domingo, 1 de junho de 2014

Confidências Muito Íntimas (Confidences Trop Intimes)

de Graça Nunes

"(…) É necessária apenas uma condição: que haja sintoma analítico e que haja sofrimento no sintoma, que ele se apresente como desprazer. Isto basta para implicar a transferência e colocar em marcha a experiência." (Miller, 1999, p.55) 
Confidences Trop Intimes ou Confidências Muito Íntimas de Patrice Leconte é uma original história de descobertas entre analista e analisando.   A dupla é formada por Anna e William. Ela (Sandrine Bonnaire) linda, em torno dos 35 anos vive um momento difícil no casamento. Ele (Fabrice Luchini) aparentemente leva uma vida presa às convenções e tradições, advogado tributário engravatado, solitário e recentemente terminou um relacionamento com Jeanne que o deixou por um personal trainer
Patrice Leconte, com leveza, mas sem tirar o tom reflexivo imposto pela situação de sofrimento que leva alguém a buscar um psicanalista nos mostra o encontro inusitado de Anna e William.  Como quase sempre nos filmes franceses,  os diálogos são intensos e bem elaborados.  Não há nenhuma  cena de sexo durante o filme todo, o erotismo é sutil, está nas palavras ditas, nas não ditas, olhares, respirações, lances e relances.... rápidos ou lentos como se o tempo fosse suspenso.  Em tudo assemelha-se à experiência analítica.
Anna tem uma sessão de análise agendada para aquele final de tarde de chuva  em Paris. As muitas camadas de casacos e cachecóis pesados fazem pensar em empacotada, ou revestida e protegida antes de propriamente vestida. Ao entrar no edifício de escritórios pede informações para a concierge e um pequeno mal entendido a leva ao escritório de William , advogado tributarista que fica no mesmo andar do consultório do psicanalista Dr Monnier (Michel Duchaissoy).
 A surpresa que mudará a vida de ambos bate a porta de William, um solitário. 
A primeira vista, o local lembra um ambiente analítico, luz fraca, sóbrio, um divã, um telefonema que o advogado recebe e de sua conversa pode-se depreender que fala do estado de um paciente moldam para a angustiada Anna a certeza de estar frente à um psicanalista. 
Ele, sem imaginar o engano, propõe um preenchimento de ficha com dados pessoais. Imediatamente, segue-se a fala de Anna dizendo que está com problemas conjugais, e que não tem tido contato sexual com o marido.  Além disso, diz, ''ele poderia fazer de outro modo, mas já não me toca não me beija, não acaricia (…) Sinto falta de como éramos juntos."
Anna está sem âncora, sem ''amarração'', já não se conhece mais...''temo que vou enlouquecer, não tenho com quem falar.'' 
Meu marido não permite que fume, não gosta que trabalhe, ao que o advogado analista replica: e do que mais ele te proíbe? Porque não procuras a liberdade? 

E ela subitamente interrompe a sessão dizendo ''não estou acostumada a falar de mim'' e sai correndo do escritório de William.

Ele a escuta sem julgamento e sem muito a dizer, originando o inicio de uma comunicação entre o par.  Os inconscientes se conectam como algo que se ''engancha '', e se permeia, como a onda na areia. Silêncios, palavras não ditas, respirações, lágrimas, interditos, espaços, pontos, e a dinâmica para a experiência analítica se estabelece. Se ela busca explicações e sentido para seu sofrimento, o silêncio do advogado é a mais perfeita resposta (não há sentido e tampouco explicações para o encontro com o Real),  mesmo que involuntária e causada pela perplexidade frente a surpresa de uma mulher lhe confidenciando segredos sexuais íntimos.
O casamento vai mal, seu marido já não tem relações sexuais com ela, e está obcecado com a ideia de vê-la ''fazendo amor'' com outro homem.  A primeira '' sessão'' termina com a segunda ''sessão'' sendo devidamente agendada por Anna que sugere o dia e hora enquanto pega o talão de cheques para pagar . Único ato falho do filme é que se Ana pagou com cheque, então não haveria razão para mais tarde quando ela falta à terceira sessão, William tentar descobrir o nome dela nas agendas do consultório do vizinho psicanalista Dr. Monnier.
Na segunda visita, ele tenta revelar que não é um analista, ela sai correndo como se adivinhasse o que ele iria dizer , mas não quisesse saber para não destruir o que havia começado.

