E
neste dia das crianças eu vou falar de um filme que assisti ontem e
que me deixou com uma sensação de estar implodida, inundada por um
sentimento desconhecido. Um buraco que tem que ser preenchido com
palavras. Trata-se do filme Trash
– a esperança vem do lixo. Gravado
no Brasil, de direção estrangeira, com destaque para Selton Mello e
Wagner Moura. Mas pra meus olhos o destaque foi para os três atores
mirins, por isso escrevo pra comemorar o dia das crianças.
O
contexto do filme é um lixão onde vai parar uma carteira muito
valiosa, não pelo dinheiro que contém nela, mas por guardar um
segredo de um poderoso político. Tão poderoso que coloca a polícia
a seu serviço para ir até o lixão encontrar a bendita carteira.
Acontece que um garoto já encontrou e dividiu o segredo com seu
amigo. Inicia-se a investigação tanto dos policiais, quanto dos
garotos, que não confiam no policial –personagem de Selton Mello.
São três meninos, um que encontrou a carteira, outro que sabe o
segredo, e um terceiro, o Rato, que vive dentro do esgoto, fede e tem
feridas no corpo que nunca saram. Uma bela metáfora para dizer o que
é a miséria, o que é estar à margem, como feridas que nunca
fecham.
Uma
das cenas mais pesadas é quando um dos garotos, justamente o que
encontrou a carteira, é levado pela polícia e, num efeito “montanha
russa” dentro da viatura, é jogado de um lado a outro pelos
próprios solavancos propositais dados por seus algozes. Ele escapa
vivo (tal como uma barata em que se pisa, pisa, e ela insiste em não
morrer). Quando questionado sobre o porquê de estar levando a
investigação adiante, ele simplesmente diz: “porque é certo”.
Então,
eu não diria que a
esperança vem do lixo,
mas sim que vem da infância. A não ser que o lixo esteja colocado
aí como fonte de vida, de desejo. O nada. O resto. O lixo. De onde
não se acredita que pode haver algo além, é justamente daí que a
vida pulsante renasce. O grande desafio é vencido pelas crianças,
pela infância, lugar onde está todo o nosso “lixo”, tudo o que
deveria estar esquecido, mas insiste, persiste. Quanto ao desejo,
deveríamos ser assim: faço porque é o certo, e nada mais. É o
certo no sentido moral? Nem de longe! Esse certo tem a ver com
a verdade de
cada um. Bem, devo dizer que não acredito em verdades, quanto menos
nas absolutas.
Por
isso o filme me tocou tanto. Porque pude ver ali, mais uma vez e
sempre, que a infância é o meu lugar. Como diz Mia Couto,
“velhos são aqueles que não visitam as suas própriasvariadas
idades”. Não quero crescer nunca, porque quando a gente
cresce o coração fica duro, se corrompe. E só gosto de gente que
não tem medo de ser assim, mergulhada na sua pequenez. Somos
pequenos diante da imensidão do mundo, dos Outros, dos desejos. Mas
por trás dessa imensidão há uma outra, há uma vastidão de
matéria da mais elevada qualidade: um nada corporificado, cheio de
substância, de sustança. Estar no lugar da infância –
questionador, perguntador – pode ser perigoso. Há verdades que
preferiríamos não saber. Mas o que mais tentamos sufocar embaixo do
tapete, é isso mesmo que volta, se revolta e quer saber.
Desejo
feliz dia das crianças para todos aqueles que não perderam a
capacidade de amar, que não pararam de perguntar, pois estar no
lugar da infância, pra mim, é justamente isso.
Isloany
Machado, 11 de outubro de 2014.
Trailer do filme
Isloany Machado é Psicanalista, Escritora e Professora da UFMS. Membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano – MS. Especialista em Direitos Humanos pela UFGD e em Avessos Humanos pelo Ágora Instituto Lacaniano. Mestre em Psicologia pela UFMS. Despensadora da ciência e costuradora de palavras por opção, é autora do livro “Costurando Palavras” (ed. Life, 2012) e fundadora do blog www.costurandopalavras.com.br
O
filme em questão nessa edição é “O Segredo dos Seus Olhos” de
Juan José Campanella, maior audiência nos cinemas argentinos em 35
anos. Ricardo Darín interpreta Benjamín Espósito, que aposentado
escolhe para tema de seu livro o caso criminal que mais marcou a sua
carreira no Tribunal de Buenos Aires. Na organização dos fatos
rememorados, ele revê o homicídio investigado em 1975 e termina por
repensar as decisões feitas no passado.
Discutiremos
a saga do protagonista na busca pela letra do seu desejo. Na
oportunidade de escrever o romance de sua vida, ele percebe, como em
um jogo de espelhos, como os personagens movidos por olhares,
intenções e paixões, se denunciam.
“Entre
o homem e o amor,
Há
a mulher.
Entre
o homem e a mulher,
Há
um mundo.
Entre
o homem e o mundo,
Há
um muro”
Antoine Tudal
O
muro
Impacta
o impedimento que Espósito vive em relação ao amor. Como se
houvesse um muro, quase palpável para o espectador, o protagonista
se aliena da sua condição desejante. Essa (im)possibilidade
angustia.
Espósito
se apaixona por Irene na primeira vez que a vê, quando ela ocupa o
cargo de chefia em seu cabinete. Desde então eles mantém uma
relação estreita, mas ele é claramente ambivalente em relação a
ela.
O
protagonista fica paralisado perante o pedido de amor.
O
amor
TEMO,
é a palavra que acorda nosso protagonista no começo do filme e o
faz estranhar-se. O que há nisso? É como ele soubesse, sem saber,
que havia algo ali. Na palavra, uma brecha, uma fissura, que o faz
movimentar-se. O que há por trás da vontade de escrever o livro?
Ele é o autor de que história?
É
nesse ponto e com essas perguntas que seguiremos o percurso do
bilhete: TEMO.
Somos
levados a pensar que o remetente é algo ou alguém em Espósito, ele
próprio autor e endereço dessa mensagem. A saga segue no sentido de
recuperar a “letra enigma”, a letra “a” faltante tantas vezes
em sua escrita e em sua máquina de escrever.
A
letra que foi perdida, mas que paradoxalmente, está lá o tempo
todo, pedindo um leitor, olhos que a leiam. Talvez essa seja “a
pergunta de seus olhos”, nome da novela de Eduardo Sacheri que deu
origem ao filme, oportunamente reeditado. Em castelhano e em
português o pronome possessivo “seus” não indica gênero, pode
ser dele, dela, de outro, ou dos demais.
Os
olhos circunscrevem um lugar, diferente do olhar, circunscreve um
campo de experiência, de tensão do não-dito: sua intensidade, sua
atmosfera, sua melodia, a espessura do vivido, e assim, denunciam o
impedimento, a inibição, a paixão.
Podemos
dizer que esse é um filme sobre paixões: a de Espósito por Irene,
a de Morales por Liliana, a de Sandoval pela bebida, a paixão pelo
futebol. “Podemos mudar tudo na vida, menos mudar de paixão”,
nessa fala a pista que ajuda Sandoval e Espósito a capturarem o
assassino. Por que não muda-se de paixão? Onde ela captura? No
objeto perdido, o objeto a, que causa.
Espósito
se identifica com Morales, que para ele é o homem que realmente ama,
ele diz sobre Morales: “ele está sempre em um estado de amor puro,
posso ver em seus olhos”. Mas o que será esse estado puro,
absoluto que é visto por Espósito no olhar de Morales? Espósito
quando fala de Morales, fala de Espósito não de Morales... No olhar
algo do insconsciente está posto.
