de Dorothee Rüdiger
Se depender do enredo
do filme Elle, o século XXI é “dela”. Produção
franco-alemã de 2016, dirigido por Paul Verhoeven e com Isabelle Huppert
no papel principal, a película nos leva para cenas do cotidiano
francês, onde, de forma caricata, o mundo é dominado por
Michelle. “Sou a chefe” soa o tempo todo nos ouvidos de quem ela
sustenta: da mãe, do filho, da nora, do neto, do ex-marido, do
amante da mãe e de um bando de nerds que
dependem dela como empregadora. “Ela” domina até a namorada do
“ex”, décadas mais nova. Fazendo-se de “coleguinha” da rival, a faz de gato e
sapato. Não está sozinha. Tem uma amiga do peito com a qual se entende,
divide o filho, o marido e o desprezo pelos homens.
Ah, esses homens! Que
tristes figuras! São uns coitados, no sentido literal da palavra,
lembrando que a palavra “coitado” tem sua raiz no coito. Estão ferrados. Diante
dela, abaixam as calças, às vezes no sentido figurativo, às vezes
literalmente. O marido é um escritor fracassado. Enquanto ela trabalha,
ele procura, em vão, realização pessoal, como faziam, há décadas as
donas de casa desesperadas. O filho tenta ser pai. Bem que se esforça
para conseguir sair do papel do filhote da mãe, mas acaba se juntando com
uma mulher que consegue ser mais bossy que a própria genitora. A garota
é dada a “excursões” sexuais que dão o pano de fundo para o filme tratar,
de forma jocosa, o velho ditado romano “mater certa est” –
sobre a mãe se tem certeza. O amante, marido da melhor amiga, vira
sanduiche entre uma e outra mulher. Michelle o usa, porque está a fim de
transar, nada mais, nada menos. E até o vilão mascarado estuprador não é mais
que um burguês certinho que realiza sua sexualidade perversa com o “alvará”
de quem? Da própria esposa.
Será que Elle é um filme feminista? Será que as
mulheres inverteram, no século XXI, os papéis tradicionalmente distribuídos
entre homem e mulher? Seria muito fácil enxergar o filme sob esse aspecto.
Sua narrativa intriga o espectador não somente sobre a questão do
masculino e do feminino, como também sobre a questão da própria existência
humana.
Percebe-se, o tempo
todo, a presença do que Jacques Lacan chama de “Real”. A história é
atravessada pelo acaso, pelo imprevisto. É a surpresa, a invasão de sua
casa que vira Michelle pelo avesso. Quem já teve a oportunidade de ler o
Seminário XXIII de Lacan sobre o Sinthoma pode lembrar do aforismo lacaniano “a
mulher é para um homem um sintoma, o homem para uma mulher é um avassalamento
“. A própria máscara do invasor é da ordem do Real. Enigmática, esconde algo
que não se reconhece, não é simbolizável. (Quem gosta de cinema pode lembrar do
filme “De olhos bem fechados”, um clássico dirigido por Stanley
Kubrik e baseado na “Novela do Sonho”, de Arthur Schnitzler que, por sua vez,
deixou-se inspirar nessa obra pela leitura da “Interpretação dos Sonhos”,
de Sigmund Freud.) O Real está onipresente na morte da mãe, do pai,
das pessoas assassinadas há 40 anos, de um passarinho, da menina coberta de
cinzas ...
Mas, antes de mais
nada, Elle é
um filme sobre a sexualidade. Politicamente incorreto, como a própria
sexualidade, difere, e muito, da pornografia feminina, ultimamente tão em
voga por prometer receitas infalíveis para suscitar o tesão das mulheres.
Elle expõe que não há receita trazendo para
seus espectadores a questão do desamparo humano diante da sexualidade.
Como Sigmund Freud afirma, em 1905, a sexualidade humana, por ser
atravessada pela civilização, é polimorfa , bissexual e perversa. Mais ainda,
Freud nos ensina, que a sexualidade é assustadora, angustiante, estranha, unheimlich. Jacques Lacan ressalta a
constatação já trazida por Freud, que a sexualidade humana não tem utilidade,
não serve para nada a não ser ao próprio gozo do corpo. E sendo o gozo
singular de cada ser humano, o gozo feminino é diferente do masculino. Em
soma, não há receita para a plena satisfação sexual nem para um homem, nem para
uma mulher. Sexo deixa sempre um gostinho de “quero, mais”.
