de Viviana
S. Venosa
Minha vida me
"urtrapassa"
Em
"quarqué" rota que eu faça
Dei um grito no
escuro
"Sô
parcero" do futuro
Na reluzente
"galáchia"
(“Dois Mil e
Um”, de Os Mutantes)
Estas
três questões que intitulam esse texto são feitas aos androides de WestWorld, uma série
de ficção-científica cuja primeira temporada foi exibida em 2016 pela HBO. O
gênero de ficção científica, tanto no cinema quanto na literatura, é bastante
amplo que se pode considerar como partes deste grande conjunto tanto Frankenstein de Mary W. Shelley, quanto a franquia Star Warsde George
Lucas ou a série “Guia do Mochileiro das Galáxias” de Douglas Adams, ou mesmo o
clássico Blade Runner de
Ridley Scott que, por sua vez, foi baseado no livro Androides Sonham com Carneiros
Elétricos? de Philip
K. Dick. A lista é tão grande que, se eu me pusesse a tarefa quase infinita de
completá-la agora, certamente não terminaria esse texto.
Para
circunscrever o escopo, parto novamente das três perguntas: Alguma vez você já
se questionou sobre a natureza da sua realidade? Você sente inconsistências no
seu mundo? Ou repetições? – se você respondeu “sim” a alguma delas, ora ora,
você é um possível analisante! E o que isso quer dizer? De saída, que é uma
possibilidade, mas não uma imposição ou uma necessidade. Ainda que, muitas
vezes, talvez quase todas as vezes, as pessoas procurem analistas por atribuir
que têm questões de necessidade. Isto é, quando algo não funciona bem, seja um
estranhamento com a realidade, uma inconsistência ou repetições.
E
o que isso tem a ver com ficção científica? Muita coisa, além das perguntas já
supracitadas, claro. Phillip K. Dick, cujos livros inspiraram alguns filmes de
ficção científica, foi um autor que persistiu na pergunta sobre o que é a
realidade, praticamente em toda a sua obra. Pergunta essa a qual também remonta
boa parte da tradição filosófica ocidental. No entanto, pessoas com estas
questões procuram a análise para tratar delas. Portanto, não é meramente um
tema da metafísica, mas também teórico-clínico da psicanálise.
Na
série WestWorld,
ao avesso da psicanálise, essas perguntas não eram feitas para despertar, mas
para manter “sonhando” os androides. Mantê-los na crença consistente de seus
cotidianos vividos em loopings repetitivos.
Na série, a realidade dos androides está na “inconsciência” sobre suas
repetições. Em psicanálise, podemos dizer que a inconsistência não é oposto da
repetição. A repetição de uma inibição, um sintoma, uma angústia é aquilo mesmo
que pode fazer alguém indagar sobre sua “realidade”.
Ora,
é no caráter absurdo dos sonhos que Freud vai apoiar o método psicanalítico, no
sentido de que – apesar de parecer absurdo à vida de vigília – o sonho tem uma
lógica própria, um modo de funcionamento que a nossa razão desperta interpreta
como “sem razão” ou sem sentido. E é com Lacan e a leitura particular que faz
de Freud que podemos sintetizar mais ou menos e muito caricaturalmente o
seguinte: a lógica que nos dá consistência de ser é construída sob o princípio
da não-contradição. Ou seja, na medida que alguém diz “eu sou”, uma
consistência se definiria. Sendo assim, o sem sentido do caráter absurdo do
sonho pode ser dito como um sentido Outro, que não implica necessariamente em
significar. Dito de outro modo, é uma divisão, um corte que faz cair as
significações, que o modo de funcionamento dentro da lógica da não-contradição
sustenta como consistentes.
Mas,
se “sou lá onde não penso, e penso lá onde não sou” (Lacan), em “dois dias essa
realidade se desmonta” – parafraseando o texto de Philip K.Dick de 1978 – isto
é, se sou onde não faz sentido e o sentido está onde não sou, a afirmativa
verdadeira e consistente de meu ser está em... Outro lugar. No lugar de onde
isso fala por meio de sonhos, atos-falhos, chistes e outros absurdos sem
sentido, como as inibições, os sintomas e as angústias. Os sintomas,
especialmente, também marcam o nascimento da psicanálise, pois é com seu
caráter absurdo à medicina que Freud propôs escutá-los – como fez com os
sonhos. Se temos uma cárie, vamos ao dentista, mas se falamos de dor de dente
na análise, outro campo se abre. Um campo no qual o tratamento é a escuta desta
outra lógica, também chamada de lógica do significante.
Mais
uma vez, uma ponte com a ficção científica pode ser traçada. Os androides de
WestWorld têm suas consistências vitais criadas por histórias, é preciso
conferir-lhes algo próximo a lembranças para que permaneçam incautos, ingênuos.
