de Vanessa Freitas
Vamos falar sobre
esse filme incrível do diretor Martin Scorsese que, inclusive, foi premiado com
vários Oscars em 2012.
A Invenção de Hugo
Cabret conta uma linda história que se passa em 1930, sobre um garoto de 12
anos que vive solitário entre as engrenagens do relógio da estação ferroviária
de Paris. Hugo (Asa Butterfield) tenta descobrir um enigmático mistério deixado
como herança por seu pai antes de falecer. Sr. Cabret (Jude Law) era um
relojoeiro que gostava de cinema e de consertar máquinas quebradas, sua última
tarefa foi tentar desvendar o mistério que carregava o autômato, uma espécie de
homem mecânico encontrado na área de descarte do museu onde trabalhava e que
levou para casa.
Após a morte de seu
pai, Hugo foi levado por seu tio beberrão (Ray Winstone) para morar com ele na
estação e o ensinou a manter as engrenagens do relógio funcionando. Quando o
tio desaparece, Hugo continua a manter os relógios, enquanto sobrevive roubando
comida, sempre temendo ser encontrado pelo inspetor (Sacha Baron Cohen) da
estação que poderia enviá-lo a um orfanato.
Além de comida,
Hugo também rouba as peças dos brinquedos que o velho e rabujento Georges (Ben
Kingsley) vende e conserta em sua loja que fica dentro estação. Até que um dia,
Georges pega o menino roubando, pede que esvazie os bolsos e toma posse do
caderno cheio de desenhos que Hugo carrega consigo como um tesouro que ganhou
do pai. Georges diz que queimará o caderno. Perplexo, o menino vai até sua casa
para buscá-lo e, lá, se encontra com Isabelle (Chlöe Grace Moretz), a afilhada
de Georges e a esposa (Helen McCrory), apaixonada por aventuras.
Hugo pede à
Isabelle que resgate seu caderno. Curiosa, ela quer saber porque este caderno é
tão importante para ele, deseja conhecer mais sobre a vida daquele curioso
garoto. Hugo, então, lhe mostra o autômato. E é aí que a aventura dessa dupla começa.
Isabelle e Hugo, tornam-se amigos e cúmplices na busca por descobrir o enigma
que faz o autômato viver e trazer a mensagem que Hugo tanto espera.
Hugo
é um menino que tão cedo viveu a perda dos pais e precisou encontrar um
objetivo para continuar a viver. "Meu
pai estava consertando antes de morrer", diz Hugo sobre o homem de
metal. Consertar e ver autômato funcionando é o último desejo do pai com o qual
o garoto tem contato. É como se sustentando este desejo, fazendo o autômato
funcionar, Hugo pudesse manter seu pai próximo e se sentisse menos sozinho.
Os sentimentos sobre a perda de alguém querido são
diferentes para cada pessoa. Há aquelas que sofrem terrivelmente com a dor do
vazio, que paralizam suas vidas, mas, após certo tempo, podem seguir em frente;
e há pessoas que parecem viver uma espécie de dor crônica, como um machucado
que nunca cicatrizará. Este tempo de dor e sensação de desamparo nos é conhecido
como o tempo do luto.
Freud, a quem chamamos de “o pai da
Psicanálise”, grande estudioso da subjetividade humana, diz que o luto é a
reação à perda de um ente querido, mas também à perda de algo que nos é muito
importante, como a liberdade, um emprego, algo que passamos a vida construindo
ou mesmo um ideal. Ele representa o luto como um processo com início,
meio e fim, podendo ser superado com o tempo. É um trabalho árduo que nossa
psiquê tem a realizar.
No filme, vemos que Isabelle empatiza com Hugo,
sobretudo, o compreende porque também perdeu os pais e sabe a dor que é não ter
uma família. Por isso, se
engaja com o amigo na tarefa de consertar o autômato. Interessante é que Isabelle
traz consigo a chave que o faz voltar a funcionar. Uma chave em forma de
coração.
Quando queremos
simbolizar o amor, desenhamos o que? Um coração. O amor é tema que
circula amplamente em nosso cotidiano, manifestando-se por meio das mais
diversas formas. Amor entre pais e filhos, entre amigos e amantes; podemos amar
o trabalho, um lugar. O amor está nos livros, nos filmes, nas músicas, nos
lares...
Freud também foi bastante interessado pelo tema
“amor” e o descreve como algo que sustenta a arte de viver. Com o amor, fazemos
ligações. O amor tem a finalidade de unir pessoas. Assim, podemos dizer que,
simbolicamente, Isabelle traz de volta o amor a uma máquina que está quebrada, a
um corpo que está triste e passivo frente a esse sentimento de perda. A menina
traz amor ao amigo.
