domingo, 10 de junho de 2018

Elle - O Mundo Dominado por Ela


de Dorothee Rüdiger 

Se depender do enredo do filme Elle, o século XXI é “dela”. Produção franco-alemã de 2016,  dirigido por Paul Verhoeven e com Isabelle Huppert no papel principal, a película  nos leva para cenas do cotidiano francês,  onde,  de forma caricata, o mundo é dominado por  Michelle.  “Sou a chefe” soa o tempo todo nos ouvidos de quem ela sustenta:  da mãe, do filho,  da nora, do neto, do ex-marido, do amante da mãe e de um bando de nerds que dependem dela como empregadora. “Ela”  domina até a namorada  do “ex”, décadas mais nova. Fazendo-se de “coleguinha” da rival, a faz de gato e sapato.  Não está sozinha. Tem uma amiga do peito com a qual se entende, divide o filho,  o marido e o desprezo pelos homens.  

Ah, esses homens! Que tristes figuras! São uns coitados,  no sentido literal da palavra, lembrando que a palavra “coitado” tem sua raiz no coito. Estão ferrados. Diante dela, abaixam as calças, às vezes no sentido figurativo,  às vezes literalmente. O marido é um  escritor fracassado. Enquanto ela trabalha,  ele procura, em vão,  realização pessoal, como faziam, há décadas as donas de casa desesperadas.  O filho tenta ser pai. Bem que se esforça para  conseguir sair do papel do filhote da mãe, mas acaba se juntando com uma mulher que consegue ser mais  bossy  que a própria genitora. A garota é dada a “excursões” sexuais que dão o pano de fundo para o filme tratar,  de forma jocosa, o velho ditado romano “mater certa est” – sobre a mãe se tem certeza.  O amante, marido da melhor amiga, vira sanduiche entre uma e outra mulher. Michelle o usa, porque está a fim de transar, nada mais, nada menos. E até o vilão mascarado estuprador não é mais  que um burguês certinho que realiza sua sexualidade perversa com o “alvará”  de quem? Da própria esposa.  

Será que Elle é um filme feminista? Será que as mulheres inverteram, no século XXI, os papéis tradicionalmente distribuídos entre homem e mulher? Seria muito fácil enxergar o filme sob esse aspecto.  Sua narrativa intriga o espectador não somente sobre a questão do masculino e do feminino, como também sobre a questão da própria existência humana.

Percebe-se, o tempo todo, a presença do que Jacques Lacan chama de “Real”. A história é  atravessada pelo acaso, pelo imprevisto. É a surpresa, a invasão de sua  casa que vira Michelle pelo avesso. Quem já teve a oportunidade de ler o Seminário XXIII de Lacan sobre o Sinthoma pode lembrar do aforismo lacaniano “a mulher é  para um homem um sintoma, o homem para uma mulher é um avassalamento “. A própria máscara do invasor é da ordem do Real. Enigmática, esconde algo que não se reconhece, não é simbolizável. (Quem gosta de cinema pode lembrar do filme “De olhos bem fechados”, um clássico  dirigido por  Stanley Kubrik e baseado na “Novela do Sonho”, de Arthur Schnitzler que, por sua vez, deixou-se inspirar nessa obra pela leitura  da “Interpretação dos Sonhos”,  de Sigmund Freud.) O Real está onipresente na morte  da mãe, do pai, das pessoas assassinadas há 40 anos, de um passarinho, da menina coberta de cinzas ...

Mas, antes de mais nada,  Elle  é um filme sobre a sexualidade. Politicamente incorreto,  como a própria sexualidade, difere, e muito,  da pornografia feminina, ultimamente tão em voga por prometer  receitas infalíveis para suscitar o tesão das mulheres.  Elle expõe que não há receita trazendo para seus espectadores a questão do desamparo humano diante da sexualidade.  Como Sigmund Freud afirma, em 1905, a sexualidade humana, por ser atravessada pela civilização, é polimorfa , bissexual e perversa. Mais ainda, Freud nos ensina, que a sexualidade é assustadora, angustiante, estranha, unheimlich. Jacques Lacan ressalta a constatação já trazida por Freud, que a sexualidade humana não tem utilidade, não serve para nada a não ser ao próprio gozo do corpo.  E sendo o gozo singular de cada ser humano, o  gozo feminino é diferente do masculino. Em soma, não há receita para a plena satisfação sexual nem para um homem, nem para uma mulher. Sexo deixa sempre um gostinho de “quero, mais”.

