de Henrique Senhorini
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Dois filmes, uma história. Um filme é norte-americano: “Florence
– Quem é essa mulher?”, do diretor Stephen Frears. O outro é francês:
“Marguerite”, do diretor Xavier Giannoli. Ambos com atrizes para mais além da
competência : Meryl Streep cuja atuação, como Florence, lhe rendeu mais uma
indicação ao Oscar como melhor atriz em 2017 e Catherine Frot, interpretando
Marguerite Dumont, venceu o premio Cesar (considerado o Oscar francês) de 2016.
Os dois filmes, por coincidência proposital ou não, foram
produzidos e lançados quase que concomitantes sendo separados na linha do
tempo, quiçá, pelo fuso horário e ou pelo tempo utilizado para cruzar o oceano
Atlântico que separa o continente americano do europeu. Ambos tratam da
história de Florence Foster Jenkins. O norte-americano se apresenta como se
fosse biográfico e o europeu como obra baseada, inspirada. “Florence” é
ambientada em Nova Iorque da década de 40 do século XX e “Marguerite” em Paris
e seus arredores na década de 20, também do século XX. Nos dois filmes as duas
grandes guerras mundiais contextualizam, com o nacionalismo e a elite de suas
sociedades, o pano de fundo de suas histórias. Mas estes, apesar de relevantes,
não foi minha preocupação principal nos filmes. A minha preocupação em escrever
foi e é sobre a importância da fantasia como proteção frente ao real. O real,
que por ser o limitador da expansão do imaginário, “condiciona justamente a estabilidade do
fantasma” 1 , a
estabilidade da fantasia. Sobre a importância da fantasia como indicador de
desejos, como encobridora da falta, em nossas vidas para que continuemos a
sonhar. E com sua travessia (a travessia da fantasia) –
promovida pela psicanálise através de sua experiência, feita com muito tato até
a destituição subjetiva, quando possível – sonhar novos sonhos e dar novos
sentidos em nossas vidas até o despertar. Mas “o despertar” 2 como idealizamos (amplo, geral
e irrestrito), assim como a felicidade plena, é da ordem do impossível para nós
humanos. Tanto o despertar quanto a
felicidade são fugazes, efêmeros. Destes são possíveis, somente, “momentos
fugidios” 2.
Ah! Escolhi escrever sobre o filme “Marguerite”, pois -
sendo uma obra apenas inspirada na vida de Florence Foster Jenkins - creio que assim não corro o risco de falar
sobre a vida dela (da Florence verdadeira, que nada sei) e sim da personagem apresentada
como Marguerite Dumont. E claro que escrevo com spoilers. Mais uma coisa: os
dois filmes são imperdíveis!
Ao filme...
O diretor
Xavier Giannoli inicia seu filme quase do mesmo modo que os dispostos às
entrevistas preliminares de uma experiência psicanalítica começam seus
percursos. Assim como nas entrevistas, onde os significantes mestres do sujeito
se apresentam com força para depois saírem de cena e atuarem somente dentro das
escuras coxias de um teatro, o diretor dá todas as dicas sobre onde o filme irá
ancorar sua narrativa principal logo nos primeiros minutos de sua
exibição. Ele começa nos apresentando um
concerto particular, um “Récital privé”, em realização na mansão da rica
baronesa Marguerite Dumont, para um grupo formado pela alta sociedade
parisiense do qual ela é a grande benemérita. Amadeus, o nome do grupo, tem
como objetivo deste evento angariar fundos para os órfãos da guerra, da
primeira grande guerra mundial. Uma causa nobre que tem na apresentação da própria
baronesa o ápice do recital, pois Marguerite é apresentada - e se deixa
apresentar - como uma grande cantora da ópera do circuito mundial. Fotografias
suas em porta-retratos espalhados pelo salão fornecem indícios de sua grandeza
estrelar. Fotos dela pousando com os figurinos das grandes apresentações,
realizadas nos palcos dos maiores teatros europeus, corroboram para dar
embasamento dessa hipótese. Falso! Mal sabem que é o seu mordomo que cria os
ambientes para os instantâneos de sua baronesa com as roupas compradas dos grandes
espetáculos. Madelbos, o mordomo, alimenta com tamanha maestria esta fantasia
- de uma superdiva da ópera - que até a própria Marguerite aceita-a como realidade
e de bom grado. Esta se tornou sua realidade, desde muito tempo, mesmo
desconfiando de si mesma, em alguns brevíssimos momentos, que ela não era a
predecessora de uma Maria Callas.
“A realidade é isto: uma janela fantasística que “revela” o
mundo para o sujeito.” 3
Chegou o momento de sua apresentação. Marguerite
se prepara aguardando a presença de seu sempre ausente marido na plateia. Ele,
por sua vez, simula uma quebra no seu carro esportivo, sua insígnia fálica, preparando
o álibi de seu atraso. A baronesa, mesmo um pouco entristecida pela a falta do
olhar de seu esposo lhe causa, capricha na voz! Os nobres e os ricos burgueses,
que formam sua plateia, assistem atônitos sua apresentação. E ao fim desta, ela
é aplaudida com entusiasmo. Aparentemente agradou a todos emprestarem seus
ouvidos para aquele canto, um canto que mais parecia uma mixagem do som de uma gralha azul com araponga e ambas desafinadas. Seria cômico se não fosse trágico. Aqui,
não só aqui, o aparente mente onde se faz presente a hipocrisia.