O mesmo está
acontecendo com Georges, que se sente “como
um brinquedo de corda quebrado”, tal como ele mesmo se nomeia.
Depois que o
autômato volta a funcionar e faz o desenho do homem lua com a nave pousada em
seu olho – referência ao filme “Le Voyage Dans La Lune”, do cineasta Georges
Méliès (1861-1938), personalidade que inspira a história do filme –, a
curiosidade das crianças interessadas por esse enigma as leva a descobrir o
segredo de Georges.
Quando se encontram
com o escritor René Tabard (Michael Stuhlbarg) na biblioteca, descobrem que
Georges, na verdade, era mundialmente conhecido como o cineasta Georges Méliès
e que, com a guerra, perdera tudo que mais amava, viu seus sonhos serem
destruídos pelo excesso desta dura realidade.
René resgatou e guardou
inúmeras obras de Méliès. Assim, as crianças viram a esperança de que, ao
mostrarem um dos filmes de Georges a ele, o consertariam. René fica surpreso ao
saber que Méliès está vivo, pois achava que havia morrido na guerra. De fato,
parece que Georges queria ter matado seu passado, para nunca mais se lembrar
dos momentos felizes que viveu e que foram perdidos, para não entrar em contato
com a dor dessa perda.
"- Tudo tem um propósito, até as máquinas. Os
relógios dizem as horas. Os trens levam a lugares. Servem a seus propósitos.
Por isso as máquinas quebradas me deixam triste. Não servem a seus propósitos.
Talvez seja assim com as pessoas. Perder o nosso propósito é como estar
quebrado. (diz Hugo)
- Igual ao Papa Georges. (diz Isabelle)”
Sim,
o propósito de George, tudo aquilo que ele tinha sonhado e idealizado viver
havia se perdido em meio a tanta dor e desesperança.
Hugo e Isabelle se
dedicam, então, a consertar Geoges, a fazer reviver os sonhos que construiu, para
que volte a sorrir e a sonhar. O pai de Hugo dizia que os filmes eram como
sonhos, "era como ver os sonhos de
dia".
Sonhos trazem vida!
Freud foi grande
estudioso dos sonhos. Escreveu um livro intitulado “A interpretação dos
sonhos”. Os sonhos que sonhamos enquanto estamos dormindo, ele compreende como
um material
inconsciente que muito revela sobre nossos medos e nossos desejos. Sonhos são vivências
que ficam guardadas nas profundezas de nós mesmos e que surgem ao quebrar as
barreiras psíquicas que nos são impostas enquanto estamos acordados. Os sonhos
trazem enigmas a serem desvendados.
A vida é cheia de
belos enigmas e podemos tentar desvendá-los. Assim como faz Hugo. O menino
vai se encontrando com pessoas que lhe dão confiança e apostam nele, como o
bibliotecário, Senhor Labisse (Christopher Lee), que lhe presenteia com um
livro. Isso tudo faz com que ele tenha mais força para seguir com seu propósito.
Mas há sempre um
problema rondando Hugo, o perigo de que sua aventura e o desejo de desvendar o
enigma do autômato cheguem ao fim, está sempre à espreita. Este perigo está
representado na figura do inspetor que anda pela estação de trem com seu
imponente cachorro, prendendo crianças sem família e as enviando ao orfanato.
Hugo e Isabelle
querem trazer a confiança de volta a Georges que um dia disse que “os filmes têm o poder de capturar sonhos”.
As crianças são muito boas em fantasiar, em sonhar e essa capacidade, muitas
vazes, vai sendo perdida quando a gente se torna adulto, em meio a rotina
cansativa do dia a dia, de tantas obrigações, dos boletos a serem pagos, das
doenças, enfim, da realidade que não é fácil. Então, quem melhor para ajudar
Georges a voltar a sonhar do que as crianças.
Na cena em que o
escritor mostra o filme às crianças e a esposa de Georges (e que ele mesmo
assistira escondido da porta), podemos ver que os sonhos que foram sonhados um
dia começam a ser resgatados, fazendo com que o passado que, no presente,
tornou-se obscuro e temeroso possa ser ressignificado, quer dizer, que possa
ter um significado diferente, menos duro.
É preciso ter
coragem para rever a vida, mas quando a viagem do tempo começa, temos a chance
de enxergar os presentes que ela nos deu, e também poder elaborar o que de ruim
vivenciamos.
“Georges, você tentou esquecer o passado por
muito tempo. Isso só lhe trouxe tristeza. Talvez seja a hora de tentar relembrar”,
diz a esposa de Georges a ele.
