de Christian Ingo Lenz Dunker
Notas sobre Cinema e Psicanálise anos 1990
O texto que se segue
foi redigido em 1991, no entusiasmo da leitura do “Tractatus Logicus Philosophicus” de Wittgenstein em meio ao calor
dos estudos lacanianos, no intervalo da redação de minha dissertação de
mestrado, escrita em uma máquina de escrever. Uma época na qual possuir um
aparelho de vídeo cassete, por meio do qual um filme poderia ser visto e
revisto indefinidamente constituía uma luxo invejável. Um tempo no qual a música
acontecia em CDs, senão para os reles mortais brasileiros, ainda em antigos
discos de vinil. Um momento no qual a inflação galopante fazia com que as
análises fossem pagas em dólares ou reajustadas a cada sessão, conforme o
índice de correção monetária daquele dia. Naquele ano começou a primeira guerra
do Golfo, com a invasão americana no Kuwait. Dois anos depois da queda do muro
de Berlin, a União Soviética se decompunha dia a dia e Metalica, Kraftwerk, Nirvana e U2 eram novidades absolutas na música, assim como Legião Urbana, Plebe Rude e Titãs faziam
a nossa cabeça por aqui. Era profundamente “alternativo” conhecer algo sobre o
cinema nacional, seja Sergio Bianchi ou Eduardo Coutinho, seja “Terra em Transe” e o mito Glauber Rocha.
Discutíamos ferozmente se era razoável ou não ter um celular. Enquanto isso Ayrton
Senna vencia o campeonato mundial de Fórmula 1. Ter um computador era como ter um carro nos
anos 1930, você precisava ser uma espécie de mecânico de sua própria máquina:
entender de programação, sair de uma tela azul, conectar-se por meio de
discagem e reconfigurar “quando dava pau” pois a internet (BBS) era uma
aventura para iniciados. Tudo isso enquanto os “Os
Simpsons” eram exibidos pela primeira vez em televisão aberta, pois não
havia ainda canais pagos. O Brasil sentia o fim da ditadura com a aprovação da
constituição de 1988. O tempo da abertura política, ampla, geral e irrestrita
havia passado, restava a nossa frente o espírito de invenção e a tarefa de
redemocratizar o país e suas instituições. Lacan, em sua mais nova e
interrompida tradução, aparecia como uma teoria de vanguarda, ao lado do
pós-modernismo e das teorias semióticas e textualistas da cultura. Foi nesta
época que me reuni com alguns amigos da FAU, da Biologia e do Direito da USP
para pensar uma espécie de manifesto insurgente. Rodamos algumas cenas para um
filme improvável, em clima trágico existencial, imitando o que podíamos
entender de maio de 1968. Frequentamos algumas oficinas de poesia na Mário de
Andrade, novidade absoluta na época, mas na qual se formaram gente como Fabio
Weintraub e Rui Proença. Seguíamos as aparições extemporâneas de Antonio
Cândido ou Roberto Schwartz, Marilena Chauí e Bento prado Jr. ou Renato Mezan,
quando havia curso da Funarte no Masp (uma iniciativa sem precedentes para a
minha geração). Às vezes tinha um seminário de Flavio Di Giorgi ou de Mário
Chemberg, na antiga livraria ao lado do Cinema Belas Artes na avenida Paulista.
