depois que ouve o irmão dela dizer que, por ser primogênita, a herança é maior. Isso nos dá uma visão do quanto Peter, ou Per, como passam a chamá-lo, é um homem ambicioso.
Jakobe, a filha mais velha da família judia, é muito inteligente e está noiva, mas se apaixona pelo jovem gênio e rompe o noivado. Quando ele passa um tempo na Áustria, ela lhe escreve cartas apaixonadas, às quais ele não responde. A moça chega a ir encontrá-lo e passam uns dias juntos, tempos depois ele regressa e oficializam o noivado (Jakobe está grávida, mas não diz nada a ele porque quer lhe fazer uma surpresa). Nesse meio tempo, o pai de Per morre, e a mãe vem morar na mesma cidade que ele (Copenhague) porque quer ficar perto do filho mais velho, irmão de Per que também é clérigo, como o pai.
O futuro sogro tem bons contatos e coloca Per para falar diretamente com um homem do governo, um ministro, que poderia autorizar a execução de seu projeto de energia hidrelétrica e eólica, mas quando este homem, um ex-militar de idade avançada, corrige sua postura: “Endireite as costas!", o ódio flui na expressão facial de Per e tudo está Per-dido. Ambos se insultam, o jovem o chama de velho louco e mais. Um tempo depois, o sogro organiza um consórcio de pessoas ricas que estão a fim de financiar a execução do projeto, mas ainda assim dependeriam da aprovação do tal ministro. Per recusa-se, cara-a-cara com o homem, a pedir perdão a ele por tê-lo insultado, e diz que quem lhe deve pedido de desculpa é o ministro. Mais uma vez: tudo Per-dido.
A mãe de Per morre e seu corpo será transladado de navio para o interior, de onde vieram. O irmão não poderá acompanhar o féretro (ó, falei difícil!) por motivos de trabalhos oficiais e pede a Per que o faça. Ele se recusa, mas, de última hora, decide ir. Reencontrar-se com suas “raízes", o lugar onde sempre morou e que o remetia a toda culpa cristã, à austeridade do pai, etc, logo depois de ter fracassado em seu projeto de vida, faz uma reviravolta na cabeça de Per. Chega a ter uma terrível crise de angústia e questiona o vigário que enterrou sua mãe: "será que é por causa da maldição de meu pai?". Volta para Copenhague, rompe o noivado com Jakobe que, devastada, faz um aborto discretamente em outra cidade. Tempos depois ela decide abrir uma escola para crianças carentes, longe da lógica cristã da culpabilização e do ódio, pois diz ter visto de perto o que a austeridade é capaz de fazer com uma pessoa.
Completamente perturbado e em dívidas com a família dela, volta para o interior, se casa com a filha do vigário e tem com ela três filhos. Anos depois está abençoando o filho mais velho, conferindo se as orelhas estão limpas, mandando que endireite as costas. A esposa lhe pede: “não seja tão duro com ele". Na comemoração de aniversário desse filho, Per se vê como sempre: um exilado. E então foge também dessa mulher e, inclusive de sua posição de pai, para viver sozinho no meio do nada, onde reencontrou-se com suas raízes a partir da própria solidão.
O filme não é uma lição de moral sobre a importância da humildade, como o pai de Per tanto queria fazê-lo engolir goela abaixo. É sobre a quase impossibilidade que temos de romper com aquilo que somos, com a alienação ao Outro. A obstinação e genialidade de Per o levam para longe do pai, mas as raízes do ódio estão tão fincadas nele que o fazem perder qualquer chance de realizar seu sonho. Por ódio ele se move para longe do pai e pelo mesmo ódio, torna-se algo bem parecido com ele. Os caminhos da pulsão nos levam a percorrer sempre as mesmas veredas em busca de um objeto que não existe. E sobre o amor, Per foi amado pelas mulheres, mas não sei se amou alguma delas. Ele, que se movia pelo ódio, talvez não soubesse o que era o amor, talvez não soubesse uma forma diferente de amar que não fosse odiando.
Extra 1: O nome do filme, "Um homem de sorte”, tem a ver com os ricos judeus dizerem que Per era um homem afortunado por sua genialidade.
Extra 2: Já mais velho e adoecido por um câncer, Per faz contato com Jakobe. Ela vai até ele, que a chamou porque quer lhe dar todo o dinheiro que conseguiu juntar na vida para que ela aplique na escola. Ele pergunta: “eu a magoei muito?”, ao que ela responde: “Eu não mudaria nada na minha vida. Foi por ter conhecido você que pude ser quem eu sou". Talvez Jakobe tenha amado sozinha, mas, como disse Lacan, “quem ama nunca está sozinho". Encontros assim são raros, da ordem do milagre, como também diria Lacan, ou, "são mais difíceis do que ganhar na mega sena", como diria minha analista.
(* Fui eu, Henrique, esse amigo...rs.)

Isloany Machado é psicóloga clínica, psicanalista, membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano-Fórum do Campo Lacaniano de MS. Revisora de textos na Oficina do Texto. Especialista em Direitos Humanos pela UFGD e em Avessos Humanos pelo Ágora Instituto Lacaniano. Mestre em Psicologia pela UFMS. Dispensadora da ciência e costuradora de palavras por opção. Autora dos livros “Costurando Palavras: contos e crônicas crônicas” (2012); “Em defesa dos avessos humanos” e do romance “Nau dos amoucos” (2017). É a mãe do Adriano.
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