**Alerta de MUITO spoiler**
O
poço, ou El Hoyo, nome original em espanhol, é o primeiro filme
dirigido por Galder Gaztelu-Urrutia, jovem diretor de 36 anos.
Estreou em 2019 no festival de Toronto e chegou recentemente à
Netflix trazendo muito o que se pensar.
Trata-se
de uma estrutura em formato de torre com mais de 200 andares. Cada
andar abriga 2 pessoas e cada dupla permanece em um determinado andar
por exatos 1 mês. No meio dessa estrutura vertical há um furo, um
buraco, no qual todos os dias, uma plataforma com comida desce
permanecendo em cada andar por 2 minutos.
A
comida é meticulosamente preparada, passando do primeiro andar para
os demais. Ela seria suficiente se cada um usufruísse de uma parte
conscientemente, no entanto, isso evidentemente não acontece.
Portanto, os de cima comem desenfreadamente, e quanto mais se desce,
mais escassa fica a comida. Aos últimos andares, nada resta.
O
filme acompanha o protagonista Goreng, interpretado por Iván
Massagué, desde seu primeiro dia no poço, ou Centro Vertical de
Autogerenciamento, nome oficial daquele lugar. Goreng divide a
plataforma número 48, a princípio, com Trimagasi (Zorion Eguileor),
um senhor que está ali por causar a morte de uma pessoa quando ainda
estava fora da torre.
Desde
o início da relação dos dois, Trimagasi deixa claro que só pode
dar algo de si se receber algo em troca. Sua palavra preferida é
“obvio”. Para ele, sua posição subjetiva é marcada pela
clareza de que ele está em primeiro lugar, acima de todos.
Cada
um podia levar consigo para o poço um objeto. Trimagasi leva uma
faca. Goreng leva consigo o livro Dom Quixote,
de Miguel de Cervantes, não à toa, já que ao longo da trama, toma
para si a incumbência de mudar aquela estrutura, pondo-se a serviço
da comunidade em detrimento de si mesmo, tal como no livro.
No
mês seguinte, Goreng e Trimagasi acordam no andar 101. Ali a comida
já não chega mais. Goreng acorda amarrado à sua cama, e Trimagasi
explica que não tem a intenção de matá-lo, apenas precisam,
ambos, comer partes do seu corpo. Nesse cenário surge Miharu
(Alexandra Masangkay), uma moça. Trimagasi é morto e Miharu ajuda
Goreng a se alimentar do parceiro.
Vale
aqui colocar algo muito relevante no filme, que é o impacto sobre o
espectador. É impossível não se afetar com repugnância ou algo
parecido às cenas de canibalismo, à comida remexida e cuspida.
Goreng
divide em seguida o andar com uma mulher, que assim como ele, escolhe
estar ali. Ela trabalhava na organização anteriormente e disse que
se acaso a solidariedade se desse dentro de cada um e, portanto, se
cada andar comesse somente uma porção, a comida seria suficiente
diante da colaboração e sacrifício de todos. Goreng alerta que
isso não acontecerá espontaneamente. Ela se suicida e o
protagonista se alimenta de sua carne também. Tanto a mulher, quanto
Trimigassi, passam a assombrar os pensamentos de Goreng em forma de
alucinações.
Seu
terceiro parceiro de andar é Baharat (Emilio Buale), que tal como
ele, não se conforma com a estrutura daquele lugar. Goreng propõe
que desçam para os andarem mais baixos, fracionando as porções e,
organizando assim, essa sociedade vertical de forma mais justa. Essa
tentativa de nova organização não acontece sem violência, e à
medida que descem, percebem que aquele buraco era muito mais profundo
que o previsto tornando aquele sistema fadado ao fracasso. Na última
camada, a mais profunda, encontram uma menina, intacta. Goreng a
coloca na plataforma como uma mensagem aos organizadores, de forma
que percebam a falha daquele sistema. Nesse sentido, talvez a criança
represente a esperança que novas gerações construam novos arranjos
de organização social.
