sexta-feira, 3 de agosto de 2018

Clube dos Pervertidos - Uma Vergonha Sacana


de Oscar Cesarotto

Nos últimos anos do seu seminário, Jacques Lacan comentou, com sorna, aquilo que nunca teria acontecido: a psicanálise inventar alguma perversão inédita ou, talvez, outro pecado original. Encore, na televisão, ainda esperava, suspirando com Rimbaud, que um novo amor desse um jeito na ausência da relação sexual...


O diretor norte-americano John Waters não precisou ser lacaniano para filmar, em 2004, A dirty shame, O clube dos pervertidos, no Brasil, direto para as locadoras. Mas teria sido bem freudiano ao mostrar um insólito cardápio de psichopatias sexualis, na atualização, para o século XXI, do primeiro dos Três ensaios. Em português, o título é superegóico; em inglês, politicamente correto. No deboche dos melindres contemporâneos, isto é, da correção política, as “perversões” capitalistas, adultas & consensuais, colocam em xeque tanto os limites da moral, quanto da democracia. O tempora, o mores? Sic transit gloria mundi!

Desde sempre, John Waters foi infame; famoso, só depois. Autor de uma filmografia indecente, antes underground, foi se tornando conhecido do grande público após o sucesso de Hairspray (1988), Cry Baby (1990), Mamãe é de morte (Serial Mom – 1994), Cecil Bem Demente (Cecil B. Demented – 2000), graças à colaboração de atores & atrizes de boa reputação, junto com outros seres ímpares & bizarros, um panteão permeado de anormais & extraviados, a serviço do seu talento criativo, provocador & transgressor. No filme mencionado, esforçou-se para imaginar um novo ato sexual, um exercício de amor físico novinho em folha. Vejamos:

Sylvia, sexualmente insatisfeita & sempre mal-humorada, a pesar de Vaugh, seu marido insinuante & disponível; sua filha Caprice, portadora de enormes seios, louvados pelo seu fã clube; Big Ethel, sua mãe, indignada com a vizinhança liberal demais & beata perante tantas imoralidades. O bairro, que já foi pacato, agora abriga moradores devassos; como de praxe, situado na cidade de Baltimore, cenário autobiográfico do diretor.

A dona de casa vive atribulada, cuidando de sua loja & vigiando a filha, em prisão domiciliar por conduta indecorosa. A vida de Sylvia vira de pernas para o ar quando ela sofre uma pancada na cabeça num acidente. É socorrida pelo motorista de guincho Ray-Ray, na verdade, um competente guru sexual, que a introduz num grupo de perversos polimorfos muito contentes de satisfazer suas pulsões & desejos mais íntimos, sem pudores. O tesão que então experimenta a faz sentir viva & ousada, assediando desde o marido até qualquer um, na demanda de ser satisfeita do modo preferencial, buco-genital. De repente, o erotismo que parece tomar conta de toda a comunidade produz, dialeticamente, uma reação proporcional. Liderados por Big Ethel, mãe, avô & matriarca, uma porção de vizinhos se declaram “assexuados”, melhor dizendo, “neutros” (neuters), sem gênero nem vontade, planejando uma campanha para denunciar a sordidez & promover a castidade. A partir daqui, sucederão idas & vindas, vitórias & derrotas das forças repressoras & dos cidadãos libidinalmente libertos.

Entretanto, o que está em jogo vai além da simples insurreição pulsional: para uma verdadeira revolução dos tabus, precisará ser desenvolvida uma façanha sexual, transcendente & radical. Ray-Ray confia na capacidade de Sylvia ser o paradigma encarnado, após a concussão que a despertou para o gozo. Eureka! Um croc bem dado na cabeça corresponderia à função do orgasmo preconizada por Wilhelm Reich, ademais de localizar o ponto G no cocuruto! A boa nova: testa com testa, batendo de frente, ambos participantes atingem o acme do prazer, o paraíso percutido, knock out.

Também, merecem destaque as aberrações sexuais pós-freudianas & pós-lacanianas preliminares ao clímax, da suruba & do filme:

1. Misofilia: Atração lúbrica por sujeira.
2. Adulto neném: Regressão lúdica à organização pré-genital. 3. Sanduba humano: Uma mulher, prensada entre dois homens famintos. 4. Família Ursa: Coletivo de homossexuados obesos & peludos. 5. Sploosh: Fetiche inglês. Desejo de despejar comida em seus locais íntimos. 6. Anorexia sexual: Desinteresse pela manducação erétil. 7. Neutralidade carnal: Anulação dos impulsos da sexualidade, com ajuda do Prozac.

No final apoteótico, Ray-Ray, mestre & messias, eleva-se ao céu. Seu corpo inteiro, transformado em falo, supera a lei da gravidade, com sua cabeça ejaculando ecumenicamente sobre os personagens, a câmera & os espectadores deste lado da tela. THE END. Happy wet end. Por fim, o novo ato sexual foi realizado por alguém especial, Aquele aquém & além da castração; pelo menos Um, cuja performance vale para todos, como transferência & ideal. Alguma vez jorrou sangue do Ungido; nos dias de hoje, pinga sêmen lá de cima...

Missão (impossível) cumprida? Em termos cinematográficos & contra-ideológicos, okey, vale a pena assistir & dar muita risada. Na procura do Bem Supremo, o goal & o graal, ainda falta muito a desejar. O Kama Sutra proposto, téte-a-téte, não passa de uma formação de compromisso, sintetizando escândalo & recalque. Não há relação sexual: Parece ter sido lido ao pé da letra, pois no filme tem de tudo, menos penetração. De fato, o que o matema psicanalítico afirma é a não proporção entre os sexos, diferentes no real da anatomia & distintos na sexuação. Mas, para Waters, todo mundo é simétrico, apenas parceiros hermafroditas que gozam autoeroticamente de forma chocante. A pancada erógena não deixa de ser um traumatismo craniano, que parece afetar mais ao cérebro que aos genitais. Por isso mesmo, pode ser praticada sem tirar a roupa. Em definitivo, uma perversão puritana, sublime & pasteurizada. Uma vergonha limpa, ironicamente correta.

Artigo postado, com autorização da autor, após publicação original na Revista Flutuante : https://revistas.pucsp.br/index.php/leituraflutuante/article/view/37656

Oscar Angel Cesarotto possui graduação em Psicologia - Facultad de Filosofia & Letras de La Universidad de Buenos Aires (1977), e doutorado em Comunicação & Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1998). Atualmente, exerce a prática clínica, é professor da PUC-SP no Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação & Semiótica, e coordenador do curso de especialização Semiótica Psicanalítica - Clínica da cultura (COGEAE).
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