O
amor puro só poderia ser a morte, a prisão que encarcera o
carcereiro junto ao assassino. Já que a justiça não garantiu pena
justa a Gomez, Morales resolve fazer justiça e dá sua medida ao
castigo: prende o assassino e o priva de sua palavra. Nessa recusa da
palavra, o apagamento do sujeito. É como se Morales quisesse negar
existência a Gomes, mas não com a morte, com a prisão perpétua da
morte em vida, o que é muito pior.
Ao
se deparar com a miséria da prisão imposta pela paixão do
carcereiro e do assassino, Espósito se depara com a própria
prisão-paixão e consegue sair dessa posição. Recupera a letra e
então pode lê-la, por “mais complicado que possa vir a ser”,
ele não se importa mais: de TEMO à TE(A)MO, o percurso para uma
condição desejante.
São
Paulo, 29 de Julho de 2010
Trailer Oficial do Filme
Endereços/links para filme completo com legenda: https://www.youtube.com/watch?v=03QTWAd9qtg
e https://www.youtube.com/watch?v=e6Yb_FP7hMY
Aline
Fiamenghi é praticante da psicanálise, mestre em psicologia clínica pela PUCSP, coordena
o trabalho de Imaginação e(m) Movimento a partir de seus
conhecimentos em consciência corporal, movimento autêntico e dança
contemporânea. Participa da rede de pesquisa Sintoma e Corporeidade
no Instituto da Pele - UNIFESP e das Formações Clínicas no Fórum
do Campo Lacaniano - SP.
excluem
a chance de um acerto de contas completo, sem resto.” Oscar Cesarotto
O
filme "Philomena" do diretor inglês Stephen Frears, com quatro indicações para
o Oscar em 2014,
além de carregar seu nome, foi inspirado em sua vida. Até
dá para pensarmos que é quase um documentário, mesmo com as
pitadas de humor(?) que o diretor - proposital ou não - insiste em
amalgamar com a crueza da vida como ela é. Mas afinal, a nossa vida
não é um documentário ficcional? A nossa própria história
“verídica” também não é uma ficção, visto que sua tessitura
é permeada pela fantasia?
E
este excelente filme bem demonstra o lugar de importância que a
fantasia ocupa em nossas vidas. Trata-se de um lugar que tenta nos
fazer esquecer a máxima de Hélio Pellegrino: “a condição humana
não tem cura”. Pois, a fantasia consegue, de acordo com o
enunciado freudiano, produzir uma satisfação que é negada pela
realidade. Pensando com Coutinho Jorge, a fantasia é uma solução
para nós sub-existirmos com um minguado de satisfação que podemos
retirar da realidade. Contudo, não é propriamente da fantasia que
vou tratar aqui, mas, sim, recortar um afeto tão presente no filme e
caríssimo para os neuróticos (no mínimo, somos neuróticos): a
culpa.
Bem,
como já disse, o filme é baseado na história real de Philomena
Lee, uma senhora irlandesa que teve seu filho de três anos de idade,
Anthony, “adotado” em 1955 por uma família organizada de acordo
com os padrões de sua igreja. E por saber que se tratava de uma
história verídica e, concomitante, não pertencente exclusivamente
à personagem que dá nome ao filme “Philomena”, causou em mim
uma indignação tamanha, que só escrevendo sobre para, quiçá,
elaborar melhor. E o filme tem muito disso, luto e elaboração, luto
e elaboração, luto e elaboração...
Porém,
confesso que não foi nada fácil digerir que o acontecido não foi
na idade média, mas na metade do século passado. Porém, pior é
saber que em pleno século XXI, ainda acontece esse tipo de barbárie.
E minha indignação –
raiva e repulsa – aumentou mais além, quando fiquei sabendo,
diga-se de passagem, que mais
de duas mil (2.200 mulheres/mães, segundo a Folha de S.Paulo)
conterrâneas de Philomena – irlandesas como ela – tiveram a sua
mesma má sorte, a de vivenciarem a adoção forçada pela igreja
católica irlandesa - na realidade, vendidos - de seus filhos por
pais norte-americanos endinheirados.
Após
este meu desabafo (eu precisava disso), vamos ao filme...
Mas,
antes de adentrarmos na história apresentada, só um
lembrete que considero importante mencionar: vamos tratar aqui da história retratada no filme, somente dele.
Bem,
dito isso, a primeira cena com a protagonista mostra Philomena -
idosa e nos dias atuais - numa igreja acendendo uma vela e
respondendo ao padre que era para alguém especial. Em seguida, o
diretor mostra-a sentada em um banco eclesial relembrando um grande
acontecimento de sua vida. Via flashback,
ela
se vê vivenciando um momento raro seu de intensa felicidade, que a
marcou para sempre e de várias maneiras. Um rapaz galanteador que
conhecera momentos antes, no parque de diversão nos anos 50, no qual
se encontrava, a corteja. Philomena, uma feliz menina moça do
após-guerra, experiencia pela primeira vez um romance tórrido,
abrasador e -
talvez por isso mesmo -
fugaz. A sua maçã de amor mordida é destacada ao cair no chão.
Igreja + padre (pai) + maçã = Eva + pecado original? Temos aí uma
intenção do diretor?
Stephen
Frears, o diretor, avança nas lembranças e nos mostra Philomena, já
grávida, sendo inquirida pela madre superior do mosteiro, a Abadia
Roscrea. Um local religioso que recebia futuras mães solteiras,
levadas por suas famílias envergonhadas. E, logo no início da
inquirição, a tal madre dirige esta pergunta a Philomena: “Você
gostou de seu pecado?”
um
pequeno parênteses aqui
Interessante
a palavra pecado (pe-cado): pé caído; pecar: dar um passo em falso,
palavras que fizeram, segundo Geraldino Alves Ferreira Netto, surgir as expressões “queda original” e “cair em pecado”. Geraldino
ainda nos lembra de Édipo, “pé inchado”, pois seus pés foram
amarrados “para não pisar em falso, cair em pecado, em erro de
julgamento, em incesto”. Porém, o pé inchado o fez mancar.
Continuando
na Inquisição, êpa, na inquirição, Philomena tenta se defender,
já quase em prantos: “Nunca me ensinaram sobre [fazer] bebês”.
Defesa esta que faz a madre, de bate-pronto e com língua
incendiária, culminar: “Não ouse culpar as irmãs (sic). Você é
a causa desta vergonha. Você e sua indecência.”.
Em
seguida, outro corte e o diretor avança mais um pouco na linha do
tempo mostrando a cena do parto. Parto este - pélvico e sem
anestesia - sendo realizado pelas próprias freiras. Mas, diante da
constatação que o bebê de Philomena - aos berros pela dor - se
encontrava em posição invertida, uma das freiras, acho que a
parteira principal, sugere para a madre superior chamar um médico.
Porém, ela recusa a proposta dizendo: “Está nas mãos de Deus
agora. A dor é a penitência dela”. Crime e castigo? Sim !!! Philomena foi considerada culpada pela madre superior e o parto
doloroso era somente o inicio de sua pena.
outro parênteses aqui...
Ceder
ou não ao desejo? Talvez este seja o ponto fulcral das divergências
entre a psicanálise e a religião, como nos lembra Geraldino Netto,
visto que - generalizando - para as religiões a culpa é
decorrência de ceder ao próprio desejo, enquanto a psicanálise, através de Lacan, nos
ensina o contrário: “a única
coisa da qual o sujeito pode ser culpado é de ter cedido de seu
desejo”, em A Ética da Psicanálise.
Mais
um corte do diretor proporciona o retorno de Philomena ao sofrimento
atualizado pelas lembranças. Era o dia no qual seu filho Anthony
completava 50 anos que provocava tamanha dor. E ela carregava o
segredo de ter tido este filho por todo esse longo tempo, mais o fato
dele ter sido “doado” contra a sua vontade. Sim, de ter tido o
filho e não dito ao mundo sobre sua existência, a de Anthony, mais
a tentativa, via resignação, de aplacar sua dor, mais o fato
não ter ido procurá-lo, de nada saber e ou não querer/poder saber sobre
o filho, era o seu martírio (em botânica, flor-da-paixão). Essa
era a pena a cumprir. Mas, o que fazer? Afinal, a sentença da
madre superior fora dada e Philomena não sabia como pensar e fazer
diferente, principalmente diante do mundo no qual
vivia.
