Jean-Luc
Godard é um poeta ensaísta. Sejam romances em forma de ensaios,
sejam ensaios em forma de romance, como definiu seu trabalho, seu
olhar sempre esteve sensível à palavra, ao poder da palavra, sua
função de verdade, domínio, fruição, incógnita. Sua escrita, no
entanto, transcende as falas, o roteiro, e contamina as imagens, que
efetivamente operam como significantes por si mesmas, como bem notou
Maria Rita Kehl1.
Sua escrita é a filmagem.
Seus
últimos filmes radicalizam a poesia de seu estilo, exacerbando o
enigmatização do sentido e celebrando o equívoco; não para
decretar o nonsense,
mas para que a interpretação, que sabemos que não prescinde do
sentido, siga e sustente os próprios equívocos da linguagem. É no
intervalo entre os significantes-imagem que Godard nos tira da
inércia da significação linear e nos coloca a trabalhar, assinando
junto com ele o ensaio polissêmico que se produz na tela.
Adeus
à linguagem (2014) e
Imagem e palavra
(2018): seus dois
últimos filmes são o melhor acabamento dessa maneira aparentemente
caótica de levar a significação às últimas consequências. Filme
socialismo (2010)
ainda sustém certa consistência em alguns personagens; ainda não é
invadido por imagens transbordantes. Os diálogos ao fundo, às vezes
à maneira dos filmes de Marguerite Duras, ajudam a manter alguma
narrativa. Já os outros dois filmes rompem completamente com
qualquer tentativa de identificação pelo espectador e mesmo com a
paradoxal arguição indiferente que marca os personagens
godardianos. A desordem reina — mas tudo de acordo com a
autenticidade que só um fragmento pode carregar, como diz a citação
de Brecht lida na voz de Godard. Migalhas de saber, diria Lacan, que
aqui recebemos em seguidas explosões de imagem-som-palavra. Tudo de
acordo com a temporalidade e a firmeza do despedaçamento dos
ensaios.
Os
filmes não saem nunca da estrutura de sonho, sua única exatidão.
Mais precisamente, um estado hipnagógico; ainda estamos acordados,
mas já estamos sonhando. As imagens do dia e o caldeirão psíquico
já fabricando pensamentos a todo vapor. “Se você sonha, aceite
seus sonhos. É o papel do dorminhoco”, Godard alerta em Imagem
e palavra. O filme se
divide em cinco partes, tal como os cinco dedos da mão: “a
verdadeira condição humana é pensar com as mãos”. O animal
simbólico está fadado à multiplicidade de funções em uma única
parte de seu corpo, enumerou Alfredo Bosi em O
ser e o tempo da poesia (1977).
Em
1972, Lacan disse que o objeto a
escapole das mãos em dois tempos: natureza e metáfora, as duas
partes de Adeus à
linguagem. Corpo e
significante são aqui discriminados pelo olhar. Em boa parte do
filme, acompanhamos Roxy, cachorro do próprio Godard, que vaga por
imagens saturadas e sons desconexos. O filme explora o 3-D para
subverter seu propósito hollywoodiano. A consistência da
experiência imaginária a que a tecnologia costuma se destinar dá
lugar ao desmonte. A mirada canina, às voltas com parcialidades,
interrupções e desnivelamentos, escancara o significante enquanto
ele não é idêntico a si mesmo; se diferencia, no filme, por
combinação aparentemente aleatória. Somos convocados à busca da
significação e à atenção flutuante. Nos esforçamos a
compreender, mas relaxamos prazerosamente. Dessa encruzilhada de
sentidos, o produto dessa experiência, menos melancólica que em
Imagem e palavra,
é esse único objeto, escorregadio, que a lógica é capaz de
produzir, impasse de todo discurso.
Da
reflexão entre democracia e totalitarismo à vadiagem de Roxy, há
conversas esparsas de um casal sobre política, filosofia,
matemática. “As duas grandes invenções: o infinito e o zero”,
diz o homem. A mulher responde: “Mas não... o sexo e a morte”.
Cita-se uma tal curva de Laurent Schwartz-Dirac que é infinita em
todos os seus pontos, exceto em um onde é nula. São essas as
dimensões que marcam esses filmes, mais do que outros de Godard, por
serem as mesmas a que o significante nos leva, criando nelas seu
impasse fundamental: o sexo e a morte. O infinito se sustenta nessa
nulidade significante, indeterminação que nos obriga a criar
objetos para além do princípio do prazer, encore,
en corps,
fora do corpo, fora do equilíbrio vital.
Não
à toa, ambos os filmes se indagam sobre a guerra, a reprodução das
guerras, a repetição da história. As cinco partes de Imagem
e palavra — Remakes,
As noites de São
Petersburgo, Essas
flores entre os trilhos no vento das viagens,
O espírito das leis
e Região
central-Arábia feliz
— refletem sobre democracia, preconceito, barbárie, o mal-estar na
civilização. Aqui não há sombras de personagens, mas trechos de
filmes, imagens de guerra e documentações de destruição e
protesto. O filme descostura e picota mesmo as suturas menos
convencionais da forma. Como o próprio Godard disse uma vez sobre
seu estilo, não se tratou de dizer algo, mas mostrar2.
Sempre primordialmente preocupado com o talhamento e a renovação, o
jovem cineasta de 89 anos não transmite apenas melancolia no filme:
“Assim como o passado é imutável, também as esperanças
permanecerão imutáveis”.
“Eu
não direi quase nada, eu busco a pobreza na linguagem”, diz o
homem de Adeus à
linguagem. No cantão
de Vaud, na Suíca, onde mora Godard, “adieu”
porta a ambiguidade de “salut”,
dependendo da hora do dia ou de nossa entonação, como ele disse em
entrevista3.
Entre zero e o infinito do significante, onde um sentido se despede,
no mesmo lance outro desponta.
Luiz
Fellipe Almeida é psicanalista, mestrando em psicologia clínica no
Instituto de Psicologia da USP.
TRAILER : Adeus à linguagem
TRAILER : Imagem e palavra
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