terça-feira, 7 de janeiro de 2020

Adeus à linguagem, Imagem e palavra : o zero e o infinito de Godard

de Luiz Fellipe Almeida

Jean-Luc Godard é um poeta ensaísta. Sejam romances em forma de ensaios, sejam ensaios em forma de romance, como definiu seu trabalho, seu olhar sempre esteve sensível à palavra, ao poder da palavra, sua função de verdade, domínio, fruição, incógnita. Sua escrita, no entanto, transcende as falas, o roteiro, e contamina as imagens, que efetivamente operam como significantes por si mesmas, como bem notou Maria Rita Kehl1. Sua escrita é a filmagem.
Seus últimos filmes radicalizam a poesia de seu estilo, exacerbando o enigmatização do sentido e celebrando o equívoco; não para decretar o nonsense, mas para que a interpretação, que sabemos que não prescinde do sentido, siga e sustente os próprios equívocos da linguagem. É no intervalo entre os significantes-imagem que Godard nos tira da inércia da significação linear e nos coloca a trabalhar, assinando junto com ele o ensaio polissêmico que se produz na tela.
Adeus à linguagem (2014) e Imagem e palavra (2018): seus dois últimos filmes são o melhor acabamento dessa maneira aparentemente caótica de levar a significação às últimas consequências. Filme socialismo (2010) ainda sustém certa consistência em alguns personagens; ainda não é invadido por imagens transbordantes. Os diálogos ao fundo, às vezes à maneira dos filmes de Marguerite Duras, ajudam a manter alguma narrativa. Já os outros dois filmes rompem completamente com qualquer tentativa de identificação pelo espectador e mesmo com a paradoxal arguição indiferente que marca os personagens godardianos. A desordem reina — mas tudo de acordo com a autenticidade que só um fragmento pode carregar, como diz a citação de Brecht lida na voz de Godard. Migalhas de saber, diria Lacan, que aqui recebemos em seguidas explosões de imagem-som-palavra. Tudo de acordo com a temporalidade e a firmeza do despedaçamento dos ensaios.
Os filmes não saem nunca da estrutura de sonho, sua única exatidão. Mais precisamente, um estado hipnagógico; ainda estamos acordados, mas já estamos sonhando. As imagens do dia e o caldeirão psíquico já fabricando pensamentos a todo vapor. “Se você sonha, aceite seus sonhos. É o papel do dorminhoco”, Godard alerta em Imagem e palavra. O filme se divide em cinco partes, tal como os cinco dedos da mão: “a verdadeira condição humana é pensar com as mãos”. O animal simbólico está fadado à multiplicidade de funções em uma única parte de seu corpo, enumerou Alfredo Bosi em O ser e o tempo da poesia (1977).
Em 1972, Lacan disse que o objeto a escapole das mãos em dois tempos: natureza e metáfora, as duas partes de Adeus à linguagem. Corpo e significante são aqui discriminados pelo olhar. Em boa parte do filme, acompanhamos Roxy, cachorro do próprio Godard, que vaga por imagens saturadas e sons desconexos. O filme explora o 3-D para subverter seu propósito hollywoodiano. A consistência da experiência imaginária a que a tecnologia costuma se destinar dá lugar ao desmonte. A mirada canina, às voltas com parcialidades, interrupções e desnivelamentos, escancara o significante enquanto ele não é idêntico a si mesmo; se diferencia, no filme, por combinação aparentemente aleatória. Somos convocados à busca da significação e à atenção flutuante. Nos esforçamos a compreender, mas relaxamos prazerosamente. Dessa encruzilhada de sentidos, o produto dessa experiência, menos melancólica que em Imagem e palavra, é esse único objeto, escorregadio, que a lógica é capaz de produzir, impasse de todo discurso.
Da reflexão entre democracia e totalitarismo à vadiagem de Roxy, há conversas esparsas de um casal sobre política, filosofia, matemática. “As duas grandes invenções: o infinito e o zero”, diz o homem. A mulher responde: “Mas não... o sexo e a morte”. Cita-se uma tal curva de Laurent Schwartz-Dirac que é infinita em todos os seus pontos, exceto em um onde é nula. São essas as dimensões que marcam esses filmes, mais do que outros de Godard, por serem as mesmas a que o significante nos leva, criando nelas seu impasse fundamental: o sexo e a morte. O infinito se sustenta nessa nulidade significante, indeterminação que nos obriga a criar objetos para além do princípio do prazer, encore, en corps, fora do corpo, fora do equilíbrio vital.
Não à toa, ambos os filmes se indagam sobre a guerra, a reprodução das guerras, a repetição da história. As cinco partes de Imagem e palavraRemakes, As noites de São Petersburgo, Essas flores entre os trilhos no vento das viagens, O espírito das leis e Região central-Arábia feliz — refletem sobre democracia, preconceito, barbárie, o mal-estar na civilização. Aqui não há sombras de personagens, mas trechos de filmes, imagens de guerra e documentações de destruição e protesto. O filme descostura e picota mesmo as suturas menos convencionais da forma. Como o próprio Godard disse uma vez sobre seu estilo, não se tratou de dizer algo, mas mostrar2. Sempre primordialmente preocupado com o talhamento e a renovação, o jovem cineasta de 89 anos não transmite apenas melancolia no filme: “Assim como o passado é imutável, também as esperanças permanecerão imutáveis”.
Eu não direi quase nada, eu busco a pobreza na linguagem”, diz o homem de Adeus à linguagem. No cantão de Vaud, na Suíca, onde mora Godard, “adieu” porta a ambiguidade de “salut”, dependendo da hora do dia ou de nossa entonação, como ele disse em entrevista3. Entre zero e o infinito do significante, onde um sentido se despede, no mesmo lance outro desponta.
Luiz Fellipe Almeida é psicanalista, mestrando em psicologia clínica no Instituto de Psicologia da USP.
TRAILER : Adeus à linguagem 



TRAILER : Imagem e palavra

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