Até se deixou convencer de sua culpa, assinando um documento padrão
- produzido pelas freiras para as mães solteiras - desistindo da
guarda de seu filho. O mesmo serviria posteriormente para impedir
essas mães a voltarem atrás de suas decisões e, ao mesmo tempo,
protegeria as “irmãs” de seus atos criminosos.
Só
que meio século depois ela cansou de pagar esta dívida impagável,
imposta pelas normas sociais e religiosas de sua época. E, talvez,
por viver agora no presente, numa sociedade um pouco mais branda em
relação ao seu pecado, mãe solteira, lhe tenha dado a coragem
necessária de, enfim, lutar a favor de seu desejo.
um
aparte...
Aqui
tem um fato indicando que a culpa pressupõe um Outro. Não um outro
qualquer, mas um grande Outro. Lembramos que geralmente a mãe é
nosso primeiro de muitos Outros (mãe, pai, tio, professor, padre,
igreja, Deus, empresa, sociedade, capital, etc...), em termos de
importância para cada um de nós. De acordo com Colette Soler, “há
uma culpa em relação às normas do Outro” e esta, a culpa, “se
desloca quando as normas mudam”. Portanto, podemos pensar que a
culpa tem íntima ligação com o Outro, com suas normas e ideais.
Culpa,
dívida? Shuld, na língua do pai da
psicanálise, a língua alemã. E as línguas
germânicas permitem a uma única palavra fazer uma sobreposição de significados. Esta sobreposição encontra na
formulação da metapsicologia freudiana sua parente, a angústia.
Mas não qualquer angústia e sim um tipo especial, a produzida pelo
supereu (superego).
Em
“Declinações da Angústia”, Soler nos diz que esses afetos, a
culpa e a angústia, mesmo sendo diferentes são irmãos, pois se
avizinham, seguem-se e se combinam particularmente “nos sujeitos
que são fortemente submetidos à voz do supereu”. E com este “não
há perdão, não há circunstância atenuantes: não se escapa da
prisão com o supereu!”. Ainda com a autora, a diferença entre os
afetos superegoicos é que a culpa engana, não produz certezas, já
a angústia produz. E as angústias do supereu são as mais
ferrenhas e talvez, também, as mais “devastadoras” e
“aberrantes”. Entretanto, a culpa, como a psicanálise nos ensina, é fundante da subjetividadee o seu fundamento não está ligado ao fato de gozar e sim ligado ao fato - Lacan em "Subversão do sujeito", segundo Colette Soler - que o gozo é sempre perdido, parcial, limitado e insuficiente. Ligado "a falta do gozo", a falta.
E nós, neuróticos, privilegiamos "as
formas de gozo que participam da privação: o gozo da falta de
gozar". Isso significa que nos é impossível evitar a culpa? Essa é nossa pena? A pena de existir ? S.Paulo,
maio de 2014
"(…)
É necessária apenas uma condição: que haja sintoma analítico e
que haja sofrimento no sintoma, que ele se apresente como desprazer.
Isto basta para implicar a transferência e colocar em marcha a
experiência."(Miller, 1999, p.55)
Confidences
Trop Intimes ou Confidências Muito Íntimas
de Patrice Leconte é uma original história de descobertas entre
analista e analisando. A dupla é formada por Anna e William.
Ela (Sandrine Bonnaire) linda, em torno dos 35 anos vive um momento
difícil no casamento. Ele (Fabrice Luchini) aparentemente leva uma
vida presa às convenções e tradições, advogado tributário
engravatado, solitário e recentemente terminou um relacionamento com
Jeanne que o deixou por um personal trainer. Patrice
Leconte, com leveza, mas sem tirar o tom reflexivo imposto pela
situação de sofrimento que leva alguém a buscar um psicanalista
nos mostra o encontro inusitado de Anna e William. Como quase
sempre nos filmes franceses, os diálogos são intensos e bem
elaborados. Não há nenhuma cena de sexo durante o filme
todo, o erotismo é sutil, está nas palavras ditas, nas não ditas,
olhares, respirações, lances e relances.... rápidos ou lentos como
se o tempo fosse suspenso. Em tudo assemelha-se à experiência
analítica. Anna
tem uma sessão de análise agendada para aquele final de tarde de
chuva em Paris. As muitas camadas de casacos e cachecóis
pesados fazem pensar em empacotada, ou revestida e protegida antes de
propriamente vestida. Ao entrar no edifício de escritórios pede
informações para a concierge e um pequeno mal entendido a leva ao
escritório de William , advogado tributarista que fica no mesmo
andar do consultório do psicanalista Dr Monnier (Michel
Duchaissoy). A
surpresa que mudará a vida de ambos bate a porta de William,
um solitário. A
primeira vista, o local lembra um ambiente analítico, luz fraca,
sóbrio, um divã, um telefonema que o advogado recebe e de sua
conversa pode-se depreender que fala do estado de um paciente moldam
para a angustiada Anna a certeza de estar frente à um
psicanalista. Ele,
sem imaginar o engano, propõe um preenchimento de ficha com dados
pessoais. Imediatamente, segue-se a fala de Anna dizendo que está
com problemas conjugais, e que não tem tido contato sexual com o
marido. Além disso, diz, ''ele poderia fazer de outro modo,
mas já não me toca não me beija, não acaricia (…) Sinto falta
de como éramos juntos." Anna
está sem âncora, sem ''amarração'', já não se conhece
mais...''temo que vou enlouquecer, não tenho com quem falar.'' Meu
marido não permite que fume, não gosta que trabalhe, ao que o
advogado analista replica: e do que mais ele te proíbe? Porque não
procuras a liberdade?
E
ela subitamente interrompe a sessão dizendo ''não estou acostumada
a falar de mim'' e sai correndo do escritório de William.
Ele
a escuta sem julgamento e sem muito a dizer, originando o inicio de
uma comunicação entre o par. Os inconscientes se conectam
como algo que se ''engancha '', e se permeia, como a onda na areia.
Silêncios, palavras não ditas, respirações, lágrimas,
interditos, espaços, pontos, e a dinâmica para a experiência
analítica se estabelece. Se ela busca explicações e sentido para
seu sofrimento, o silêncio do advogado é a mais perfeita resposta
(não há sentido e tampouco explicações para o encontro com o
Real), mesmo que involuntária e causada pela perplexidade
frente a surpresa de uma mulher lhe confidenciando segredos sexuais
íntimos. O
casamento vai mal, seu marido já não tem relações sexuais com
ela, e está obcecado com a ideia de vê-la ''fazendo amor'' com
outro homem. A primeira '' sessão'' termina com a segunda
''sessão'' sendo devidamente agendada por Anna que sugere o dia e
hora enquanto pega o talão de cheques para pagar . Único ato falho
do filme é que se Ana pagou com cheque, então não haveria razão
para mais tarde quando ela falta à terceira sessão, William tentar
descobrir o nome dela nas agendas do consultório do vizinho
psicanalista Dr. Monnier. Na
segunda visita, ele tenta revelar que não é um analista, ela sai
correndo como se adivinhasse o que ele iria dizer , mas não quisesse
saber para não destruir o que havia começado.
