quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Departures - A Partida

por Karin de Paula


Havia uma única folha em branco, ou seja, o bastante, o suficiente.
A última folha é a próxima, a do próximo, e depois ainda, do próximo.
Não qualquer próximo, mas um disposto à contaminação, aquele que resulta se fazer o do bastão da transmissão.
Mas qual o chamado nesta direção, já que na perspectiva de transmissão é condição não capitular ao apelo identificatório?
Haverá algo de Belo ou de Bem no Real? Talvez uma beleza particular – mas qual não o é? –, para a qual há de se estar preparado...
Tal não foi, muito provavelmente, o caso em A Partida... Pegos desprevenidos pela sétima arte, os chocados mesmo, quase horrorizados pela crueza do corpo inanimado colocado em cena, teriam visto surgir deste corpo morto, de modo súbito, um movimento com potência de transmissão de vida, animado por outros, os ainda vivos: os que ficaram e os que ainda não partiram e poderão insistir no projeto humano...
A vida é um desvio, disse um dia Freud. É fato que isso não implica a vida ser um atalho, mas um (há)talho no Real. Este é um compromisso que merece ser assumido... E no fim, a Partida.
Duro, dura, do que não dura e, por vezes, assusta. Subitamente, um último sentido, post mortem, depois do último suspiro. Não além do limite, mas, sim, a partir dele: a Partida.
A passagem pela porta/portão... E o botão! Então as chamas... Quem chama? Quem chamas?
Não estar mais aqui e ser disso que se trata. Justamente: tratamento do corpo que parte e chegará a outro lado, a (há?) outro termo... Haverá algo disso? Haverá algo nisso?
Não, não me parece reparação, mas a vida que, ao morrer e deixar registros, inscreve a perspectiva de transmissão da vida, do porvir, da continuidade na descontinuidade, aquilo que o imperativo do gozo de Lacan (1963), em Kant com Sade, acusa ao visar eliminar: “Tenho o direito de gozar de teu corpo, pode dizer-me qualquer um, e exercerei este direito, sem que nenhum limite me detenha no capricho das extorsões que me dê gosto de nele saciar.”
Ou ainda, com o que Baudrillard (2000) nos faz notar ao cogitar o intento de um crime perfeito: “O que está em causa no crime perfeito perpetrado contra o mundo, contra o tempo, contra o corpo, é esta espécie de dissolução pela verificação objetiva das coisas, pela identificação. Isso equivale a eliminar mais uma vez, como já dissemos, a morte. Pois não se trata mais de morte e sim de extermínio. Literalmente, exterminar significa privar alguma coisa de seu fim, privá-la de seu próprio termo. Significa eliminar a dualidade, o antagonismo vida e morte, reduzir tudo a uma espécie de princípio único – poderíamos mesmo dizer de  “pensamento único” – do mundo, que se traduziria em todas as nossas tecnologias – hoje, sobretudo em nossas tecnologias do virtual.”
Para sermos justos com o próprio Baudrillard, é claro que extermínio como tentativa de privar algo de sua finitude, de seu termo, não é criação das tecnologias do virtual, mas de uma certa relação com estas, já que o caráter virtual em si é ingrediente necessário nas relações humanas com o mundo. É sobre este modo de relação, aquele que visaria eliminar a morte da cena, que incide tal armadilha ao novo.
Segundo Ryszard Kapuscinski , em Shah of Shahs, foi por isso mesmo que os rituais fúnebres iranianos foram cruciais para pôr em andamento a revolução de 1979, ou seja, para pôr em andamento uma tentativa de encontrar um novo termo para as coisas, pôr a vida do país em outro andamento. Por esta capacidade advinda da sua antenação com a vida, tais rituais foram proibidos pelo governo há algumas semanas, ao longo aos protestos que, naquele país, se seguiram ao logro das últimas eleições. Ou seja, em tempos de
turbulência, mostrou-se (ditatorialmente) importante impedir a ritualização da morte (das mortes), pois que era preciso evitar que algo de novo pudesse surgir a partir daí.
