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quarta-feira, 2 de setembro de 2015

“a”- ssexualidade em “Ninf()maníaca”

de Emeline Costa

Este texto pretende fazer uma leitura Psicanalítica da “Ninf()mania”, mais especificamente da personagem “Joe” do filme de Lars Von Trier, e levantar algumas hipóteses acerca da mesma.
Para além das cenas e conteúdos eróticos do filme, o que chama a atenção desde o início é a ausência de uma letra já apontada no próprio nome da obra, a saber, “Ninf()maníaca”.
O sentido da letra em Psicanálise foi apontado por Lacan em 1950 no texto “A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud” (1957/1998, Escritos). Lacan deixa claro que “é toda a estrutura de linguagem que a experiência psicanalítica descobre no inconsciente” (p 498)
É neste sentido que não podemos falar de estrutura na psicanálise sem a referência de estrutura na linguística. O termo estrutura vem do latim structure, que significa construir e, no sentido figurado, “arranjo das palavras (na frase para produzir um ritmo)”. Segundo o Dicionário de Filosofia, o termo estrutura pode ser tomado em dois sentidos. O primeiro seria o sentido lógico, equivalente à construção, constituição. Ou seja, é sinônimo de sistema. Saussure emprega a palavra sistema para se referir ao sistema da linguagem. O outro sentido da palavra estrutura diz respeito ao fato de que não se trata de qualquer sistema de relações, essas relações têm que ser hierarquicamente ordenadas. Isto quer dizer que estrutura é um sistema constituído por determinados elementos articulados dentro de certo limite, sendo possível encontrar variações mais ou menos autônomas.
A aplicação do termo estrutura à linguística foi de responsabilidade de Ferdinand de Saussure. Isso porque ele propõe estudar a língua falada em um determinado espaço. Cada elemento da língua constitui um signo linguístico, que é a relação entre um significado e um significante. Saussure (1916/1998) chega a esse signo linguístico porque critica o vínculo simplista que une um nome a uma coisa (nome/coisa). Entendemos significado como conceito, e significante como imagem acústica – que é a impressão psíquica de um som, independente da materialidade do som e da imagem. É precisamente a articulação entre esses dois termos – s e S – que produz a significação.
É essa articulação de Saussure entre significado/significante que chamará a atenção de Lacan (1956/1998), pois ele está interessado em aplicá-la em sua teoria da letra. Ou seja, estabelecer uma relação entre linguagem, inconsciente e pulsão.
­Mas ele retoma as elaborações de Saussure mudando o tipo de relação entre significado e significante. No que diz respeito à barra, que, para a linguística tem a função de unir as duas faces (s/S), para Lacan ela cumpre a função de separar esses dois elementos. Ele também opera uma inversão no signo linguístico, colocando na parte superior da barra o significante: S/s.
No exemplo que traz em seu texto “A instância da letra e a razão desde Freud” (1957/1998), Lacan localiza de modo ímpar o que quer dizer com essa inversão. Propõe representar essa relação do seguinte modo:
Homens     Mulheres
      █                     █
Lacan (1957/1998), desse modo, chama a atenção para o fato de que, no lugar do significado, aparecem dois elementos iguais, ou seja, duas portas, mas cada uma delas correspondendo a um significante diferente. Notamos que, no lugar do significado, introduz-se outra função – a função de simbolização de uma lei, que, nesse exemplo, constitui a de segregação sexual. Lacan extrai mais consequências dessa inversão. Ele demonstra de que modo o significante se insere no significado, ou seja, é o significante que vai marcar, por meio da diferença, a possibilidade de cada um se localizar: como homem ou como mulher. Mais ainda, o significante é um elemento cuja função é representativa.
Então, a significação não surge por uma relação que pode ser estabelecida entre o conceito (s) e a imagem acústica (S), mas pela articulação entre dois significantes: S – S. É a partir desse encadeamento de significantes, enquanto elementos diferenciais, que um efeito de sentido pode ser produzido.