A
química entre os dois atores funciona muito bem, a chuva e a meia
-luz dão o toque misteriosos e muito íntimo as confissões. O
filme parece feito em camadas têxteis e de cores, enquanto as roupas
de Anna que começam a ser descascadas e diminuem de volume. A
estação muda do inverno para a primavera, as camadas do filme
também vão diminuindo e aos poucos deixam vislumbrar o que
realmente está acontecendo. Ao
escutá-la atentamente, William sem saber se coloca na posição de
analista. Agora temos o analista, a analisanda, e o que era
apenas signo, antes do encontro com o analista, é agora sintoma
analítico no momento em que é formulada a questão ''o que e isso?,
o que está acontecendo comigo?
É
isso que Lacan quer dizer com a formulação “o analista completa o
sintoma.'' - que corresponde ao discurso da histérica, de acordo com
Antonio Quinet. Uma
das intervenções (William sem saber encarna a douta ignorância com
maestria) que ele faz - ''você não gostaria de uma mudança?'' -
possibilita a Anna uma abertura para ao menos pensar na existência
de outra vida. Anna, enfraquecida e insegura, na infância
levava uma vida instável com mãe desequilibrada acha no casamento
com Marc um porto seguro. Na
terceira sessão, para tristeza e surpresa de William, Anna falta.
Ele tenta descobrir quem ela é revistando as agendas do Dr Monnier,
sem resultados. William,
confuso com os acontecimentos, busca no Dr. Monnier uma resposta ou
talvez uma autorização para poder continuar seu oficio de analista
de Anna. Na conversa entre eles, o analista cita Baudelaire ...
''divãs profundos como tumbas'' e conclui ''ela achou em você,
William, um ouvido disposto, já que as pessoas perderam
a arte de escutar, nem o garçon, nem o barbeiro querem escutar...''
. Pontua para o advogado que toda essa situação não diz respeito
apenas aos problemas de Anna e sim aos problemas de ambos. O
psicanalista faz ainda uma analogia entre o ofício de tributarista e
o de analista '' seu negócio não é diferente do meu.....o que
declarar, o que ocultar....''. Cobra 120 euros de William. Anna
retorna ao escritório de William e diz que está se sentindo violada
e suja por ter contado seus segredos a um advogado tributarista..
Muito angustiada, parte rapidamente só para a noite voltar e bater à
porta dele para se desculpar e marcar nova sessão. Comparece, fala
vagarosamente da infância, do professor de ballet (''primeira
pessoa que realmente me olhou'') e executa alguns passos de ballet
clássico para William que a olha encantado. Era disléxica, não
conseguia ler, contar. A
certa altura,
Anna pega da estante um livro, ''The Beast in the Jungle'', mas não
há no filme qualquer referência ao autor, Henry James. Interessante
dizer que a trama do livro é sobre uma confidência íntima.
Anna devolve o livro
no dia seguinte dizendo que a história é triste e que não gostou
do final. Ao
ficar só William dança completamente ''solto'' ao som da música
''Midnight Hour'', numa cena muito bonita, e que mostra as mudanças
que vem acontecendo em sua vida. Enquanto dança tira o paletó,
a gravata e é como se ele, assim como acontece com Anna, também
ficasse mais leve. Ele havia sido questionado por Anna sobre estar
sempre engravatado, e assim mais uma ''camada'' se dissolve.
Ele 'se livra' de um portrait de mau gosto que tinha no escritório
enquanto Anna vai se tornando mais e mais leve e sexy sob a escuta e
o olhar atento de William. A dança , a mudança na decoração do
escritório já denunciam uma mudança psíquica. A
arte da escuta sem julgamento, os silêncios e ausências de
respostas vão criando as condições para que alguns efeitos
terapêuticos comuns no início do trabalho analítico aconteçam. O
coração do filme se revela muito nítido a medida que se despe do
peso do obscuro. Não é sobre a fidelidade conjugal , e sim,
sobre a intimidade, a profunda conexão entre duas pessoas que
precisam urgentemente alargar os horizontes de suas vidas. Anna
proibida de fumar e dirigir pelo marido, porém incumbida pelo marido
a ter sexo com outro homem e William no ''piloto automático'' ou
autômaton, seguindo a mesma vida que seu pai levava, mesmo lugar,
mesma profissão, tradição, fora da invenção. A
psicanálise diria que ambos necessitam da flechada de Eros, da
tiquê, do toque do não sentido e da ética do bem dizer seu
desejo. Diz
o diretor Leconte, ''Anna e William são um par reservado que se
encontram e descobrem uma fome comum para algo além de suas vidas
sufocantes.'' No
decorrer das sessões descobrimos que o marido de Anna está
impotente há seis meses, desde que ela ao dar a marcha ré no carro
o atingiu e ele teve suas duas pernas esmagadas entre o carro e a
parede. Ele está convencido de que assistir Anna ter relações
sexuais com outro homem poderá fazê-lo voltar ao normal.
Para satisfazê-lo Anna diz a ele que está tendo um caso com seu
analista. A mentira excita Anna que confessa a William ter tido
um orgasmo na banheira após mentir para Marc. Eventualmente, Marc
cura-se da impotência quando aluga um quarto em frente ao escritório
de William e instrui o mesmo, por telefone, a assistir pela janela do
escritório ele e Anna fazendo amor. William, excluído como o
terceiro, assiste a cena primal. William que estava amando Anna
fica tão perturbado com a cena que diz a ela na seguinte sessão:
''você pode falar tudo, mas eu não posso ouvir tudo.'' apesar de
estar na posição de analista faz uma desanálise neste
momento.
Anna
ao saber do telefonema de Marc para William, despede-se do advogado,
e diz que é o último encontro deles. ''Estou recuperando
minha liberdade." Ao que William pergunta: e nós? nossas
conversas? Ela responde que já disseram tudo um para o outro.
Desejando à ela que seja feliz, ele a beija e ela parte andando
lentamente pelo corredor do prédio, agora iluminado, mais vivo e
colorido.
Análise
terminada com sucesso. Ou análises terminadas com sucesso. Antes
de sair de Paris ela deixa uma mensagem dizendo que nunca se sentiu
tão confortável com alguém e que graças a ele, ela não é mais
uma garotinha. O papel de Anna na análise de William foi o de
se fazer desejável para ele e com isso ser o estopim para que ele
deixasse de ser tão rígido, tão automático, tão insípido, tão
sem desejo. Segundo
Adam Phillips, '' psicanálise é o que duas pessoas podem dizer uma
para a outra se concordarem em não ter sexo.'' Para Anna e
William, o lugar da fala e da escuta mútuas e o jogo onde os dois se
revezam na cadeira/posição do analista, traz para a vida o
potencial de cada um para curar suas próprias feridas, e ao se
afastar do seguro e conhecido, achar um caminho e viver que pertence
só à ele , ou só à ela. Juntos?
Talvez
esse filme ( Confissões Muito Íntimas) ajude a entender que uma
análise é uma situação fundamentalmente assimétrica, na qual
alguém ali (que chamamos de analista) coloca-se disponível para
mostrar àquele que, justo por ter-se
enganado de porta (tal
como a personagem Anna), pode então reconstruir os caminhos
desse engano – engano que, não custa lembrar, um dia Freud chamou
de “falsa conexão”. E como o analista faz isso?
Ele o faz por
meio de uma escuta que, se parece marcada por uma desconcertante
falta
de saber o que dizer–
tal como o personagem William Faber, no filme –, não o é por
outra razão que aquela que permite ao paciente encontrar o que ele
próprio já sabia, sem saber que o sabia, sobre si mesmo.''
Ana Cecilia Carvalho no texto ''O Ofício do Psicanalista.''
William
também deixa Paris e vai ao encontro de Anna que está dando aulas
de Ballet em alguma cidadezinha na França. Envia a ela um
bilhete avisando que a está esperando e ela vai ao encontro dele.