Ainda nesta toada, temos as lágrimas. Como nos ensina o Midrash, segundo Yossef Rozin, é preciso observar as lágrimas. Se o choro é manifestação de certos humores egóicos, a lágrima, diferentemente, é o que escapa ao choro através do corpo. As lágrimas não se sacrificam, elas se dão; não praticamos as lágrimas, elas que nos surpreendem. Ainda segundo ele, as lágrimas não são por nada, mas para nada. As lágrimas não são o choro: muito embora toda lágrima seja choro, nem todo choro é lágrima. No mesmo Midrash, a evocação mais alta afirma que D’us viu que o povo não chorou, mas verteu lágrimas. Por isso o recipiente de água salgada faz parte do prato do seder em Pessah, festa na qual o tema central é também o de uma partida, de uma passagem!
No filme em questão, há choros e lágrimas e, curiosamente, tais eventos são passíveis de serem discernidos ao longo das cenas. Inspirados no mencionado Midrash, poderíamos, então, pensar que se o choro apela à reparação (egóica), as lágrimas apelariam à transmissão, ao que passa e segue adiante?
Em A Partida, na passagem que enlaça os que partiram da vida e os que partirão para a vida, os que seguirão, ironicamente, a pergunta que não se cala é sobre qual maquiagem se aplicará ao corpo morto: a de homem ou a de mulher? Que pergunta enigmática!!! Estamos todos num corpo, e nele estamos sós: nem o gênero nos salva, embora nos permita a pergunta, o que não é pouca coisa...
Chegamos assim ao início da “Partida”. E aí o condescendente mundo do amor, da compreensão, por que não dizer, do choro e da reparação; também da decepção, dos instrumentos musicais insuficientes, dos modos de viver a vida dos vivos...
Mas este foi o início... O polvo – o ex-futuro jantar caro –, na tentativa feita de salvá-lo, morreu; em todos os sentidos: MORREU.
A mídia, o anúncio, o aceite. Aceitou a morte sem saber? E como não seria assim?
A morte da mãe em questão, mesmo sem desconfiar.
Tantas outras mulheres se beneficiaram da partida bem encaminhada.
O luto da mãe: possível? Impossível? Freudianamente possível E impossível? Frente à putrefação surge a casa de banhos e, neste contexto, o dos banhos, as memórias, a persistência, a insistência, porém, uma outra limpeza, precedente à preparação derradeira para a “Partida”.
Mais uma vez, subitamente, tudo aquilo que pareceu fazer sentido: os corpos, as mortes, as cerimônias, as despedidas, o ofício... Uma função.
Função de transmissão? É o que nos resta? É o que nos cabe? Se for, não será pouca coisa.
Com Rabbi Yossef Rozin (2006): “Quem procura a verdade deve estar pronto ao incompreensível, pois ela é difícil de se encontrar e, quando nós a encontramos, é desconcertante“
Não sei...
E isso é tudo? Certamente que não! Se não fosse assim, não se encontraría o pai, a pedra, o que fica, posto que já havia ficado a chama, mesmo sem sabê-lo , dando àquele um lugar ordenado por alhures, por pertencer a uma ordem simbólica e, por esta via ser transmitido...
A possibilidade de seguir com o tema da morte é ambivalente.
Se pararmos, Isso pára? A questão é que não, não pára. Ao contrário, segue. Não há reparação nesta pauta, mas inclusão do irreparável, a saber, do fim, da morte, dos limites. A reparação frente a essa perspectiva é nada mais que a insistência de nosso narcisismo que quer continuar crendo que é possível corrigir tal condição de finitude.
Outra ironia é que incluir a morte não implica estar preparado para ela, posto que ela nos pegará sempre de surpresa. Esta é a delicadeza do que este filme promove: um encontro com algo importante e difícil de incluir, sob a ordem do que não se inscreve ou se reduz à ordem da reparação e, embora se mantendo em sua condição de puro impacto, não é traumatizante, mas sublime (cf. Schiller) . Há aí uma beleza estonteante que, como as lágrimas, saltam do corpo que restou da e na experiência humana. Como isso é possível?
A morte é parte da/na vida, e para isso não há correção: com Freud, com Lacan, com Baudrillard, comigo e com você. Parafraseando Godard, é Nossa Música, o som da possibilidade de ver a nossa condição triunfar por ser mortal e por isso mesmo passível de simbolização e transmissão... Transmissão cujo vetor ruma para as próximas gerações.
Não, não é pouca coisa.

Karin de Paula é Psicanalista, Mestre e Doutora pela PUC-SP,  Pós-doutoranda na Paris 7, professora na universidade e em curso de formação de psicanalistas. Membro fundadora do umLugar – Psicanálise e Transmissão. Autora dos livros $em – sobre a inclusão e o manejo do dinheiro numa psicanálise”, Ed. Casa do Psicólogo e Do espírito da coisa - um cálculo de graça”, Ed. Escuta. 


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