Íamos ao Centro Cultural São Paulo, onde assisti, “Encouraçado Potenkim” com aquela que se tornaria minha esposa (que
aliás, dormiu copiosamente neste que era o nosso primeiro encontro) . Outras
vezes Plínio Marcos vinha vender uma peça de teatro para quem estava nas mesas
do Café Piu-Piu, lá no bairro do Bexiga, onde também passavam filmes como “O Cão Andaluz” de Luiz Buñuel,
geralmente no horário da meia noite. Antes da coisa migrar para o cine
Oscarito, e começar o “fervo” da praça Roosevelt, quem não frequentava o Lira
Paulistana ou o Madame Satã, tinha algum apreço pelo Sampa, na rua dos Ingleses, onde rolava um
rock, naquela época chamado de “progressivo”. O cinema tinha uma dimensão de
abertura para o mundo que nenhuma outra forma de linguagem, com exceção da
psicanálise, conseguia produzir em nós. Cronenberg, Lynch, Coppola (hoje
maldito), Woody Allen (vide observação anterior), Kubrick ou Star Wars e
Indiana Jones era o que tínhamos para pensar. Lembro de quando era presidente do Centro Acadêmico da
Psicologia da USP e organizamos a apresentação privada, em vídeo cassete, do
censurado e proibido de “Je Vous Salut
Marie” de Jean-Luc Godard. Lembro da
competição para saber quem tinha visto mais vezes (no cinema) “Blade Runner, caçador de Androides” de Ridley
Scott, ou “Paris Texas”, de Wim
Wenders ou ainda o inexpugnável “Stalker”
de Andrei Tarkovsky. Lembro quando fomos a Buenos Aires, respirar ares
lacanianos e assistir “Hombre Mirando al
Sudeste” discutido junto com os filmes políticos de Costa Gavras. Lembro
quando uma professora querida respondeu a nossa pergunta provocativa sobre: afinal qual é o sentido da vida?
trazendo na semana seguinte o filme homônimo de Monty Pyton. Tudo isso eu devo
ao cinema, esta experiência hoje em extinção. É em homenagem àqueles saudosos
tempos que compartilho com vocês esta peça de juventude museológica chamada “Manifesto Ferro Carne”.
A
Estética do Ferro Carne
1. A
linguagem não se opõe ao mundo, mas a carne.
1.1. A linguagem é um sistema de
signos com dois tipos de oposição: fonemas e sintagmas.
1.2. A linguagem é tudo o que
podemos pensar.
1.3. O que não podemos pensar é
corpo.
1.4. Angústia é quando pensamos que
nos reduzimos apenas a nossos corpos.
1.4.1. Angústia é o
limite interior do pensamento.
1.4.2. Dor e prazer são
limites exteriores do pensamento.
1.4.3. Não se pode
representar o limite
2. O
ferro é a carne desencarnada.
2.1. Desencarnada a carne pode se
fundir com o ferro.
2.2. Se a carne pudesse ser
desencarnada existe relação sexual.
2.2.1. O ferro faz um,
mas não é humano.
2.2.2. A máquina é o
ferro em relação sexual.
2.2.3. A máquina é a
parte mais a repetição.
2.2.4. O corpo é o
pedaço mais a linguagem.
3. O
sintoma é fazer ver ao Outro o que seria a relação sexual se ela existisse.
3.1. O Outro da carne é o ferro.
3.1.2. O Outro da
linguagem é o que faz daquele que fala falado.
3.1.3. A fantasia é o
Outro feito Um.
3.1.4. A fantasia é a
relação sexual do Outro.
3.1.5. A fantasia é a
máquina do sujeito.
3.2. A máquina é possível dado o
espaço (parte e pedaço) e o tempo (repetição e linguagem).
3.2.1. A máquina é a
relação sexual do tempo com o espaço.
3.3. Fazer ver ao Outro é um ato
estético.
3.4. Fazer falar ao Outro é um ato
ético.
.5. Fazer existir ao Outro é um ato
lógico.
4. A
obra ferro-carne não pertence à língua do Outro.
4.1. A obra-ferro-carne está no
limite da linguagem com o corpo.
4.2. A obra ferro-carne encena a
fantasia da máquina
4.2.1. O futurismo de
Marinetti é a esperança de que a máquina crie o novo.
4.2.2. O surrealismo de
Dali é a dúvida: fero ou carne?
4.2.2.1. Dali funda a suspeita: homem ou androide?
4.2.2.2. A suspeita é suspeita sobre a consistência do
Outro
4.3. O fim das suspeita é a
paranoia.
4.3.1. O delírio é a
falência da metáfora ferro-carne.
4.3.2. A alucinação é o encontro
da parte fora da máquina.
4.4. O suspense em “Massacre da Serra Elétrica” é o efeito
do tempo que a carne demora a
encontrar o ferro.
4.4.1. A espera é o
limite interior (angústia) mais o saber suposto sobre o limite exterior (dor-prazer)
4.5. A suspeita em “Blade Runner” é sobre o que se vê: carne
ou ferro? Sobre o que se fala :
memória ou prazer? Ou sobre o que existe: tempo de morte ou data da morte?