Pois
bem, esse poço realmente tem muitas dimensões. Ele nos mostra, tal
como no filme Parasita, ganhador do Oscar 2020, a luta de classes e
como é estar em cada lado da mesma moeda. Mesmo que, de forma mais
áspera e desprovida de humor, que tantas vezes nos serve de anteparo
a angústia, provoca também uma reflexão acerca do distanciamento
social entre pobres e ricos, da luta de classes e da ideia de que a
mobilidade social é uma ilusão, ou seja, não se sustenta.
Zygmunt
Bauman, em “A riqueza de poucos beneficia todos nós?”, nos
diz que o mercado, desconsiderando as diferenças sociais, econômicas
e intelectuais dita nossas escolhas e nos isola, impedindo, ou ao
menos, tentando impedir, que questionamentos advenham. Por
consequência, todas as variedades de desigualdade social brotam da
divisão entre ricos e pobres, como observado no livro de Cervantes
escolhido pelo protagonista.
Segundo
dados trazidos por Bauman, em 1998, os mais ricos consumiam 86 por
cento de todos os bens produzidos, enquanto os pobres, apenas 1,3 por
cento, e desta data em seguida, essa diferença só vem aumentando.
Esse enriquecimento dos que já são muito ricos se sustenta pela
ideologia do individualismo, que por sua vez, impulsiona o consumo. O
padrão sonhado é viver como as celebridades em suas roupas, casas,
carros e barcos de luxo. Mesmo em meio às crises econômicas, os
mais ricos enriquecem ainda mais, enquanto os pobres, só empobrecem.
No
filme, como já mencionado, a cada um mês, as duplas se movem dento
da estrutura para outros andares. Esse cenário intriga, já que na
nossa sociedade a mudança para um nível mais ou menos abastado é
pouco frequente. Talvez seja a representação de que sempre haverá
um outro que nos supera e um outro subjugado.
Goreng
tenta instituir uma distribuição mais justa a todos os pavimentos,
mas se depara com um buraco muito mais profundo. É lá no fundo do
poço, possivelmente num viés religioso do próprio inferno, que
resgata algo que pode possibilitar uma mudança, que seja uma
mensagem ou um apelo para que alguém lá de cima mude radicalmente
aquela estrutura.
Uma
pergunta se sucede, que é o que as pessoas fariam se pudessem trocar
de lugar com as outras? Parece que fariam exatamente a mesma coisa
que seus antecessores. E por que é assim em sua grande maioria? Há
algo ali que insiste em se repetir, como se guiado tal qual um
sistema pulsional pelo automaton e tique. Lacan, no seminário “Os
quatro conceitos fundamentais da psicanálise” nomeia duas faces da
repetição: automaton e tique. O primeiro seria guiado pelo
princípio do prazer, enquanto a segunda, indica algo para além do
princípio do prazer, apontando para o real.
Goreng
nos leva a crer que ele se incumbe de ser aquele que quebrará esse
circuito, não por uma via pedagógica, como sugerido pela
organizadora que dividiu a plataforma com ele, mas sim, pela via da
violência para se chegar num ponto de esperança, vislumbrando a
possibilidade de que as pessoas que estão ali percebam que poderiam
fazer de outra forma, tal como que os organizadores se deem conta do
grande erro.
Talvez
a inocência do protagonista seja justamente em acreditar que algo do
real possa ser inteiramente simbolizável, que a partir do momento em
que todos percebam sua mensagem, imediatamente a estrutura se
desmonte, se desconfigure. No entanto, algo ali no final, possa nos
conduzir a um outro caminho, a presença de uma menina, nos aponta
para algo que seria mais passível de aposta. A aposta no não todo.
Não há o Um que simplesmente aniquile um sistema, mas talvez, como
uma aposta, o cada um, a loucura de cada um, aquilo justamente não
possível de assimilação, a própria singularidade. Se isso se
reverbera realmente em uma mudança social, é uma questão.
Priscilla
Cheli Mendes é psicanalista; psicóloga com pós-graduação em
psicologia clínica pela PUC-SP.
*
colaboração de Alice Pitteri Mantovaneli
trailer
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