Ao reencontrá-lo, ela pergunta: onde nós estamos? e deita-se
imediatamente no divã. William senta no divã junto a Anna e
começam a conversar. Não se pode ouvir a conversa dos dois, a
tomada da cena é feita de longe, como se fosse do teto e logo após
eles desaparecem da cena, nos deixando somente com a imagem do
consultório vazio, é como se tivessem ido para outro lugar quem
sabe fazer amor, pois como nos diz Miller (...) é uma experiência
(a Psicanálise) cuja fonte é o amor. Trata-se desse amor
automático, e frequentemente inconsciente, que o analisando dirige
ao analista e que se chama transferência." Na
cena final o novo escritório de William parece iluminado, aquecido,
colorido, vazio de histórias e fantasmas, e com potencial para o
novo, o acaso, a surpresa, a vida como ela é para os que suportam o
encontro de si mesmo, o encontro com seu estranho mais íntimo e a
partir disso, reinventar-se. E
como final de análise dos dois seria bom imaginar que encontraram o
amor, que como nos diz Forbes : "Amor é encontrar um sentido
para si mesmo, através do Outro."
Filme completo
Graça
Nunes é
Psicóloga,
Psicanalista, frequenta aulas e sessões clínicas
do IPLA (Instituto da Psicanálise
Lacaniana)
sob a direção de Jorge Forbes, em São Paulo.
Esse
filme nos fala sobre a solidão humana, o amor e a tecnologia.
Sob
a direção de Spike Jonze, que também dirigiu “Quero ser John
Malkovich”, o filme HER nos conduz através de uma história
repleta de sutilezas da imensidão humana, numa poética que nos traz
um mundo tanto futurista, em aspectos tecnológicos, quanto antigo no
que diz respeito a valorização de um certo sentimentalismo que
aparece desde as cartas feitas a mão até ao estilo anos 30 do
figurino.
Numa
Los Angeles futurista, Theodore Twombly, brilhantemente interpretado
por Joaquin Phoenix, trabalha num site que vende o serviço de
criação de cartas. Através deste, um remetente qualquer pode
enviar lindas cartas para agradar o seu destinatário. O nome do
site: Handwrittenletters.com (cartas manuscritas na tradução
livre).
Habilidoso
com as palavras, Theodore faz uso das sutilezas humanas para elaborar
suas cartas. Recentemente separado, sofre sua perda, dividindo seu
tempo entre o trabalho, jogos de vídeo games, raros encontros com
amigos e sexo virtual. Uma mudança em sua rotina acontece quando
ele compra um novo sistema operacional para instalar no seu
computador pessoal, seu celular e outros dispositivos eletrônicos.
Esse sistema, uma inteligência artificial, foi desenvolvida para
conhecer ao máximo o ser humano, com o objetivo de “conhecer tudo
sobre tudo”.
A
inteligência artificial, ou OS como é chamada no filme, aos poucos
passa a fazer parte da vida de Theodore. Numa precisão e velocidade
só alcançada mesmo por uma máquina, o programa começa a organizar
a vida de Theodore. Desde limpar sua caixa de e-mails, verificar seus
contatos da agenda, lembra-lo de seus compromissos, etc. Pouco a
pouco se aproxima de sua intimidade, e assim, Theodore se apaixona
por Samantha, nome dado a voz do sistema operacional, interpretada
pela doce e sensual voz de Scarlett Johanssan.
Samantha
quer vasculhar cada canto da existência humana para saber o que
seria existir. Desta forma, Theodore passa a mostrar-lhe o mundo
através de seus olhos e de seu corpo, conduzindo-a a novos
universos.
A
solidão de Theodore começa a deixa-lo. Samantha o acompanha a todo
momento. Desde o acordar pela manhã até o horário de dormir. Em
contrapartida, ele apresenta à Samantha a sensação de estar no
mar, na rua, no campo. Nesta relação, o fato de Samantha não ter um corpo para vivenciar estas experiências, não impede que haja uma
paixão entre ambos.
Diante
de um homem com a sensibilidade a flor da pele, escritor de cartas
elaboradas para tocar o outro, nosso protagonista se encontra com
aquilo que poderia traze-lo a tão almejada completude. O encontro
com um outro que não lhe falta “nada”, a não ser um corpo. Uma
voz que está sempre presente, pronta para lhe falar e, além disso,
também ouvir. Até mesmo para agir quando lhe falta coragem.
Será
que a tecnologia poderia encontrar um substituto para nossos próprios
corpos errantes e sem rumo? Corpos à procura de uma estrada para
seguir, num universo sem placas de sinalização. Samantha parece
proporcionar conforto como um semelhante, ou seja, como qualquer
outro à procura da resposta do “que é ser humano ?”.
Diante
tudo isso, Theodore não escapa da ilusão de completude e se
apaixona por Samantha, assumindo publicamente seu relacionamento
amoroso por uma OS. Mas, Samantha o decepciona quando lhe conta que
conversa com outros, além de estar apaixonada por mais pessoas.
Depois disso o deixa, com a intensa dor de um termino, avisando-o que
irá se retirar do seu mundo (de Theodore), junto com outros sistemas
operacionais, pois encontrou um lugar no “espaço infinito entre as
palavras” - já falando a partir dele. E finaliza a conversa
explicando que esse “lugar não está no mundo físico. É onde
todo o resto está e eu [Samantha] nem sabia que existia”. Que
lugar seria este entre palavras?
E
é com o desfecho do filme que ficamos a nos perguntar que diante da
fala sobre o desamparo e a solidão nos tempos atuais,
imaginariamente, se idealize de forma mais intensa, relações
perfeitas com um outro que possa nos completar. Integralmente. Porém,
o filme nos mostra que no amor, seja ele entre humanos ou entre
humanos e máquinas, não existem garantias, mesmo que as máquinas
sejam construídas para alcançá-las. Até porque, -
se isto for possível e numa provocação à futurologia -
por ser construídas /
criadas
por humanos, a constituição das OSs já traria
em seu âmagoa falta
como elemento fundante?
Enfim,
citemos o sábio poeta, Vinicius de Moraes, que já dizia, “que
seja eterno enquanto dure”.
Trailer Oficial do Filme
Priscilla Cheli é psicanalista com pós-graduação em psicologia clínica pela PUC-SP.
The
Fall (2008), dirigido por Tarsem Singh e inspirado na peça de Yo
Ho Ho de Valery Petrof é um exemplo contemporâneo de como o cinema
consegue apresentar o problema da co-presença de perspectivas.
“Dublê de Anjo”, segundo a versão nacional, é inteiramente
inspirado naquilo que, sendo condição de possibilidade prática
para a realização do cinema de aventura, não deveria ser percebido
como fazendo parte dele, ou seja: a figura do dublê. Lembremos que a
ideia de um ator que substitui outro, sendo o truque desapercebido ao
público aparece de modo contundente em momentos estratégicos na
história do cinema, como em Um Corpo que Cai (Vertigo)
de Hitchcock ou Aconteceu naquela Noite (Blow up) de
Antonioni. Filmado em mais de 18 países trata-se de uma produção
da Googli Film. Googli é uma expressão neológica, quiçá
alusiva a esta nova forma-saber chamada Google, representado no
próprio filme como “a coisa” da qual Alexandra, a menina
protagonista, tem medo e horror, o Googli-Googli. Alusão ao
terrível e impossível encontro entre a criatura e seu criador.
A
atriz mirim romena (Catinca Untaru) é levada a acreditar, durante a
filmagem, que o ator principal (Lee Pace), que interpreta um
paraplégico, é de fato paraplégico. Temos então expressa uma
intenção realista extrema de fazer coincidir a representação dos
personagens com a crença dos atores. Como ela diz: “A história
é só um truque para você fazer um favor para mim”.