Georges, como Hugo,
gostava de consertar coisas. O cineasta via no menino aquilo que existia nele e
que tentava esconder de si mesmo, sua capacidade de sonhar, a qual guardava a
sete chaves dentro de si. Foi por isso que ficou tão bravo com Hugo no início
do filme e tentou destruir seu caderno. "Finais felizes só acontecem nos filmes", diz Georges muito
ressentido.
O final, ou seja, o
que vai acontecer com aquilo que tanto esperamos, não saberemos na verdade. Mas
a nossa capacidade de sonhar, essa sim não pode ser perdida. Sonhar é também
ter esperança. O psicanalista Zeferino Rocha, tem um texto com o título “Esperança
não é esperar, é caminhar”. Neste texto escreve que “os sonhos sustentados pela esperança não se desmancham como se fossem
puras miragens”. Cita um provérbio alemão que diz: “Não sonhes a tua vida, vive o teu sonho”, e explica que “viver o
sonho é olhar o futuro sem
perder contato com o presente”, quer dizer, que “viver o sonho e não deixar que ele se torne
uma mera expectativa ilusória, é começar a realizá-lo desde o instante
presente” e afirma que “o nosso
amanhã será do tamanho de nossa capacidade de sonhar”.
Parar
de sonhar foi o que aconteceu com o inspetor da estação. Ele também perdeu os
pais muito cedo e cresceu no orfanato. Queria que todos os meninos sem pais,
como ele, aprendessem a ser duros, sozinhos e que família não era algo
importante. Quando vivemos algo que
muito nos angustia, a prisão neste lugar de amargura fica sempre à
espreita.
Para Hugo não foi
diferente, por exemplo, no final do filme, a cena em que tenta desesperadamente
resgatar o autômato enquanto ainda é perseguido pelo guarda, pode ser
interpretada como essa luta que nosso psiquismo vive diante de um conflito,
entre o que Freud chama de Pulsão de Vida, ou seja, toda a energia e desejo que
nos faz querer viver e a Pulsão de Morte, aquilo que há em nós que se liga a
dura realidade, esse lado que pode nos transformar em meros autômatos
quebrados.
Hugo e Isabelle
conseguem consertar o autômato e Georges apesar de todas as adversidades. “O truque de mágica mais generoso que já vi”,
diz Georges, fazer com que o sorriso voltasse a seu rosto. Até o inspetor
é tomado por esse sentimento de esperança quando olha para sua perna mecânica e
parece se lembrar de algo importante em sua vida que ficou para trás.
A história contada
no filme é “sobre como esse jovem
singular se empenhou em descobrir uma mensagem do pai dele, e como essa
mensagem iluminou o caminho até o seu lar", começa a escrever Isabelle
em seu próprio livro. Ela também descobriu seu propósito na vida, já que tanto
amava os livros.
Enquanto escrevia
essa análise sobre o filme, percebi algo que diz respeito ao trabalho que, nós
psicanalistas, realizamos na clínica. Quando alguém busca por análise, é
justamente este trabalho que nós, analistas, podemos oferecer. Juntos, analista
e paciente, buscamos desvendar as obscuridades e os enigmas que a vida nos
apresenta, nos causando angústias. Então, enquanto pacientes temos a chance de
nos resgatarmos, de fazermos uma viagem dentro de nós mesmos para nos reconhecermos
e trazermos nossos sonhos de volta, ora perdidos em meio a dura realidade que a
vida vai nos apresentando no dia a dia.
Cada pessoa é única e a vida é
feita de encontros. É possível que possamos nos surpreender com os enigmas de
um encontro. Na clínica, assim como na vida, é
a partir do encontro entre analista, paciente e o surgimento de um enigma, que a
viagem de busca por si mesmo pode acontecer. A gente pode se reinventar.
Vanessa Freitas é Psicóloga clínica.
Psicanalista. Formação em psicanálise pelo Centro de Estudos Psicanalíticos
(CEP) e Instituto SEDES Sapientiae. Mestre em Psicologia Clínica pela
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP).
Nota do CineFreudiano: O texto acima foi apresentado, por nossa colega Vanessa Freitas, no Hospital 9 de Julho (SP) em um projeto que consideramos, no mínimo, muito interessante: trata-se de levar - para seus pacientes internados, acompanhantes e pessoas da comunidade local - a possibilidade de a pessoa pensar e de mobilizar sua subjetividade, além de levar diversão através do cinema. O hospital até disponibiliza, aos pacientes que não podem sair de seus quartos, um canal de TV exclusivo para assistir aos filmes e participar do debate via telefone interno. Oxalá, que isso se multiplique! Parabéns aos colegas envolvidos!
Trailer do Filme
Um comentário:
Excelente texto, e linda história! Parabéns!
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