domingo, 10 de maio de 2020

Hiroshima mon amour e a descontinuidade

de Luiz Fellipe Almeida

Alain Resnais (1922-2014) e Marguerite Duras (1914-1996) têm uma coisa em comum, além de Hiroshima mon amour, marco da nouvelle vague de 1959: o gosto pela ambiguidade e pela ruptura. Seus filmes giram em torno do corte que os governa. Repetições, retornos, duplicidades e estranhezas são o lugar comum onde o ano passado em Marienbad e as leituras ilimitadas de Agatha buscam dizer sem dizer, informar sem comunicar, falar sem pronunciar, isto é, buscam dizer d’Um dizer que é a própria evanescência do pensamento e a impotência do racional. Ou seja, são obras maciças e ocas ao mesmo tempo; a força de sua mensagem está na certeza de sua fraqueza.

Oxímoro que, no título de Hiroshima mon amour, traz a singularidade do novo que é inevitavelmente o mesmo, contorno irredutível que orienta nossa frouxidão no sentido. Uma atriz francesa está de passagem em Hiroshima para gravar um filme sobre a paz, 14 anos após a guerra. Apaixona-se por um arquiteto japonês. Não sabemos seus nomes; ambos vivem a experiência a partir da dor de cada um, sobretudo a perda do primeiro amor da atriz, um soldado alemão morto. Trancafiada por seus pais como castigo, ela compartilha a solidão e a angústia do confinamento ao mesmo tempo em que tenta dar um sentido ao absurdo do que viveu. Exprime sem exteriorizar, rememora porque quer esquecer. Não há sentido em qualquer coisa que ela possa dizer, assim como não há sentido em amar. Ela deve partir no dia seguinte, mas recua; finalmente ambos se nomeiam, segundo sua origem: Hi-ro-shi-ma, Ne-vers.
Aí o filme termina, nesse corte em que “Hiroshima” e “Nevers” condensam o absurdo, a impotência e um savoir-faire. “Nevers” não quer dizer nada em francês, explica a atriz; quanto a “Hiroshima”, ela também nota que estranhamente, a partir desse caso, a palavra pode expressar o amor. Aqui a repetição do texto de Duras expõe com claridade a escuridão do dizer, a precariedade das versões e inversões da realidade. Ambos colam e descolam esses significantes em diferentes tentativas de amarração durante o filme. Ao final, resta a pura plasticidade da significação, a potência em finitizar o infinito e instantanear o inenarrável na pontualidade do discurso.
“O que ‘Hiroshima’ significou para você, na França?”, pergunta ele. “O fim da guerra... completamente. Perplexidade por eles terem ousado, perplexidade por terem conseguido. E, para nós, o começo de um medo desconhecido. E então, indiferença. E medo da indiferença também”, ela responde pensativa.
Filme-documentário, inicia-se com imagens da bomba, corpos transfigurados, rostos descaracterizados, peles descascadas, esvaziamento e ruínas. A ruptura que as tragédias iniciam, obrigando o senso-comum a reavaliar seus pressupostos. Milhares de mortos, número em nada distante da pandemia de nosso tempo, ela também obra da insensatez de nossos projetos. Penetrado no organismo humano a partir do animal não falante, submetido aos efeitos da expansão econômica cuja exclusiva finalidade é a multiplicação do capital12, o vírus é o mesmo inimigo desconhecido que explode uma cidade ou um pulmão, o contexto varia, mas ele só chega aí pela invisibilidade do gozo que reproduz a história. O que dá a ver, em seus efeitos, retroage no questionamento dos modos de vida capitalistas.
Ou deveria retroagir, para ressoar a opacidade das certezas que até então organizaram nossa existência. Olga Tokarczuk, Nobel de literatura em 2018, escreveu na revista New Yorker há algumas semanas: “We believe we are staying home, reading books and watching television, but, in fact, we are readying ourselves for a battle over a new reality that we cannot even imagine, slowly coming to understand that nothing will ever be the same3.
Toda a ficção das verdades de nosso tempo advém do mesmo impossível que modelou as possibilidades que desembocaram na indiferença, necessidade da economia psíquica de um mundo que tem o dom da retórica para justificar a perversidade de sua máquina. “Defuntas crenças convocadas”, seguimos todavia “vagarosos, de mãos pensas”, como Drummond4. Esquecer é preciso às vezes, senão sufocamos, diz Nevers. A “eternidade” de seu confinamento levou ao deslizamento simbólico que fez o significante “Hiroshima” sustentar o paradoxo da própria vida: “Você está me matando; você me faz bem”, a atriz repete ao arquiteto. O nome próprio justamente vem para obturar, dando uma “falsa aparência de sutura”, disse Lacan em 19655. Fica a questão de saber se sustentaremos a vital falsidade dessa aparência, quando o cotidiano refizer sua “normalidade”, em meio à possibilidade de esquecermos de ter medo da indiferença.


Luiz Fellipe Almeida

Abril, 2020
1... disease emergence is largely a product of anthropogenic and demographic changes, and is a hidden ‘cost’ of human economic development”: https://www.nature.com/articles/nature06536
2... zoonotic EID (emerging infectious disease) risk is elevated in forested tropical regions experiencing land-use changes and where wildlife biodiversity (mammal species richness) is high”: https://www.nature.com/articles/s41467-017-00923-8
4 A máquina do mundo (1951), in Drummond de Andrade, C. Claro enigma. São Paulo: Companhia das Letras.
5 Problemas cruciais para a psicanálise (1964-1965) (C. Lemos et al., trads.). Recife: CEF.

Luiz Fellipe Almeida é psicanalista, mestrando em psicologia clínica no Instituto de Psicologia da USP.
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