O filme  Elle  afirma e reafirma o que Freud e Lacan disseram sobre a sexualidade.  Michelle é bissexual. Relaciona-se com homens e mulheres. O filme não choca nesse sentido, uma vez que, hoje, caíram certas barreiras morais, cujo resquício é tratado por Verhoeven com ironia. Aloca a história de Michelle na época do Natal com direito a presépio e à Missa do Galo transmitida pela televisão, enquanto expõe a “família sagrada” ao ridículo.  Os personagens bem que tentam viver comme il faut , mantendo tradições e relações de vizinhança civilizadas num bairro, onde se recicla o lixo. Por detrás dessa fachada e debaixo dos lençóis, porém, as pessoas não são tão certinhas assim.

Numa época, em que os valores morais eram menos flexíveis, Freud já sabia que nada na sexualidade humana é normal. Sexo não se limita ao genital.  Pode ser oral, anal, auto-erótico, enfim,  pode realizar coisas que “os normais também praticam em sua vida sexual”. Cada um sabe dos seus limites. O limite “dela” é bem flexível. Masturba-se sem problemas espiando o vizinho bonitão pela janela. Finge-se de morta, quando transa com o marido da melhor amiga e goza com a necrofilia do outro. E, principalmente, indo contra tudo quanto  manda o bom senso,  não  denuncia que foi violentada. Ao contrário: ela curte o estupro.  

 Poderíamos diagnosticar Michelle como sadomasoquista? Freud, ainda nos três ensaios sobre a sexualidade,  diz que a violência e a pulsão sexual estão intimamente correlacionadas.  Os masoquistas são pessoas que voltam sua agressividade sádica contra si mesmos, fazendo-se  objeto de sua própria violência, uma vez que sentem culpa pela agressividade. Talvez esteja aqui a chave de interpretação da enigmática cena que mostra Michelle sendo uma criança coberta de cinza.

Mas ... Essa história não parece tão simples assim. Michelle sente-se incomodada com  seu estranho desejo de repetir a cena violenta. A angústia diante da sexualidade surge para ela, de supetão, sem ela querer. Irrompe, literalmente, em sua vida. Mais uma vez,  podemos lembrar  Freud , quem descreve em seu ensaio “O estranho”  a angústia diante do estranho íntimo da sexualidade e de sua pulsão como medo da castração. Algo terrível pode acontecer com quem cede à pulsão sexual.  Para Freud, o medo da castração é relacionado à perda dos órgãos sexuais. Ter ou não ter um pênis dá ensejo às fantasias de castração das crianças.  Sexualidade e perigo andam de mãos dadas.

Jacques Lacan, mais tarde, afirma que o ser humano é castrado pela linguagem. Somos incapazes de dizer do amor, de nos dizer, afirma.  Michelle, a toda poderosa, de repente, tem que se haver com a castração. Percebe suas fantasias nunca experimentadas e sua insuficiência. Vive seu gozo como assustador, porque é inominável. Na procura de um sentido para o indizível dela mesma, perde o controle.  Goza e experimenta, que o gozo é mortífero.  

Durante 50 anos de sua vida, “ela” procurava sentido no mundo fálico, masculino, no mundo da necessidade e da carreira. Fez dinheiro, comprou uma  casa, teve um filho, separou-se, criou uma empresa de jogos, mandou e desmandou.  Procurou ter um falo.   Negando a castração ela fantasiava ter o mundo sob seu controle. Era uma caricatura como um homem daqueles que se deixam ofuscar pelo dinheiro e pelo poder.  Quando irrompe o Real com o estupro e a morte de pessoas em sua volta, ela é deslocada à força na sua posição de Senhora, tendo que questionar sua sexualidade e sua posição no mundo.  Daqui em diante, para Michelle não se trata de ter um objeto (homem) ou ser um objeto (do homem), mas como se inventar como mulher. Será que “ela” se reinventa?  Talvez o filme dê pistas para isso. 

Artigo postado, com autorização do autor, após sua publicação original em:  http://www.ipla.com.br/editorias/acontece/o-mundo-dominado-por-ela.html 

Dorothee Rüdiger é psicanalista e doutora em Direito pela Universidade de São Paulo, sócia do Instituto da Psicanálise Lacaniana - IPLA em São Paulo.

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