Pobre menina
rica! Pobre Marguerite! Casada com Georges, o barão, – que dá a entender que
casou com ela por dinheiro, pois um barão falido é somente mais um barão falido
– não encontra nele o retorno libidinal tão caro para qualquer um de nós.
Amamos, também, para sermos amados. Investimos para termos retorno do nosso
investimento. Somos todos interesseiros e isso é legítimo. Só que não há
garantias, é sempre uma aposta. E tudo o que a baronesa mais queria era o olhar
do Outro. Mas deste, via seu esposo, seria difícil.
Através de sua paixão pela música, através do cantar, ela começou
a acreditar que poderia, também, alcançar seu Nirvana. Se esforçou, trabalhou muito no
seu intento, no mínimo, a dignidade do cantar. Com isso, também buscava ser
admirada e reconhecida por Georges.
E assim, “cercada de drogas e de amigos inúteis ninguém
pensaria que ela quer namorar” 4. Drogas
feitas de interesses mais que obscuros de amigos aristocratas inúteis que
sustentavam o manequim atraente de sua fantasia. Seria uma troca: dinheiro por
uma cota de olhares. Era o preço a pagar para manter seu quantum narcísico em
níveis de prudência. Madelbos, este talvez movido por e com-paixão, se torna o
zelador e o ornamentista da realidade fantasística da patroa.
O narcisismo é
isto, fundamental e estruturante do sujeito. Não é bom nem ruim. Seus excessos que
são perigosos. Tanto excesso de muito quanto excesso de nada podem causar
grandes danos, alguns irreparáveis.
Marguerite
cada vez mais sufocada, triste e solitária, sabendo que nada quer saber sobre o
romance que seu marido mantém com uma amante, sai em busca de uma vida mais
feliz que possa ser verdadeiramente sua, que possa lhe despertar e envia-la para
um novo mundo, uma nova vida. E por ser novo, desconhecido. É preciso coragem.
Mas, também, cuidado em que se deseja.
Além muros, fora da bolha,
Marguerite amplia seu leque de laços socais. Conhece artistas, fica fascinada e
seduzida pelo novo mundo que se descortina diante de seus olhos! Este se mostra
espetacular, um colírio balsâmico para suas retinas cansadas de guerras. Quer
pertencer a este mundo a qualquer preço, sente-se atraída por ele. Sua via de
acesso à uma nova cidadania, pensa ela, será a de se apresentar em um grande
teatro para um grande público. Assim, teria múltiplos olhares de outros que
poderiam fazer suplência do olhar do Outro, do amado esposo. Originalmente este
pensamento não é seu, mas torna-se.
“Se a fantasia é uma construção simbólica-imaginária, a base
sobre a qual se constrói é eminentemente real, o vazio do real.” 5.
E após hercúleo e ou quixotesco período de preparação, dela
e de seu entorno, chega sua grande chance. Deixando de usar o quase, que a
protegeria do perigo da certeza, a baronesa Dumont está convencida que ela é
uma grande cantora de ópera e a noite será a de sua consagração. Reconhecimento
via o olhar do Outro, do marido, ainda que tardia! Este era o mote que a guiava,
como um astrolábio, buscando as estrelas,
dos antigos navegadores. Ela está resoluta em bancar o impossível, através de
sua identificação subjetiva: a cantora de ópera, seu ideal. Esquecemos, com certa
facilidade, que “o ideal faz parte do real” 6.
Abram-se as cortinas! Teatro grande, casa
lotada. O seu show começa causando estranheza nos ouvidos da plateia e esta
logo se transformaria em uma grande careta de escárnio para a pobre Marguerite.
Entre gargalhadas profanas ela solta a voz ao mesmo tempo que busca o olhar do Outro, do esposo, do escolhido, como se sentisse a iminência de um encontro com o real. Procura
o olhar, mas não encontra, pois Georges
está em posição que mais parece com a de um avestruz com sua cabeça escondida
em um buraco no solo.
“A fantasia se situa no patamar escópico na relação do
sujeito com o Outro e, nesse momento, o sujeito, ao retirar da janela sobre o
real o quadro da fantasia, “vê” sua segurança “soçobrar”, ou seja, vê desabar o
lugar assegurado do quadro fantasia.” 7.
Marguerite, sem esse apoio do marido, desaba antes do terrível
encontro cuspindo sangue pela boca. Providencialmente suas cordas vocais,
levadas ao alcançar o impossível, sentem o golpe do esforço e seu corpo, com a aproximação do real, cai salvando-a do pior. Socorrida,
ela ainda encontra forças para perguntar docilmente ao esposo se gostou de sua
apresentação.