Vejamos isso sob outro ângulo. Antes de uma criança vir ao mundo, ela já existe no discurso dos pais, ou seja, a linguagem a antecede e a inscreve nesse campo através de seu nome próprio Entretanto podem ocorrer casos de crianças que não estão inscritas no desejo dos pais e não serão incluídas nestes discursos, como nos casos de psicose. Ele percebe as palavras, inicialmente, como um enxame de sons, sem nenhuma significação. É esse campo da linguagem, lugar em que a criança é sempre interpretada, que Lacan designa como Outro. Quando a criança articula esses sons entre si e, com isso, produz um efeito de sentido, passando a organizar seu pensamento em cadeia, sob a forma de discurso, podemos afirmar que é possível localizar nessa cadeia associativa o efeito sujeito. Sob essa perspectiva, é perfeitamente pertinente dizer que o sujeito advém do campo do Outro.
Lacan, portanto, formaliza que esse sujeito inventado por Freud está sempre se fazendo representar numa cadeia – cadeia de pensamentos, cadeia de palavras – por um significante para outro significante. E isso só é possível porque o inconsciente é estruturado como uma linguagem. E, sendo estruturado como uma linguagem, as formações do inconsciente obedecem às suas leis: a metáfora e a metonímia. A frase “o inconsciente é estruturado como uma linguagem” quer dizer que as formações do inconsciente sempre têm uma mensagem veiculada. Em outras palavras, podem ser tomadas como um texto para ser lido.
A metáfora funciona por uma substituição, ela aparece nas formações do inconsciente como o sintoma, o esquecimento, os chistes e os atos falhos. Podemos usar o exemplo de Freud, no capítulo III, O mecanismo psíquico do esquecimento, sobre um fato ocorrido, com ele mesmo, quando conversava com um amigo e tentava lembrar o nome do pintor de uma obra que queria indicar para que o amigo que visse. O nome do pintor era Signorelli, porém Freud não conseguia se lembrar dele; em sua lembrança, vinham os nomes Boticelli e Boltrafio. Podemos perceber que há nos significantes Signorelli e Boticelli uma semelhança. Na metáfora, dizemos que a troca foi feita por similaridade. Não entraremos nos pormenores do caso. Mas o usamos apenas para mostrar como isso funciona nas formações do inconsciente. No caso dessa substituição, o significante Signorelli remetia Freud a outros conteúdos que só puderam se apresentar na consciência por uma substituição. É através desta estrutura metafórica que se produz os efeitos de significação. E, segundo Lacan (1957/1998), “a condição de passagem do significante para o significado, essa transposição da barra S/s, exprime provisoriamente o lugar de sujeito... mesmo não havendo encontro ou centralização entre essas partes” (p519).
Acompanhando a metáfora, temos a metonímia, que também podemos perceber nesse exemplo. A metonímia é o deslizamento de significante a significante, e se dá em uma relação de deslocamento. De um significante se passa ao outro, como vimos com o Signorelli, Boticelli e Boltrafio, que surgem a partir de um deslizamento da cadeia significante.
Para Lacan:
A metonímia é a conexão de significante a significante, e se dá em uma relação de deslocamento “indicando que essa conexão do significante com o significante permite a elisão mediante a qual o significante instala a falta-a-ser na relação de objeto, servindo-se do valor de envio da significação para investi-la com o desejo visando essa falta que ele sustenta... Pela metonímia e pelo seu valor negativo no que diz respeito à significação vemos o valor da manutenção da barra no S/s Lacaniano.” (LACAN, 1957, p 519).
Outro ponto importante na teoria de Lacan a respeito da metáfora e da metonímia, é que o sujeito vai advir se uma operação metafórica for bem-sucedida. É a metáfora paterna. É o que vai possibilitar que o sujeito não deslize indefinidamente na cadeia significante, funcionando como um ponto de amarração.