Entrar
em análise pode se considerar uma grande aventura. Implica perder a verdade que
garante a existência e desarticular esta verdade do saber. Implica escutar sua
carta escrita para alguém, lida por aquele que ocupa o lugar de analista como
inversão e subversão da sua frágil e ficcional história. Em Blade Runner, a
vertigem desta aventura está na versão em que não sabemos se Deckard é – ele
mesmo – também um replicante. Qual seria a sua verdade? E esta versão do filme
deixa, oportunamente, essa pergunta sem resposta.
Nos
fóruns de discussão sobre WestWorld muitos
internautas também se perguntavam, jocosamente, se eram eles mesmos androides,
se estavam a repetir um loop. Será que estes internautas poderiam supor que,
quando cometem um ato-falho, é Outro que fala? E o que temos a ver com este
Outro que fala em nós? Implicamos com o Outro, ou estamos implicados neste
Outro que nos atravessa, fundando um sujeito em esquize?
Os
loops dos androides de WestWorld consistidos por estas realidades criadas podem
habitar qualquer um deles. Quando uma máquina quebra, basta substituir-lhe os
softwares e toda a historieta algoritmicamente inventada. Assim, os androides
podem escolher com base nos algoritmos que os programam, mas não podem decidir
fora deles. A diferença que proponho entre escolher e decidir é tal que em
escolher se calcula como se perde “menos”, e na decisão um encontro ocorre.
Encontro de imprevisibilidade com a marca que nos define únicos,
insubstituíveis. Mas insubstituíveis naquilo que nos marca como sujeitos, a
divisão mesma que inaugura a série repetitiva que nos faz indagar e mobiliza
para o início de uma análise. A origem daquilo que já estava lá, e
paradoxalmente aparece como um novo, um supetão no vazio, o tropeço do sempre
aí.
Com
isso, quero propor que as lembranças não são memórias. As lembranças são as
repetições algorítmicas às quais estão sujeitos os androides e... nós? São o
conhecimento adquirido que nos faz ter bom senso sobre certas coisas. A
memória, esta da que tratamos em psicanálise é referida a esta marca inaugural,
traço primeiro e único que faz diferença. E em fazendo, perfaz outro tipo de
repetição do súbito vazio.
Como
eu disse, há os sintomas – uma análise não deveria funcionar para conversar
sobre problemas filosóficos – há dor implicada, há angústias em jogo. Isto quer
dizer que há efeitos. Os tais significantes são uma lógica sincrônica da
linguagem, que faz furo na lógica da não-contradição. Mas quando falamos, eles
estão lá a dizer outra coisa, contra-dizendo.
Então, como pode que, pela
operação do significante [pela operação de uma análise], existam pessoas que se
curam? Pois é exatamente disso que se trata. É fato que existem pessoas que se
curam. Freud bem sublinhou que não era preciso que o analista estivesse
possuído pelo desejo de curar; mas é fato que há pessoas que se curam. (LACAN,
1978)
Quando
falamos, sideramos. Uma análise tem a visada de desideração, e isso tem a ver
com o desejo. É nesta sideração do que se diz em análise que a causa do desejo
se revela. Não como um objeto de conhecimento. Mas como um saber sobre esse
furo que fundamenta o sujeito. Uma análise é para qualquer um, mas apenas a
sustenta algum que se disponha ao desejo de se colocar em posição de
analisante.
Bibliografia:
Dick,
Philip K. (1978) Como Construir um Universo que não Desmorone Dois Dias Depois.
Disponível em: http://capacitorfantastico.blogspot.com.br/2010/04/como-construir-um-universo-que-nao.html,
acessado em 08.04.2018.
FINGERMANN,
D. Repetição e experiência analítica. In: FINGERMANN, D. (org.) Paradoxos da
repetição. São Paulo: Annablume, 2014.
FREUD,
S. (1900) A interpretação dos sonhos. In: FREUD, S. Edição standard das obra
completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996, vol. IV.
LACAN,
J. (1978) A transmissão - Encerramento do 9º Congresso da Escola Freudiana de
Paris. Disponível em: http://www.appoa.com.br/correio/edicao/246/a_transmissao_encerramento_do_9_congresso_da_escola_freudiana_de_paris/222,
acessado em 08.04.2018.
LACAN,
J. (1960) Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano.
In: LACAN, J. (1966) Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998, p.
843-864.
Artigo postado, com autorização da autora, após sua publicação
original no blog da editora Aller :
https://www.allereditora.com.br/single-post/2018/04/09/Alguma-vez-voc%C3%AA-j%C3%A1-se-questionou-sobre-a-natureza-da-sua-realidade-Voc%C3%AA-sente-inconsist%C3%AAncia-no-seu-mundo-Ou-repeti%C3%A7%C3%B5es
Trailer
3 comentários:
Excelente o desenrolar do seu texto, que vai ao âmago da "razão" de ser da psicanálise, parabéns!
Era eu no comentário anterior
Rosa Diamand (tá com bug e saindo como anônimo)
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