A química entre os dois atores funciona muito bem, a chuva e a meia -luz dão o toque misteriosos e muito íntimo as confissões.
O filme parece feito em camadas têxteis e de cores, enquanto as roupas de Anna que começam a ser descascadas e diminuem de volume. A estação muda do inverno para a primavera, as camadas do filme também vão diminuindo e aos poucos deixam vislumbrar o que realmente está acontecendo.
Ao escutá-la atentamente, William sem saber se coloca na posição de analista.  Agora temos o analista, a analisanda, e o que era apenas signo, antes do encontro com o analista, é agora sintoma analítico no momento em que é formulada a questão ''o que e isso?, o que está acontecendo comigo?
É isso que Lacan quer dizer com a formulação “o analista completa o sintoma.'' - que corresponde ao discurso da histérica, de acordo com Antonio Quinet.
 Uma das intervenções (William sem saber encarna a douta ignorância com maestria) que ele faz - ''você não gostaria de uma mudança?'' - possibilita a Anna uma abertura para ao menos pensar na existência de outra vida.  Anna, enfraquecida e insegura, na infância levava uma vida instável com mãe desequilibrada acha no casamento com Marc um porto seguro.
Na terceira sessão, para tristeza e surpresa de William, Anna falta.  Ele tenta descobrir quem ela é revistando as agendas do Dr Monnier, sem resultados.
William, confuso com os acontecimentos, busca no Dr. Monnier uma resposta ou talvez uma autorização para poder continuar seu oficio de analista de Anna. Na conversa entre eles, o analista cita Baudelaire ...  ''divãs profundos como tumbas'' e conclui ''ela achou em você, William,  um ouvido disposto,  já que as pessoas perderam a arte de escutar, nem o garçon, nem o barbeiro querem escutar...'' . Pontua para o advogado que toda essa situação não diz respeito apenas aos problemas de Anna e sim aos problemas de ambos.  O psicanalista faz ainda uma analogia entre o ofício de tributarista e o de analista '' seu negócio não é diferente do meu.....o que declarar, o que ocultar....''. Cobra 120 euros de William.
Anna retorna ao escritório de William e diz que está se sentindo violada e suja por ter contado seus segredos a um advogado tributarista.. Muito angustiada, parte rapidamente só para a noite voltar e bater à porta dele para se desculpar e marcar nova sessão. Comparece, fala vagarosamente da infância, do professor de ballet (''primeira pessoa que realmente me olhou'') e executa alguns passos de ballet clássico para William que a olha encantado. Era disléxica, não conseguia ler, contar.
A certa altura,  Anna pega da estante um livro, ''The Beast in the Jungle'', mas não há no filme qualquer referência ao autor, Henry James. Interessante dizer que a trama do livro é sobre uma confidência íntima.  Anna devolve o livro no dia seguinte dizendo que a história é triste e que não gostou do final.
Ao ficar só William dança completamente ''solto'' ao som da música ''Midnight Hour'', numa cena muito bonita, e que mostra as mudanças que vem acontecendo em sua vida.  Enquanto dança tira o paletó, a gravata e é como se ele, assim como acontece com Anna, também ficasse mais leve. Ele havia sido questionado por Anna sobre estar sempre engravatado, e assim mais uma ''camada'' se dissolve.  Ele 'se livra' de um portrait de mau gosto que tinha no escritório enquanto Anna vai se tornando mais e mais leve e sexy sob a escuta e o olhar atento de William. A dança , a mudança na decoração do escritório já denunciam uma mudança psíquica.
A arte da escuta sem julgamento, os silêncios e ausências de respostas vão criando as condições para que alguns efeitos terapêuticos comuns no início do trabalho analítico aconteçam. O coração do filme se revela muito nítido a medida que se despe do peso do obscuro. Não é sobre a fidelidade conjugal , e sim,  sobre a intimidade, a profunda conexão entre duas pessoas que precisam urgentemente alargar os horizontes de suas vidas.  Anna proibida de fumar e dirigir pelo marido, porém incumbida pelo marido a ter sexo com outro homem e William no ''piloto automático'' ou autômaton, seguindo a mesma vida que seu pai levava, mesmo lugar, mesma profissão, tradição, fora da invenção.
A psicanálise diria que ambos necessitam da flechada de Eros, da tiquê, do toque do não sentido e da ética do bem dizer seu desejo.
Diz o diretor Leconte, ''Anna e William são um par reservado que se encontram e descobrem uma fome comum para algo além de suas vidas sufocantes.''
 No decorrer das sessões descobrimos que o marido de Anna está impotente há seis meses, desde que ela ao dar a marcha ré no carro o atingiu e ele teve suas duas pernas esmagadas entre o carro e a parede.  Ele está convencido de que assistir Anna ter relações sexuais com outro homem poderá fazê-lo voltar ao normal.  Para satisfazê-lo Anna diz a ele que está tendo um caso com seu analista.  A mentira excita Anna que confessa a William ter tido um orgasmo na banheira após mentir para Marc. Eventualmente, Marc cura-se da impotência quando aluga um quarto em frente ao escritório de William e instrui o mesmo, por telefone, a assistir pela janela do escritório ele e Anna fazendo amor. William, excluído como o terceiro, assiste a cena primal.  William que estava amando Anna fica tão perturbado com a cena que diz a ela na seguinte sessão: ''você pode falar tudo, mas eu não posso ouvir tudo.'' apesar de estar na posição de analista faz uma desanálise neste momento.