5. O
Outro é o que goza no lugar do sujeito.
5.1. A violência é corpo
desmascarado de carne
5.2. Crime e castigo é uma máquina para a
neurose.
5.2.1. Em “Gêmeos,
mórbida semelhança” trata-se de isolar a parte da máquina que goza
enquanto desmascara a carne.
5.2.2. Gozo é limite sem
limite.
5.2.3. Gozo é
impensável.
5.2.3.1. Parte
e repetição, quando separadas, implicam dois gozos diferentes
5.2.3.2. Os
místicos gozam tanto na parte (Deus) quanto na repetição (orações e
mantras)
5.2.3.3.
Parte e repetição não podem se separar se há fantasia ou se há máquina
5.2.2. Em “O
Vingador do Futuro” o Outro não goza da linguagem ele é desmascarado.
6. O
discurso de que o homem é uma máquina ao se engana ao supor que quando se
conhece o ferro, conhece-se a carne.
6.1. A inteligência artificial é
possível quando o ferro gozar como a carne, não apenas a carne gozar como supõe o ferro.
6.2. Em “Jornada nas Estrelas” a suspeita ferro-carne é representada pelo
Dr. Spock.
6.2.1. O que o Dr. Spock
demonstra como carne só pode gozar com algo que lhe seria exterior: o ferro.
6.2.2. Dr. Spock, por
definição nunca é violento.
6.2.3. Dr. Spock é
humano, demasiadamente humano.
6.2.3.1. É do humano
suspeitar que não é humano.
6.2.3.2. É da carne
suspeitar que é ferro.
6.3. Filmes pornográficos respondem
ao princípio ferro-carne partindo da repetição-da-parte
6.3.1. O encontro das
carnes é fantasia de que a máquina não deseja mais gozar.
6.3.2. O ato sexual é a
repetição do desaparecimento da parte.
6.3.3. O encontro das
carnes é a fantasia de que a máquina não deseja, mas goza,
6.3.4. O ato sexual
tenta fazer da carne ferro.
6.4. A escultura moderna é a
antítese do ferro-carne, pois tenta produzir a parte da repetição sem a repetição da parte, ao mesmo tempo.
6.4.1. A escultura
moderna congela o tempo.
7. O
ferro-carne é uma estética da repetição.
7.1. O ferro-carne opera pelo
distanciamento e aproximação entre os tempos de reencontro do mesmo
7.1.1. O mesmo é o que
não acontece.
7.1.2. O mesmo só é
possível ao Um, o que é consoante com a filosofia medieval, especialmente
Agostinho e Abelardo.
7.1.3. O mesmo é o
universal como nome da Coisa.
7.2. A música de “Tron Maiden” é velocidade tendendo ao
mesmo.
7.2.1. O ferro pode
gritar. Constatação Heavy-Metal.
7.2.2. O grito é a linguagem
que a linguagem supõe na carne.
7.3. O heavy metal produz visibilidade do som pelo método da comunhão
ferro-carne.
7.3.1. O rock é a condição de possibilidade do
vídeo-clip.
7.3.2. O rock faz mostrar ao outro que a carne
precisa desesperadamente de palavras.
7.4. O minimalismo é a ilusão de que
a máquina pensa.
7.4.1. O minimalismo é a
música do Dr. Spock.
7.4.2. O minimalismo é a
formalização da oposição fonemática.
7.4.3. A oposição pura
não existe.
7.5. A arquitetura ferro-carne torna
visível a carne no interior do ferro.
7.5.1. O Centro Georges
Pompidou é a exibição do nada para o inexistente.
7.5.2. A produção da
parte implica em opacidade que a arquitetura do ferro-carne visa ocultar.
7.5.3. Ao contrário do
modernismo que sugeria homogeneidade exterior e particularidade interior o ferro carne
sugere particularidade exterior e homogeneidade
interior
7.5.4. O ferro-carne
implica em que todos gozem diferentemente com a mesma coisa.
7.5.5. O apreciador do
ferro-carne é silencioso, as palavras podem contaminar o mesmo com silêncio. O silêncio
permanece singular: ciência silência.
7.5.4 O ferro-carne
implica em que todos gozem diferentemente com a mesma coisa.
