terça-feira, 25 de janeiro de 2022

A FILHA PERDIDA - é impossível ter ou ser a boneca da mamãe

de Vera Iaconelli


A primeira cena do 
filme "A filha perdida" de Maggie Gyllenhaal (2021) mostra Olivia Colman no papel de Leda indo passar férias na costa grega, deleitando-se com a brisa marinha e com a paisagem. Nada que lembre uma mulher de meia-idade amargurada e solitária, como alguns sugeriram equivocadamente. Trata-se de uma professora universitária, cujas filhas adultas foram morar com o ex-marido, no Canadá. É nesse cenário idílico, no qual fica evidente o prazer que a protagonista extrai de suas leituras, do mar e do sol, que se dá o encontro disruptivo com outra família. Aquela que no livro homônimo de Elena Ferrante se parece desconfortavelmente com a família na qual Leda nasceu.

A protagonista passa a observar atentamente a relação de Nina e Elena, mãe e filha pequena, no meio daquela família ruidosa. Num dado momento, a criança perde sua boneca, que Leda esconde ao invés de devolver.

A reação inconsolável da menina revela que se trata daquilo que Winnicott chamou de objeto transicional (imortalizado no inseparável cobertor de Linus, amigo do Charlie Brown). Objeto que para a criança está profundamente relacionado com o processo de separação da mãe (ou cuidador principal) e que será uma extensão do corpo desse cuidador.

Ao se envolver na intensa relação entre mãe e filha, Leda se vê às voltas com o fato de que, quando suas filhas eram pequenas, ela desapareceu por três anos.

Quando Nina lhe pergunta como foi tê-las abandonado, a protagonista responde que foi maravilhoso, com uma expressão tão ambígua que já valeria o Oscar a Colman. Realizar o desejo pode ser desesperadamente maravilhoso, afinal, não se deve confundir desejo com vontade. A vontade é consciente e costuma responder aos imperativos sociais aos quais nos alienamos. Já o desejo se impõe, muitas vezes à revelia da sensatez. Podemos realizá-los ou não —aqui a ética é o nome do jogo—, e sofreremos as consequências seja qual for a escolha.

A mãe de Leda, assim como Nina, desistiu dos estudos, dependia do marido financeiramente e cuidava sozinha dos filhos. Leda desprezava a mãe, pela condição inferiorizada e pelo distanciamento afetivo. Ela paga o preço de ter escolhido deixar as filhas, diferentemente da própria mãe, que as ameaçava por ressentimento, mas nunca se foi.

O drama não se desenrola apenas do lado da relação com as filhas que Leda deixou mas, principalmente, da relação da protagonista com a impossibilidade de se separar da própria mãe de uma forma satisfatória.

A boneca, que representa o espaço entre mãe e filha, costuma ir desaparecendo aos poucos, deteriorando, sendo esquecida em um canto. Elena estava fazendo justamente isso ao perdê-la na praia.

A boneca que Leda ganhou da mãe quando criança, ao contrário, foi meticulosamente guardada para as filhas. Acabou destruída num rompante de ódio diante de sua maternidade frustrante.

O horror às escolhas da mãe e a esperança de fazer "tudo diferente com as filhas" impediu que ela descobrisse formas mais desejantes de lidar com sua maternidade.

Filme e livro exploram a maternidade em dois níveis. Naquilo que ela tem de inevitável: a impossibilidade de nos tornarmos bonecas idealizadas de nossas mães e tampouco de termos filhas-bonecas. Nesse ponto, as separações são tão dolorosas, quanto necessárias.

Em outro nível, os discursos atuais sobre a maternidade que continuam a ignorar anseios femininos —de equidade, sexo, carreira e liberdade— se mostram insustentáveis e tendem a respostas disruptivas.

Diante de tanto abandono, não são poucas as mães desejosas de "sair pra comprar cigarros".


Vera Iaconelli é diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, autora de “O Mal-estar na Maternidade” e "Criar Filhos no Século XXI". É doutora em psicologia pela USP.

Fonte: Folha de S.Paulo - 24.jan.2022 às 8h05 - https://www1.folha.uol.com.br/colunas/vera-iaconelli/2022/01/a-filha-perdida.shtml

Postado com a autorização da autora.

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