de Marcus do Rio Teixeira
O B L I V I O N |
Baseado numa história do próprio
diretor, o roteiro – muito bem elaborado – junta com precisão os fios de uma
narrativa onde os fãs de f.c. reconhecerão citações sutis de obras do gênero,
como Blade Runner (Ridley Scott,
1982), O Planeta dos Macacos (na sua
primeira versão, de Franklin Shaffner, 1968) e o supracitado 2001. A belíssima fotografia com sua
paleta de cores em tons acinzentados descortina amplas paisagens desertas,
planícies desprovidas de vida onde os escombros da civilização se fazem
presentes não como ruínas, mas enquanto restos ambíguos que mimetizam a
natureza. Esse mundo desinfectado do humano fornece o contraste com o nicho de
alta tecnologia em que vivem os personagens. Mas sem exagero: Oblivion é um dos poucos filmes na safra
recente em que os efeitos especiais fazem parte do enredo, em vez de
constituírem um fim em si mesmos.
De que trata esse enredo? Como já
disse em outro texto: do esquecimento, é claro, bem como de sua contrapartida,
a rememoração. Em um mundo devastado e desabitado após uma invasão alienígena,
Jack Harper (Tom Cruise) cuida da manutenção das máquinas que extraem energia
para abastecer a nave que levará os sobreviventes a um novo planeta. Para
melhor executar sua tarefa, ele teve suas memórias apagadas. Mas ele é
atormentado por sonhos e lembranças recorrentes de uma época anterior à guerra,
anterior ao seu próprio nascimento. Ele quer saber o que significam esses
sonhos e quem é a bela mulher (Olga Kurylenko) que aparece neles, e que ele
nunca conheceu, mas sente que a ama. Sua parceira e esposa, Victoria (Andrea
Riseborough), como uma Jocasta do futuro, recomenda que ele foque no presente e
não dê atenção a essa história de memórias. Porém, como o Édipo de Sófocles,
ele não se conforma, porque pressente que no passado reside o segredo da sua
existência.
A tese de que a memória constitui o
humano não é uma invenção original de Oblivion
– lembremos de Blade Runner, no
qual a hybris capitalista consiste
não em criar simulacros do humano, mas em prover a sua mercadoria de memórias
artificiais. Não importa se essas memórias são possíveis ou não. Há toda uma
raça de críticos de ficção científica (que entendem muito de ciência e zero de ficção)
dedicada a discutir se os prodígios descritos nessas obras podem ser realizados
ou não – discussão tão inútil quando ridícula. A obra de ficção cria a sua
realidade e não reproduz uma supostamente existente.
Já em Oblivion não se trata do
capitalismo (extinto, como tudo mais), nem de falsas memórias, mas das
verdadeiras. Porém não no sentido habitual do termo – a verdade aqui não diz
respeito ao factual, mas à verdade do sujeito. Ela evoca o objeto perdido no
sentido mais radical e propriamente psicanalítico: o que é perdido sem que
jamais tenha sido possuído pelo sujeito – e mais não se pode dizer sem revelar spoilers.
Escalar a atriz e ex-modelo ucraniana Olga Kurylenko para interpretar esse
objeto é uma escolha mais do que apropriada – sua beleza, que domina todas as
cenas em que ela aparece, merece ser justamente qualificada como utópica, na acepção de utopia fornecida
por Quevedo (apud Borges): “voz grega
que significa não existe tal lugar”. Ou, numa definição contemporânea: lugar
ideal para se viver em um mundo pós-apocalíptico. Desculpem, eu divago.
Voltando ao assunto: pode-se criticar a premissa açucarada de que se
encontra o objeto do amor. Afinal, Lacan ensinou há tempos que é verdade que ao
amante falta algo e que o amado possui algo – a ilusão é crer que aquilo que o
segundo possui é o mesmo que falta ao primeiro. A sutileza de Oblivion, contudo, vai bem mais além do
clichê hollywoodiano: não é simplesmente o sujeito que encontra o objeto que
lhe falta, mas é o objeto que ao existir como faltante vai constituir um
sujeito ali onde até então não havia um. Todos nós, primordialmente, fomos
objeto de um Outro que supôs nesse objeto um sujeito. Foi isso que nos fez
advir enquanto sujeitos e daí podermos buscar nossos objetos. Esta me parece
ser a premissa de Oblivion.
Marcus do Rio Teixeira – Psicanalista,
diretor da editora Ágalma. Autor de O espectador ingênuo – Psicanálise, cinema,
literatura e música (2012), entre outros.
Trailer
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