O
enredo apresenta uma menina de sete anos que perdeu o pai e trabalha
com a mãe em uma plantação de laranjas na Califórnia dos anos
1920. Depois de um acidente [Fall] Alexandra encontra com um
ator dublê, acidentado e envolvido em profunda melancolia. Ele ama a
mulher que pertence ao herói galã, de quem ele é o dublê em um
filme de Faroeste nos tempos da aurora holiwoodiana. Alexandra e
nosso dublê tem algo em comum: ambos perderam um objeto de amor e
sofreram eles mesmos uma queda real, a menina está com o braço e
ele com a perna quebrada. Estão às voltas tanto com a elaboração
de um trauma quanto com o concomitante trabalho de luto.
Estão
ambos em um hospital povoado por figuras mitológicas como a
enfermeira Evelyn, que poderia substituir o amor perdido pelo dublê,
o médico caridoso, que poderia ser o dublê do pai perdido por
Alexandra, e o terrível minotauro mascarado, o homem do Raio X, o
homem sem rosto destruidor de amores, fonte indutora da
indeterminação entre familiar e estrangeiro (Unheimlich), de
angústia (Angst) e de pavor (Schreck).
A
relação entre Alexandra e o dublê se estreita porque estão ambos
em convalescença por causa de uma queda (Fall): cair de amor,
cair das folhas de outono, cair e quebrar o corpo, fall in love,
tombeaux amroreause. É também por meio de um truque, de uma
“manipulação” que o dublê faz a menina encontrar e trazer o
remédio [pharmakon] com o qual ele tenta se matar, ou se
curar.
Neste
ponto de cruzamento de duas perspectivas a história se dobra em uma
outra história. História que o dublê inventa e conta
compartilhadamente para Alexandra e cujo adiamente do canclusão,
qual Sherazade, a coloca a “fazer coisas em nome de”. Nesta
história fantástica, dentro da história realística, aPrincesa
Evelyn, enfrenta o Bandido Negro (Black Bandit) e o
Governador Odious em uma aventura maravilhosa por castelos, mares,
desertos e jardins distantes.São as aventuras de cinco
heróis que tentam libertar a princesa do jugo de um vilão. No
trajeto há a inclusão de dois novos personagens Aborígene e a
Alexandria. Alexandria: como não lembrar aqui do Farol que guiava os
antigos navegadores egípcios e onde se localizava a grande
biblioteca, depositária das histórias da antiguidade. A entrada de
Alexandria, na história corresponde a uma nova reversão que nos dá
agora uma história dentro de outra história que inclui o narratário
a quem a história se destina. Uma vez incluída a pequena
protagonista descobre que ela mesma pode ingerir em certas partes dos
acontecimentos, reduzindo impasses e “curando” o seu antes
solitário e soberano narrador. Temos então um estado de coisas que
introduz uma quarta perspectiva, meio joyceana: de narratária ela
passa a co-autora e co-narradora.
A
saga épica termina em um romance que conclui-se com a união entre a
Princesa Alexandria e o Bandido Mascarado. Mas há ainda um ponto de
convergência entre as quatro perspectivas: da história vivida no
hospital (entre médicos e enfermeiras), da história das quedas
lembradas (perda do pai e da amante), da história das aventuras
futuras (o romance imaginado) e da história da cura cruzada operada
entre o dublê e a menina, que é também a perspectiva da realização
do filme de Faroeste que vemos projetado ao final (a indeterminação
narrativa). A passagem entre cada uma destas perspectivas está
marcada por um ponto de angústia, que se liga a procedimentos
formais específicos da linguagem fílmica: repetição (Alexandra =
Alexandria), deformação (o Homem do Raio X = Herói Mascarado) e
subtração (a morte real dos ajudantes = morte possível do dublê)
. Este ponto irrompe violando a realidade diegética de cada uma das
perspectivas ou dos “mundos” que o filme cria e interpenetra. Não
há metalinguagem porque somos todos dublês e todos caídos. Não há
metalinguagem porque a fantasia fracassa e é nestes fracassos que
ela se torna tão mais útil do que em seus sucessos.
Há,
portanto, e ainda uma quinta realidade em jogo. A do filme real que
está sendo produzido, no qual nosso protagonista, dublê e herói.
Uma história que é a um tempo lírica, dramática, épica e
trágica. Se estamos aqui também na história das origens do cinema,
uma quinta “realidade” que só pode ser unida ou cruzada
(Verschränckung) a partir de uma posição que permanece
estruturalmente recalcada e que não é a apenas a dublê, mas a de
nós mesmos participando desta história quando vamos ao cinema
assistir “Dublê de Anjo”.
Temos
então cinco planos ou perspectivas nas quais se desenrola a ação
do filme. O filme é um quebra-cabeças narrativo, pois cada um
destes cinco planos possui índices que representam um novo sujeito
para cada uma das quatro perspectivas restantes. Por exemplo, na
perspectiva da aventura maravilhosa, nós temos cinco personagens,
cada qual referido a uma dimensão: (1) o Indiano, referência
à narrativa maravilhosa e seu cenário oriental, é o único
personagem que representa o próprio plano ao qual ele pertence, (2)
o ex- Escravo, referência a narrativa do faroeste e ao gênero do
filme de aventura, (3) o Perito em Explosivos, referência à
narrativa de produção fílmica e a trucagem, na qual se inclui o
dublê (4) Charles Darwin, referência à narrativa
médico-hospitalar e ao naturalismo expressivo (5) o Bandido
Mascarado, o personagem que representa a história “real”
exterior a este parênteses representado pelo hospital, ele tem que
ser mascarado porque deve ocultar sua identidade de tal forma que a
ocultação seja apresentada (máscara).
A Fantasia como Perspectiva
Talvez
o cinema possa vir em nosso auxílio para nos ajudar a entender o
problema psicanalítico representado pela fantasia, ou seja, como é
possível o funcionamento articulado de diferentes perspectivas no
interior de uma mesma experiência?
Se
Lacan afirmava que a fantasia se estrutura como uma tela, podemos
desdobrar a tese para a ideia de que se apreende melhor a estrutura
da fantasia como um filme. O enquadre da fantasia se altera um pouco
quando pensamos a função da tela, de pintura ou de projeção, como
objeto e suporte de nossa ficção, ou como ponto de articulação
entre a verdade e o Real. Examinando alguns efeitos ópticos (como a
paralaxe e a câmara clara) e algumas teses psicanalíticas, pode-se
mostrar como a sustentação da construção da realidade depende de
certas deformações, repetições e subtrações de objetos na tela.
Filmes da aurora do cinema (Méliès, Buñuel) bem como filmes
contemporâneos (Matrix, Mais Estranho que a Ficção,
Closer), se utilizam dessa homologia entre o conceito e a prática
visual da perspectiva para produzir efeitos construtivos e
desconstrutivos sobre a fantasia. Isso acontece porque a própria
fantasia se “estrutura como uma janela”. E isso já havia sido
percebido na história das artes plásticas, principalmente nos
“mestres ópticos”, ou seja, naqueles pintores, como Van Eick,
Holbein e Lotto que incorporavam, dentro de suas próprias telas,
índices e rastros de sua própria construção como ilusão. Até a
invenção da fotografia, em 1840, boa parte da pintura dependia da
projeção de imagens reais e eventualmente de sua deformação
calculada. É com a chegada desta reversão da projeção, que é a
fotografia, que impressionismo, expressionismo e as vanguardas em
geral, reformularam a pintura como uma arte da experiência do olhar
e não mais como representação pictográfica do mundo.
O
conceito de fantasia em psicanálise possui uma extensão muito
grande de conotações. Freud falava da fantasia para designar o
processo de produção de imagens, tanto por meio da fabricação de
um objeto pictórico (Einbildung) quanto por meio de uma
animação de imagens (Phantasieren). As fantasias
exteriorizadas em objetos colocam um problema, pois elas são ao
mesmo tempo parte do mundo real e expressão de um mundo imaginado.