No hospital, no qual se encontra internada para recuperação de seu corpo, a cantora de ópera
Marguerite assume o posto do timoneiro. Talvez por suspeitar que há alguém que
lhe habita e que saiba de sua verdade, saiba do seu dublê. No fundo - e ou na
frente - “somos todos dublês” 8. Como se
fosse sua versão de construções em análise, só que sem análise e analista, ela
desconstrói e reconstrói - atravessa e até transforma partes de sua história
encima do que mantém - a sua mais nova biografia. Seria uma maneira de tentar
esquecer o ocorrido? Esquecer até o ponto no qual se esquece que o se esqueceu?
Desta forma continuaria protegida de uma desumanização? Seria uma tentativa desesperada
de tamponar o furo do real, para que este não a invada, trazendo consigo sua devastação?
Quem sabe?
abro um parênteses aqui
“Esquecer o que se esqueceu: fórmula através da qual Lacan
afirma o que está em jogo no recalque e que permite que se diferencie o
recalque do mero esquecimento – o recalque é um duplo esquecimento.” 9.
fecho parênteses
Para o médico, que cuida de Marguerite no hospital, ela está
em processo de enlouquecimento. Para ele, a única maneira de tentar trazê-la de
volta para a “realidade” é através de uma técnica - muito parecida, se não for
a própria – behaviorista chamada de inundação. Técnica esta utilizada pela
psicologia comportamental para casos de fobias. Mas, como o doutor pretende
fazer isso? Simples! Num repentino ataque de genialidade, o médico monta sua
estratégia: gravar a voz própria de Marguerite cantando uma das árias, de seu
repertório particular, para ela se ouvir em um outro momento preparado. Triste,
para não dizer terrível, a solução formulada. O doutor deveria saber, caso
tivesse acesso a esse saber, que não se promove uma destituição subjetiva
selvagem. É preciso muito cuidado, muita sensibilidade, muito tato para não se
usar uma mão pesada mais além do suportável para com seu paciente. Cada um é um
singular. Não se carrega na tinta para não estragar a obra. Assim como nas
psicoses não se retira um delírio sem deixar algum ponto de ancoragem para o
psicótico não surtar, não se promove uma destituição subjetiva que poderá
lançar o paciente sobre o caos pendurado pelo nada. Mas, sempre com boas
intenções, o doutor de garganta aposta em seu procedimento seguindo seu manual protocolar.
É chegada a hora
do “experimento”. A cantina do hospital está preparada para tal. As cadeiras estão
dispostas para acomodar seu petit comité.
Seu marido, atrasado como sempre, corre desesperado com seu carro para tentar
barrar esse espetáculo, após sentir que este poderia se tornar uma grande
tragédia. Marguerite é conduzida para a apresentação. No lugar de cantar, desta
vez escutaria a gravação de uma ária cantada por ela. O médico dá inicio a sua
técnica, posicionando o instrumento reprodutor da gravação bem próximo do
ouvido da baronesa. Em alto e bom som ela escuta. As primeiras notas musicais
invadem o recinto. Marguerite se vira para o gramofone, olha para dentro do
condutor de som e se reconhece. Na excelente interpretação da atriz Catherine
Frot, percebemos, com o seu olhar, a denuncia que chega até Marguerite de seu
apocalipse. Ela se reconhece na voz estridente que ofende qualquer ouvido humano e algo
de terrível acontece com a baronesa. A impressão que nos dá é a de que ela está
escutando um som proveniente do além do sobrenatural. Como se o furo do real, localizado
em sua fantasia, houvesse se transformado numa grande boca escancarada cheia do
vazio. E algo do inominável, do indizível, da “irrepresentabilidade da Coisa” 10 a invade do mesmo modo
que a indelicadeza tsunâmica invade a terra devastando tudo e todos pela frente.
É demais para a pobre rica Marguerite. Seu corpo cai novamente, mas desta vez
com zero de tensão. Estava morta.
“Amor e morte [Eros e Thanatos] se localizam no mesmo lugar
e, numa continua rivalidade, brigam por um espaço maior, mas não vivem um sem o
outro.” 11.
Teria sido Marguerite traída pelo desejo?
1- Colette Soler em “O inconsciente –
que é isso?” – p.184.
2- Coutinho Jorge
em “A clínica da fantasia” – p.227.
3- Coutinho Jorge
em “A clínica da fantasia” – p.219.
4- Lobão em
“Radio Blá” – música
5- Coutinho Jorge
em “A clínica da fantasia” – p.246.
6- Christian
Dunker em “The Fall – Dublê de Anjo” – blog CineFreudiano
7- Antonio Quinet
em “Um olhar a mais” – p.268.
8- Christian
Dunker em “The Fall – Dublê de Anjo” – blog CineFreudiano
9- Coutinho Jorge
em “A clínica da fantasia” – p.229.
10- Christian Dunker em “The Fall – Dublê de Anjo”
– blog CineFreudiano
11- Coutinho Jorge em “A clínica da fantasia” –
p.237.
Trailer
Um comentário:
Gostei muito de sua análise sobre o filme Marguerite.Chamou minha atenção a importância do olhar do Outro.
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