O filme Elle afirma e reafirma o que
Freud e Lacan disseram sobre a sexualidade. Michelle é bissexual.
Relaciona-se com homens e mulheres. O filme não choca nesse sentido, uma vez
que, hoje, caíram certas barreiras morais, cujo resquício é tratado por
Verhoeven com ironia. Aloca a história de Michelle na época do Natal com
direito a presépio e à Missa do Galo transmitida pela televisão, enquanto expõe
a “família sagrada” ao ridículo. Os personagens bem que tentam viver comme
il faut ,
mantendo tradições e relações de vizinhança civilizadas num bairro, onde se
recicla o lixo. Por detrás dessa fachada e debaixo dos lençóis, porém, as
pessoas não são tão certinhas assim.
Numa época, em que os
valores morais eram menos flexíveis, Freud já sabia que nada na sexualidade
humana é normal. Sexo não se limita ao genital. Pode ser oral, anal,
auto-erótico, enfim, pode realizar coisas que “os normais também praticam
em sua vida sexual”. Cada um sabe dos seus limites. O limite “dela” é bem
flexível. Masturba-se sem problemas espiando o vizinho bonitão pela janela.
Finge-se de morta, quando transa com o marido da melhor amiga e goza com a
necrofilia do outro. E, principalmente, indo contra tudo quanto manda o
bom senso, não denuncia que foi violentada. Ao contrário: ela curte
o estupro.
Poderíamos
diagnosticar Michelle como sadomasoquista? Freud, ainda nos três ensaios sobre
a sexualidade, diz que a violência e a pulsão sexual estão intimamente
correlacionadas. Os masoquistas são pessoas que voltam sua agressividade
sádica contra si mesmos, fazendo-se objeto de sua própria violência, uma
vez que sentem culpa pela agressividade. Talvez esteja aqui a chave de
interpretação da enigmática cena que mostra Michelle sendo uma criança coberta
de cinza.
Mas ... Essa história
não parece tão simples assim. Michelle sente-se incomodada com seu
estranho desejo de repetir a cena violenta. A angústia diante da sexualidade
surge para ela, de supetão, sem ela querer. Irrompe, literalmente, em sua vida.
Mais uma vez, podemos lembrar Freud , quem descreve em seu ensaio
“O estranho” a angústia diante do estranho íntimo da sexualidade e de sua
pulsão como medo da castração. Algo terrível pode acontecer com quem cede
à pulsão sexual. Para Freud, o medo da castração é relacionado à
perda dos órgãos sexuais. Ter ou não ter um pênis dá ensejo às fantasias de
castração das crianças. Sexualidade e perigo andam de mãos dadas.
Jacques Lacan, mais
tarde, afirma que o ser humano é castrado pela linguagem. Somos incapazes de
dizer do amor, de nos dizer, afirma. Michelle, a toda poderosa, de
repente, tem que se haver com a castração. Percebe suas fantasias nunca
experimentadas e sua insuficiência. Vive seu gozo como assustador, porque é
inominável. Na procura de um sentido para o indizível dela mesma, perde o
controle. Goza e experimenta, que o gozo é mortífero.
Durante 50 anos de
sua vida, “ela” procurava sentido no mundo fálico, masculino, no mundo da
necessidade e da carreira. Fez dinheiro, comprou uma casa, teve um filho,
separou-se, criou uma empresa de jogos, mandou e desmandou. Procurou ter
um falo. Negando a castração ela fantasiava ter o mundo sob seu
controle. Era uma caricatura como um homem daqueles que se deixam ofuscar pelo
dinheiro e pelo poder. Quando irrompe o Real com o estupro e a morte de
pessoas em sua volta, ela é deslocada à força na sua posição de Senhora, tendo
que questionar sua sexualidade e sua posição no mundo. Daqui em diante,
para Michelle não se trata de ter um objeto (homem) ou ser um objeto (do
homem), mas como se inventar como mulher. Será que “ela” se reinventa?
Talvez o filme dê pistas para isso.
Artigo postado, com
autorização do autor, após sua publicação original em: http://www.ipla.com.br/editorias/acontece/o-mundo-dominado-por-ela.html
Dorothee Rüdiger é psicanalista e doutora em Direito pela Universidade de São Paulo, sócia do Instituto da Psicanálise Lacaniana - IPLA em São Paulo.
Trailer
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