Seria falso, portanto, pensar que a imaginação cria um mundo que se
opõe bipolarmente ao mundo real. O ideal faz parte do real. Entram
nessa acepção as noções de ilusão e de realidade psíquica. Esta
função da fantasia parece ser importante para estabilizar a
experiência do sujeito, introduzindo sentido e significação ali
onde a realidade oferece obstáculos para ser representada, figurada
ou mesmo imaginada. A característica marcante desta acepção de
fantasia é que ela aparece como uma espécie de realidade subjetiva
complementar, ou de síntese de representações, necessária para
resolver uma contradição real ou uma irrepresentabilidade da Coisa.
Temos aqui o circuito que liga o filme, como objeto da indústria
cultural, produzido e vendido como peça de entretenimento, e o filme
como apoio para nossa faculdade de negação, capaz de nos tirar de
nós mesmos e imaginar “outros mundos”.
A
segunda acepção de fantasia a entende como uma espécie de mediador
psíquico da relação com o mundo. A fantasia se “infiltra” em
acontecimentos reais, sendo expressa, por deformações de memória
(lembranças encobridoras), por deformações de percepção
(alucinações, sonhos) e deformações da própria experiência
corporal (protofantasias). Neste sentido se pode falar em fantasias
de sedução, da cena primária ou da castração, das fantasias
bissexuais da histeria, ou das fantasias fálicas das crianças. Aqui
a fantasia funciona como um léxico capaz de nomear as variedades de
exigência pulsional, de relação ao corpo e de interpretação da
diferença sexual. Neste caso uma fantasia pode ser pensada como uma
“estrutura de ficção” no interior da qual relações téticas e
funcional veritativas podem ser construídas, derrogadas ou postas à
“prova de realidade”. Neste caso a fantasia se posiciona entre o
trauma e o luto, como dispositivos mais simples, que ela acaba por
articular para que o sujeito possa tornar compatível lei e desejo,
princípio de prazer e princípio de realidade. Temos aqui o efeito
que o cinema é capaz de extrair e produzir afetos, lembranças e
pequenos fragmentos “reais” de sentido e contra-sentido.
Uma
terceira maneira de pensar as fantasias é dividindo-as em fantasias
pré-conscientes (sonhos diurnos), conscientes (devaneios) ou
inconscientes (recalcadas). Neste caso a fantasia possui uma
estrutura similar ao sintoma, envolvendo deslocamento, condensação
e a combinação entre processos primários e secundários na
realização do desejo. Lacan pensou desta maneira ao valorizar a
noção de fantasia fundamental, como polo de convergência das
fantasias a uma espécie de frase fundamental, monótona e repetitiva
na vida pulsional do sujeito, ao modo de uma “síncope do
significante”. Talvez esta seja a fórmula mágica para a criação
de universos paralelos, desdobramento de mundos e transformações
entre planos de ação, que caracterizam a construção da “realidade
maravilhosa” no filme de Tarsem Singh.
Uma
quarta maneira de agrupar a fantasia é considerar que ela é uma
espécie de gramática fundamental do desejo pela qual ela se
expressa preferencialmente em relações de identificação, projeção
ou introjeção que organizam a relação do sujeito ao objeto ou a
sua falta. Aqui a fantasia comanda as relações de crença,
convicção, recuo ou exclusão em relação à realidade que se lhe
apresenta. Lacan pensou esta variante da fantasia ao falar na afânise
do sujeito, quando descreve sua posição intervalar na cadeira
significante ou quando aponta para suas relações alternadas de
inclusão e exclusão no campo do Outro. Neste caso a fantasia
estabelece ordem e continuidade na realidade, ao modo de um
encobrimento do Real. Ora, este re-encobrimento do Real, ocorre por
meio de operações de duplicação imaginário do eu do sujeito, mas
também por esta espécie de confusão calculada por meio da qual, no
filme, Alexandria conta e é contada pela história, cura e é curada
pelo dublê, lembra e é lembrada em seu próprio luto.
Finalmente,
uma quinta forma de considerar a fantasia é pensá-la por sua
relação com a angústia, e, portanto, como um dispositivo
defensivo. Falamos aqui de processos como o retorno à própria
pessoa (narcisismo), inversão da pulsão ao contrário
(masoquismo-sadismo), negação ou sublimação. Este parece ser um
caso composto por elementos das acepções anteriores, concentrando
sobre si as propriedades de unidade, coerência e consistência da
realidade.
Podemos
dizer que em cada um dos casos acima tentamos definir um sentido de
fantasia que acaba compreendendo um modo de articulação da
realidade: como oposição ao ideal, como condição de possibilidade
subjetiva de apreensão libidinal de objetos, como hierarquia ou
englobamento de sentidos, como gramática de inclusão, exclusão ou
implicação do sujeito e finalmente como unidade da experiência. Em
cada caso a fantasia ao mesmo tempo organiza certo regime de
realidade e localiza um furo, uma inconsistência, um ex-sistência
ou uma contradição no interior desta realidade, que é o que Lacan
chamou e Real. Ora, manejar clínica e conceitualmente tal variedade
de entendimentos sobre a fantasia é uma dificuldade para o clínico
e para o estudioso da psicanálise. Ainda mais porque as acepções
aqui elencadas se entrecruzam e se combinam de maneira não
excludente.
Uma
tentativa de síntese pode ser tentada a partir da tese proposta por
Lacan de que a fantasia funciona como uma janela pela qual
estruturamos a realidade. Mas, podemos acrescentar com a
linguagem fílmica, a fantasia também é o lugar no qual a
realidade fracassa, dando ensejo a aparição temporal do Real.
Esta tese pode adquirir valor integrativo, em relação à
diversidade de acepções antes sugeridas, se entendemos que o que
está em jogo na noção de “janela” é, no fundo, o conceito
mesmo de perspectiva. Não é apenas que a fantasia crie
perspectivas, ou “pontos de vista” sobre o mundo, mas a fantasia
é esta perspectiva ela mesma. Se isso é verdade cada acepção
diferencial de fantasia é no fundo um tipo de perspectiva. E estas
perspectivas se articulam ao modo de superfícies mais ou menos
compostas.
O Cruzamento de Perspectivas
A
perspectiva é um método pelo qual se pode representar objetos
tridimensionais em uma superfície bidimensional. Toma-se um objeto e
se o projeta a partir de um ponto (ponto de fuga), que se encontra
sobre o eixo ótico. Todas as linhas de projeção da pintura
convergem para este ponto de fuga. Uma mesma projeção pode
corresponder a diversos objetos diferentes.
A
experiência de Bruneleschi (1377-1446) mostra como a perspectiva
depende de que se assuma um ponto de vista (uma janela), da qual será
possível estabelecer projeções regulares dos objetos
tridimensionais em superfícies bidimensionais. Todas as linhas de
fuga (perpendiculares) encontram-se no ponto de vista. Mas o quadro
não pode prescrever o lugar no qual o olho do espectador deve se
instalar. O lugar de onde devemos olhar o quadro não é mostrado no
próprio quadro.
O
quadro, como disse Albert Dürer, é uma janela atravessada pelo
olhar. Ou seja, o lugar do pintor deve permanecer como um lugar
invisível. Há um equivalente disso no cinema. O espectador não
pode ser situado no próprio filme, pois o próprio efeito fílmico
depende deste ocultamento. Há alguns truques para ultrapassar este
ponto. No filme de Woody Allen (Whatever Works, 2009), um
grupo de aposentados conversa sobre uma história, quando Woody Allen
dirige-se para o espectador e faz uma exposição sobre a ilusão ao
qual ele está submetido. Outra forma de “devolver” a posição
do olhar ao espectador é a anamorfose. Em Os Embaixadores
(Holbein, 1502) é a caveira em anamorfose quem olha para o
espectador. Mas ela só pode ser reconhecida como caveira por uma
mudança de ponto de vista (lateral e não mais frontal), antes disso
ela é percebida como uma mancha. Desta forma, como argumentou Lacan,
o quadro é uma espécie de “descanso” para o olhar, e uma
“armadilha” para o olho.