 Anna ao saber do telefonema de Marc para William, despede-se do advogado, e diz que é o último encontro deles.  ''Estou recuperando minha liberdade." Ao que William pergunta: e nós? nossas conversas?  Ela responde que já disseram tudo um para o outro.  Desejando à ela que seja feliz, ele a beija e ela parte andando lentamente pelo corredor do prédio, agora iluminado, mais vivo e colorido.
  Análise terminada com sucesso. Ou análises terminadas com sucesso.
 Antes de sair de Paris ela deixa uma mensagem dizendo que nunca se sentiu tão confortável com alguém e que graças a ele, ela não é mais uma garotinha.  O papel de Anna na análise de William foi o de se fazer desejável para ele e com isso ser o estopim para que ele deixasse de ser tão rígido, tão automático, tão insípido, tão sem desejo.
Segundo Adam Phillips, '' psicanálise é o que duas pessoas podem dizer uma para a outra se concordarem em não ter sexo.''  Para Anna e William, o lugar da fala e da escuta mútuas e o jogo onde os dois se revezam na cadeira/posição do analista, traz para a vida o potencial de cada um para curar suas próprias feridas, e ao se afastar do seguro e conhecido, achar um caminho e viver que pertence só à ele , ou só à ela.  Juntos? 
Talvez esse filme ( Confissões Muito Íntimas) ajude a entender que uma análise é uma situação fundamentalmente assimétrica, na qual alguém ali (que chamamos de analista) coloca-se disponível para mostrar àquele que, justo por ter-se enganado de porta (tal como a personagem Anna), pode então reconstruir os caminhos desse engano – engano que, não custa lembrar, um dia Freud chamou de “falsa conexão”. E como o analista faz isso?
 Ele o faz por meio de uma escuta que, se parece marcada por uma desconcertante falta de saber o que dizer – tal como o personagem William Faber, no filme –, não o é por outra razão que aquela que permite ao paciente encontrar o que ele próprio já sabia, sem saber que o sabia, sobre si mesmo.''  Ana Cecilia Carvalho no texto ''O Ofício do Psicanalista.''

William também deixa Paris e vai ao encontro de Anna que está dando aulas de Ballet em alguma cidadezinha na França.  Envia a ela um bilhete avisando que a está esperando e ela vai ao encontro dele.  Ao reencontrá-lo, ela pergunta: onde nós estamos? e deita-se imediatamente no divã.  William senta no divã junto a Anna e começam a conversar. Não se pode ouvir a conversa dos dois, a tomada da cena é feita de longe, como se fosse do teto e logo após eles desaparecem da cena, nos deixando somente com a imagem do consultório vazio, é como se tivessem ido para outro lugar quem sabe fazer amor, pois como nos diz Miller (...) é uma experiência (a Psicanálise) cuja fonte é o amor. Trata-se desse amor automático, e frequentemente inconsciente, que o analisando dirige ao analista e que se chama transferência." 
Na cena final o novo escritório de William parece iluminado, aquecido, colorido, vazio de histórias e fantasmas, e com potencial para o novo, o acaso, a surpresa, a vida como ela é para os que suportam o encontro de si mesmo, o encontro com seu estranho mais íntimo e a partir disso, reinventar-se.
E como final de análise dos dois seria bom imaginar que encontraram o amor, que como nos diz Forbes : "Amor é encontrar um sentido para si mesmo, através do Outro."
Filme completo

Graça Nunes é Psicóloga, Psicanalista, frequenta aulas e sessões clínicas do IPLA (Instituto da Psicanálise Lacaniana) sob a direção de Jorge Forbes, em São Paulo.

Um comentário:

Cicca disse...

Não me lembro como a encontrei, Com certeza, Freud explicará. Tenho acompanhado seu blog e acabo de assistir o filme. Sou analisanda há uns dez anos, amo psicanálise, sou psicopedagoga mas não exerço a profissão.sou professora de Artes. Ao me deparar com sua resenha de Confidências Íntimas, me encontrei nas tuas palavras, no que os silêncios dizem, e como a Arte assim como na Psicanálise ocorrem as "tranferências" mesmo que silenciosas. Os "não ditos" ...que percorrem os sentidos da vida e como a vivemos. Obrigada por esta indicação.