de
Oscar
Cesarotto
Nos
últimos anos do seu seminário, Jacques Lacan comentou, com sorna,
aquilo que nunca teria acontecido: a psicanálise inventar alguma
perversão inédita ou, talvez, outro pecado original. Encore,
na televisão, ainda esperava, suspirando com Rimbaud, que um novo
amor desse um jeito na ausência da relação sexual...
O
diretor norte-americano John Waters não precisou ser lacaniano para
filmar, em 2004, A dirty shame, O clube dos pervertidos, no
Brasil, direto para as locadoras. Mas teria sido bem freudiano ao
mostrar um insólito cardápio de psichopatias
sexualis, na atualização, para o século XXI, do
primeiro dos Três ensaios. Em português, o título é superegóico;
em inglês, politicamente correto. No deboche dos melindres
contemporâneos, isto é, da correção política, as “perversões”
capitalistas, adultas & consensuais, colocam em xeque tanto os
limites da moral, quanto da democracia. O
tempora, o mores? Sic transit gloria mundi!
Desde
sempre, John Waters foi infame; famoso, só depois. Autor de uma
filmografia indecente, antes underground, foi se tornando conhecido
do grande público após o sucesso de Hairspray (1988), Cry
Baby (1990), Mamãe é de morte (Serial Mom – 1994),
Cecil Bem Demente (Cecil B. Demented – 2000), graças à
colaboração de atores & atrizes de boa reputação, junto com
outros seres ímpares & bizarros, um panteão permeado de
anormais & extraviados, a serviço do seu talento criativo,
provocador & transgressor. No filme mencionado, esforçou-se para
imaginar um novo ato sexual, um exercício de amor físico novinho em
folha. Vejamos:
Sylvia,
sexualmente insatisfeita & sempre mal-humorada, a pesar de Vaugh,
seu marido insinuante & disponível; sua filha Caprice, portadora
de enormes seios, louvados pelo seu fã clube; Big Ethel, sua mãe,
indignada com a vizinhança liberal demais & beata perante tantas
imoralidades. O bairro, que já foi pacato, agora abriga moradores
devassos; como de praxe, situado na cidade de Baltimore, cenário
autobiográfico do diretor.
A
dona de casa vive atribulada, cuidando de sua loja & vigiando a
filha, em prisão domiciliar por conduta indecorosa. A vida de Sylvia
vira de pernas para o ar quando ela sofre uma pancada na cabeça num
acidente. É socorrida pelo motorista de guincho Ray-Ray, na verdade,
um competente guru sexual, que a introduz num grupo de perversos
polimorfos muito contentes de satisfazer suas pulsões & desejos
mais íntimos, sem pudores. O tesão que então experimenta a faz
sentir viva & ousada, assediando desde o marido até qualquer um,
na demanda de ser satisfeita do modo preferencial, buco-genital. De
repente, o erotismo que parece tomar conta de toda a comunidade
produz, dialeticamente, uma reação proporcional. Liderados por Big
Ethel, mãe, avô & matriarca, uma porção de vizinhos se
declaram “assexuados”, melhor dizendo, “neutros” (neuters),
sem gênero nem vontade, planejando uma campanha para denunciar a
sordidez & promover a castidade. A partir daqui, sucederão idas
& vindas, vitórias & derrotas das forças repressoras &
dos cidadãos libidinalmente libertos.
Entretanto,
o que está em jogo vai além da simples insurreição pulsional:
para uma verdadeira revolução dos tabus, precisará ser
desenvolvida uma façanha sexual, transcendente & radical.
Ray-Ray confia na capacidade de Sylvia ser o paradigma encarnado,
após a concussão que a despertou para o gozo. Eureka! Um
croc bem dado na cabeça corresponderia à função do orgasmo
preconizada por Wilhelm Reich, ademais de localizar o ponto G no
cocuruto! A boa nova: testa com testa, batendo de frente, ambos
participantes atingem o acme do prazer, o paraíso percutido, knock
out.
Também,
merecem destaque as aberrações sexuais pós-freudianas &
pós-lacanianas preliminares ao clímax, da suruba & do filme:
1.
Misofilia: Atração lúbrica por sujeira.
2.
Adulto neném: Regressão lúdica à organização pré-genital. 3.
Sanduba humano: Uma mulher, prensada entre dois homens famintos. 4.
Família Ursa: Coletivo de homossexuados obesos & peludos. 5.
Sploosh: Fetiche inglês. Desejo de despejar comida em seus locais
íntimos. 6. Anorexia sexual: Desinteresse pela manducação erétil.
7. Neutralidade carnal: Anulação dos impulsos da sexualidade, com
ajuda do Prozac.
No
final apoteótico, Ray-Ray, mestre & messias, eleva-se ao céu.
Seu corpo inteiro, transformado em falo, supera a lei da gravidade,
com sua cabeça ejaculando ecumenicamente sobre os personagens, a
câmera & os espectadores deste lado da tela. THE END.
Happy wet end. Por fim,
o novo ato sexual foi realizado por alguém especial, Aquele aquém &
além da castração; pelo menos Um, cuja performance vale para
todos, como transferência & ideal. Alguma vez jorrou sangue do
Ungido; nos dias de hoje, pinga sêmen lá de cima...
Missão
(impossível) cumprida? Em termos cinematográficos &
contra-ideológicos, okey,
vale a pena assistir & dar muita risada. Na procura do Bem
Supremo, o goal
& o graal, ainda falta muito a desejar. O Kama Sutra proposto,
téte-a-téte,
não passa de uma formação de compromisso, sintetizando escândalo
& recalque. Não há relação sexual: Parece ter sido lido ao pé
da letra, pois no filme tem de tudo, menos penetração. De fato, o
que o matema psicanalítico afirma é a não proporção entre os
sexos, diferentes no real da anatomia & distintos na sexuação.
Mas, para Waters, todo mundo é simétrico, apenas parceiros
hermafroditas que gozam autoeroticamente de forma chocante. A pancada
erógena não deixa de ser um traumatismo craniano, que parece afetar
mais ao cérebro que aos genitais. Por isso mesmo, pode ser praticada
sem tirar a roupa. Em definitivo, uma perversão puritana, sublime &
pasteurizada. Uma vergonha limpa, ironicamente correta.
Artigo
postado, com autorização da autor, após publicação original na
Revista Flutuante :
https://revistas.pucsp.br/index.php/leituraflutuante/article/view/37656
Oscar
Angel Cesarotto possui
graduação em Psicologia - Facultad de Filosofia & Letras de La
Universidad de Buenos Aires (1977), e doutorado em Comunicação &
Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
(1998). Atualmente, exerce a prática clínica, é professor da
PUC-SP no Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação &
Semiótica, e coordenador do curso de especialização Semiótica
Psicanalítica - Clínica da cultura (COGEAE).
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