A
engenhosidade do filme de Tarsem Singh é que ele desenvolve estas
cinco perspectivas retomando as cinco estratégias históricas de
compor “perspectivas ópticas”.
Há,
primeiro, a perspectiva hierárquica(medieval) pela qual a
perspectiva é uma construção simbólica que instrumentaliza a
apreensão do espaço. A perspectiva constrói uma narrativa: o que é
mais importante é representado como maior, e assim por diante. Como
a criança, observada por Vigotsky, que ao representar o fogão a
lenha desenha o fósforo gigante dada a sua importância para o
funcionamento do dispositivo. Esta perspectiva é discutida por
Diderot em sua Carta aos Cegos para Uso dos que Vêem e
corresponde ao tema clássico da inclusão do pintor no quadro por
meio de sua própria imagem ali pintada, como Signorelli no Afresco
da Catedral de Orvietto, discutido por Freud em sua Psicopatologia
da Vida Cotidiana. Em vez do nome a imagem do pintor. Essa é a
perspectiva usada para filmar as figuras gigantes e ameaçadoras no
hospital, criando um mundo de “realismo fantástico” a partir de
operações de aumento e diminuição de proporção entre elementos.
O que lhe é característico formalmente são as operações de
duplicação ou de dualização da realidade.
A
segunda perspectiva é chamada também de linear (naturalis).
Aqui o olhar pode ser incluído no quadro a partir do trompe
l´oeil, ou seja, pequenas alterações de perspectiva que criam
proporções não consoantes com o “espaço real”. Esse é o
recurso pelo qual o pintor pode ser incluir no quadro por meio do
espelho que reflete sua imagem, como em O Casal Arnolfini, de
Jean Van Eick, ou em As Meninas de Velásquez. Aqui a
realidade diegética é formada pelo campo da representação, tal
como vemos nos processos de lembrança e rememoração, que
Alexandria passa ao longo do filme ao recuperar as cenas traumáticas
nas quais o pai é retirado de casa e morto por bandidos, na frente
de seus olhos. Mas convém lembrar que a “lembrança naturalista”
é antecedida pela “deformação imaginada”.
A
terceira perspectiva é a perspectiva geométrica (artificialis).
Ela supõe um ponto de vista único no qual o espectador deve se
colocar para ver o quadro. Este é o ponto de vista cuja
projeção no quadro é o ponto de fuga. “Para a
qualidade da imagem ser mais fiel, e representar melhor um objeto,
eles não devem se assemelhar a ele”. (Descartes, R. –
Dióptrica). Aqui encontramos a demarcação da visão-espaço,
mas não do olhar (que depende da luz). A imagem é um
mediador entre o sujeito e o objeto definindo um campo da visão
a partir de um plano geometral (Imaginário-Simbólico). Agora não é
caricatura do pintor nem a posição do olhar da criança que lembra,
mas o olhar incluído no quadro por meio da anamorfose, como
Holbein em Os Embaixadores, ou nos paradoxos visuais de
Escher, ou seja, deformações cônicas ou piramidais que alteram a
projeção da imagem segundo regras constantes e que cruzam
perspectivas distintas sob o mesmo plano de projeção. Encontramos
esta perspectiva na maneira como são filmadas as aventuras dos cinco
heróis em seu “mundo mágico”. Esta é a perspectiva do dublê,
o contador (manipulador) de histórias.
A
quarta perspectiva é chamada também deatmosférica (luz e
cor). Aqui se trata de partir de um ponto luminoso, de brilho ou
sombra incoerente, de cor incongruente, de mancha, pelo qual o olhar
pode se incluir no quadro como objeto indeterminado. Como disse
Leonardo Da Vincci: “A pintura compreende duas partes
principais: a primeira é a forma, isto é, a linha que define as
formas dos corpos e seus detalhes; a segunda é a cor, encerrada
dentro dos limites da primeira”. O pintor se inscreve no quadro
por meio de um ponto luminoso, um ponto de cor, brilho ou mancha que
representa o olhar como objeto. Há um ponto que precisa ser barrado
para que a visão se produza, é a tela (écran) ou anteparo.
Foi o que Merleau Ponty discutiu em Visível e Invisível a partir
da experiência de ver e ser visto e a partir do qual ele
introduz a noção de carne. A tela surge aqui como mediador
entre o sujeito e o ponto do olhar (luminoso) formando todo um campo
do olhar. Aqui está o ponto no qual o dublê deve se
indiferenciar do ator que ele substitui. É o ponto no qual o filme é
representado como a luz que se projeta, ofuscando o próprio olhar.
No filme de Singh este ponto pode ser representado pelo nome que dá
unidade ao semblante do filme: a queda. A queda do pai, na cena em
que será morto; a queda do dublê que o leva ao hospital, a queda
ela tem pelo dublê, seu herói redivivo e finalmente a queda mais
importante, a única que de fato exige este tipo de perspectiva, ou
seja, a do próprio espectador que se envolve com o filme. Por isso
esta perspectiva forma a transferência. Nesta perspectiva temos a
aparição dos fenômenos de indeterminação, ou de
inclusão-exlusiva, da narratária no campo do narrador, do dublê no
campo do filme, da cura contada na cura realizada.
Em
quinto e último lugar, encontramos neste filme a perspectiva do
plano projetivo.Ele é produzido pela combinação de
perspectivas anteriores e ao final pela reversão e indeterminação
entre o sujeito vendo o quadro e o sujeito sendo visto vendo o
quadro. As Meninas, de Velásquez (1656), representa o
instante de recuo do pintor em relação a seu ato, por meio do qual
ele olha para o modelo. Ele está na nossa posição, pela qual
podemos nos reconhecer na imagem do casal real presente no espelho
frontal. Somos os “soberanos do quadro” ao mesmo tempo em que
“escravos de sua ilusão óptica” estamos servindo ao instrumento
do artista. Exatamente como na fantasia, senhor e escravo são ambos
seus vassalos.
O
pintor, como dublê, se inscreve no quadro por meio do auto-retrato,
localizado entre o ponto de fuga e o ponto infinito. Ele envolve (1)
um plano sujeito como janela que enquadra a realidade, (2) um
plano quadro como fantasia que recobre a janela ou modo de
ilusão ou “palco do mundo”. No plano- janela o sujeito é o
objeto (a ), no plano-quadro o sujeito encontra sua
fantasia ( a). Há ainda (3) o sujeito que se apoia entre o
quadro-fantasia a janela-subjetiva, um sujeito que apreende uma
diferença entre dois mundos, como divisão ou desaparecimento e (4)
para se apoiar entre a janela e o quadro, e para que o truque produza
uma eficácia real, é preciso produzir uma equivalência entre o
sujeito e o que Lacan chama de objeto a.
A
junção destas quatro perspectivas em um quinto ponto de vista que
permitiria representar a realidade mais além das relações de
interioridade e exterioridade. Ela poderia ser descrita como um
conjunto composto por duas bandas de Moebius, (com torções em
sentido contrário), um círculo de interpenetração (ou de
implicação subjetiva), um círculo de revolução (ou de
indeterminação) e um objeto, (ou objeto a). O conjunto forma o que
os topólogos chamam de garrafa de Klein.
Trailer Oficial
Christian Dunker é Psicanalista, Professor Livre Docente do Depto de Psicologia Clínica-IPUSP, Analista Membro de Escola da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano, Membro da Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental, Doutorado (IPUSP) e Pós-Doutorado pela Manchester Metropolitan University (UK). Autor de vários livros, entre eles o vencedor do Prêmio Jabuti 2012: “Estrutura e constituição da clínica psicanalítica: uma arqueologia das práticas de cura, psicoterapia e tratamento” (ed. Annablume, 2011).