7.5.5. O apreciador do
ferro-carne é o silencioso das palavras. Contamina com o mesmo, o que no silêncio
permanece singular.
8. O
fero-carne implica silêncio na esfera privada.
8.1. Em “Exterminador do Futuro” a oposição ferro-carne evolui para a
oposição ferro- ferro.
8.2. O ferro-carne mantém sob
controle duas questões fundamentais: quem somos (carne ou ferro?) e para onde vamos (fusão futura de ferro-carne
ou Um). A primeira responde a
parte. A segunda responde a repetição.
8.3. A questão que move o
ferro-carne é de onde viemos e por isso sua fantasia fundamental é a máquina como encontro das carnes.
8.3.4. As cenas
decisivas de “O Exterminador do Futuro” ou de “Stalonne Cobra”
se passam em fundições metalúrgicas, a Urphantasie
do ferro.
8.4. Excetuando-se as reações de
limite, a estética ferro-carne é uma estética do tédio.
8.5. A certeza sobre a ação do outro
no âmbito cotidiano faz da cena estética o lugar da surpresa garantida. De onde vem a surpresa é isso que se pretende
isolar.
8.5.1. “Não há o que
falar” este é o emblema de filmes patrocinados por Stallone, Schwarztneger, Bronson e Van
Dame.
8.5.3. A fala é um
pretexto incômodo e secundário em relação a encontro de que se trata.
8.5.4. A obra do Marquês
de Sade é um exemplo desse encapsulamento subjetivo
em favor da primazia da ação.
8.5.5. O discurso sádico
é um equivalente do moto suspeita-realização, temático
do fero-carne.
9. Toda
máquina pode ser desmontada.
9.1. As implicações disso para a
equação ferro-carne são evidentes: Frankenstein e “Gritos do Silêncio”.
9.2. A desmontagem reproduz o ritual
de montagem às avessas.
9.2.1. Desmontando algo
pode-se saber como algo goza, isolando-se a parte crucial.
9.2.2. Acumular saber
sobre o gozo do Outro mostra como a estética ferro-carne é consoante ao capitalismo.
9.3 O vestuário “Punk” e suas reminiscências
culturais extraem seus efeitos do processo
de desmontagem
9.3.1. O couro sobre
pele sugere um grau intermediário entre carne e ferro, grau intermediário como o de qualquer
outra sedução.
9.4. Desmonte-se a linguagem e se
encontrará o mesmo. Parte comum de todas
as máquinas.
9.4.1. Habermas tenta
imobilizar o Outro em nível ético.
9..4.2. A filosofia
analítica da linguagem tenta imobilizar o Outro em nível lógico.
9.5. “Hellraiser” é um exemplo de desmontagem ético-logica da máquina.
9.6. Penetração do ferro na carne
produz efeitos unificantes. Prazer e dor são a mesma coisa para a máquina: gozo.
9.6.1. Os alienígenas e os
protagonistas de Star Treck procuram a mesma coisa: o limite do sem limite.
9.7. O encontro do ferro-carne é
sintomático. Revela o que quer esconder. Coisas diferentes.
9.8. Ferro-carne responde a questão
levantada por Lévy-Strauss acerca do mito de Édipo.
O mesmo vem do Outro feito do mesmo.
10. Não
se pode falar sobre o que é exterior à linguagem.
10.1. O que é representado pelo
termo “carne” é irrepresentável.
10.2. Não se pode escapar a ser
causado pelo irrepresentável.
10.3. Não se pode conhecer a causa
do gozo.
11. A
proposição 8.5.2. é a única proposição verdadeira deste manifesto.
Christian Ingo Lenz Dunker é psicanalista, professor Livre-Docente do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), Analista Membro de Escola (A.M.E.) do Fórum do Campo Lacaniano e fundador do Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da USP. Autor de vários livros, entre eles Estrutura e Constituição da Clínica Psicanalítica (AnnaBlume, 2011) vencedor do prêmio Jabuti de melhor livro em Psicologia e Psicanálise em 2012 e o finalista do Jabuti 2016 : Mal-estar, sofrimento e sintoma: a psicopatologia do Brasil entre muros (Boitempo, 2015)
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