de Luiz
Fellipe Almeida
Oxímoro
que, no título de Hiroshima
mon amour, traz a
singularidade do novo que é inevitavelmente o mesmo, contorno
irredutível que orienta nossa frouxidão no sentido. Uma atriz
francesa está de passagem em Hiroshima para gravar um filme sobre a
paz, 14 anos após a guerra. Apaixona-se por um arquiteto japonês.
Não sabemos seus nomes; ambos vivem a experiência a partir da dor
de cada um, sobretudo a perda do primeiro amor da atriz, um soldado
alemão morto. Trancafiada por seus pais como castigo, ela
compartilha a solidão e a angústia do confinamento ao mesmo tempo
em que tenta dar um sentido ao absurdo do que viveu. Exprime sem
exteriorizar, rememora porque quer esquecer. Não há sentido em
qualquer coisa que ela possa dizer, assim como não há sentido em
amar. Ela deve partir no dia seguinte, mas recua; finalmente ambos se
nomeiam, segundo sua origem: Hi-ro-shi-ma,
Ne-vers.
Aí
o filme termina, nesse corte em que “Hiroshima” e “Nevers”
condensam o absurdo, a impotência e um savoir-faire.
“Nevers” não quer dizer nada em francês, explica a atriz;
quanto a “Hiroshima”, ela também nota que estranhamente, a
partir desse caso, a palavra pode expressar o amor. Aqui a repetição
do texto de Duras expõe com claridade a escuridão do dizer, a
precariedade das versões e inversões da realidade. Ambos colam e
descolam esses significantes em diferentes tentativas de amarração
durante o filme. Ao final, resta a pura plasticidade da significação,
a potência em finitizar o infinito e instantanear o inenarrável na
pontualidade do discurso.
“O
que ‘Hiroshima’ significou para você, na França?”, pergunta
ele. “O fim da guerra... completamente. Perplexidade por eles terem
ousado, perplexidade por terem conseguido. E, para nós, o começo de
um medo desconhecido. E então, indiferença. E medo da indiferença
também”, ela responde pensativa.
Filme-documentário,
inicia-se com imagens da bomba, corpos transfigurados, rostos
descaracterizados, peles descascadas, esvaziamento e ruínas. A
ruptura que as tragédias iniciam, obrigando o senso-comum a
reavaliar seus pressupostos. Milhares de mortos, número em nada
distante da pandemia de nosso tempo, ela também obra da insensatez
de nossos projetos. Penetrado no organismo humano a partir do animal
não falante, submetido aos efeitos da expansão econômica cuja
exclusiva finalidade é a multiplicação do capital12,
o vírus é o mesmo inimigo desconhecido que explode uma cidade ou um
pulmão, o contexto varia, mas ele só chega aí pela invisibilidade
do gozo que reproduz a história. O que dá a ver, em seus efeitos,
retroage no questionamento dos modos de vida capitalistas.
Ou
deveria retroagir, para ressoar a opacidade das certezas que até
então organizaram nossa existência. Olga Tokarczuk, Nobel de
literatura em 2018, escreveu na revista New
Yorker há algumas
semanas: “We believe
we are staying home, reading books and watching television, but, in
fact, we are readying ourselves for a battle over a new reality that
we cannot even imagine, slowly coming to understand that nothing will
ever be the same”3.
Toda
a ficção das verdades de nosso tempo advém do mesmo impossível
que modelou as possibilidades que desembocaram na indiferença,
necessidade da economia psíquica de um mundo que tem o dom da
retórica para justificar a perversidade de sua máquina. “Defuntas
crenças convocadas”, seguimos todavia “vagarosos, de mãos
pensas”, como Drummond4.
Esquecer é preciso às vezes, senão sufocamos, diz Nevers.
A “eternidade” de seu confinamento levou ao deslizamento
simbólico que fez o significante “Hiroshima” sustentar o
paradoxo da própria vida: “Você está me matando; você me faz
bem”, a atriz repete ao arquiteto. O nome próprio justamente vem
para obturar, dando uma “falsa aparência de sutura”, disse Lacan
em 19655.
Fica a questão de saber se sustentaremos a vital falsidade dessa
aparência, quando o cotidiano refizer sua “normalidade”, em meio
à possibilidade de esquecermos de ter medo da indiferença.
Luiz
Fellipe Almeida
Abril,
2020
1
“... disease emergence is
largely a product of anthropogenic and demographic changes, and is a
hidden ‘cost’ of human economic development”:
https://www.nature.com/articles/nature06536
2
“... zoonotic EID
(emerging infectious disease) risk is elevated in forested tropical
regions experiencing land-use changes and where wildlife
biodiversity (mammal species richness) is high”:
https://www.nature.com/articles/s41467-017-00923-8
Luiz
Fellipe Almeida é psicanalista, mestrando em psicologia clínica no
Instituto de Psicologia da USP.
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