Lacan vai dizer da metáfora paterna como uma substituição de significantes que possibilitará o advento do sujeito: o significante do Nome do pai, substituindo o significante do Desejo da mãe, produzindo a significação fálica. A significação fálica é o que permite ao sujeito significar seu ser sexual, responder acerca do desejo do Outro e localizar seu gozo.
Não havendo tal operação...
Pois bem, falaremos então da personagem “Joe” do filme Ninf()maníaca de Lars Von Tries. O filme nos revela através do próprio discurso da personagem como ela localiza a ninfomania na sua história. Ela vai falar desde a descoberta da sua vagina, em sua infância, à vida adulta. “Joe” especialmente ela, nunca conseguiu nada que pudesse dizer algo sobre si, sobre seu sexo, sobre o amor, sobre relacionamentos, sobre falta. Desde sempre.
Em suas relações sexuais pedia aos homens que lhe penetrassem a boca, o ânus, à vagina. Seu pedido, na verdade, era que preenchessem seus orifícios, pois como resposta ao Real do sexo ela só podia pedir isso. Real enquanto uma categoria topológica estabelecida por Lacan. Entretanto, ela nada sabia sobre o que pedia, pois não sabia o que faltava a ela. O que seu discurso nos sugere é que faltava algo que pudesse simbolizar aquela repetição infinita em que se encontrava por conta da Ninf()mania, dizer seu lugar acerca do desejo do Outro, e localizar seu gozo.
Tentou inscrever-se no mundo pela via da sua “Ninf()mania”, que lhe lançava numa repetição infinita sem possibilidade de um ponto de basta, além de nunca ter possibilitado a ela participar ou fazer laço social. A tão repetida frase de “Joe” ao longo do filme: “preencha meus buracos!” se mostra comovente. Trata-se também de um pedido impossível.
O pai de Joe um dia lhe falou da alma das árvores, mas será que ele tinha uma? A alma a que me refiro aqui é a alma no sentido Lacaniano. Alma enquanto um dom. O pai e a mãe de “Joe” não a engajavam nas trocas simbólicas, não demonstravam um amor como um dom capaz de tirar-lhe da condição de puro objeto e remeter-lhe a algo da falta-a-ser. O amor e olhar de seus pais eram sempre objetalizantes.
O termo ninfa e a definição que “Seligman” – outro personagem do filme - lhe dá nos interessa: “fase inicial da vida de um inseto”. É uma fase muito imatura do desenvolvimento de um inseto e de outros bichos também. Mas ninfa é uma palavra que tem outros significados. Vem do grego “Nimphe”, que são espíritos, habitantes dos lagos e riachos, bosques, florestas, prados e montanhas.
Como ela diz de maneira bem clara no filme: “Não sou viciada em sexo. Sou ninfomaníaca”. Podemos pensar a “ninf()mania de Joe” como um problema mesmo com a “fase inicial da sua vida”. Lá onde o sujeito se constitui, com a entrada no universo da Linguagem.
Recorreremos a Freud e nos basearemos no que ele conseguiu elucidar quanto à constituição do sujeito. Freud em seu texto sobre “Pulsões de Destino da Pulsão” (1915/2004) denomina essa fase inicial da vida ou do desenvolvimento do Eu como Narcisismo. Fase durante a qual suas pulsões sexuais se satisfazem de maneira auto-erótica. No mesmo texto ele enumera os destinos possíveis da pulsão, a saber: “a transformação em seu contrário, o redirecionamento contra a própria pessoa, o recalque e a sublimação e condiciona tais destinos à organização narcísica do Eu” e como este se relaciona com o objeto. (p 152)
Nesse caso não se pode tratar a ninf()mania como um sintoma que indicaria a existência de uma operação metafórica, permitindo ao sujeito construir alguma significação para o seu sexo e um sentido quanto ao enigma do gozo sexual do Outro. Entrar na partilha dos sexos inclui um processo de simbolização, capaz de dar outro estatuto à vagina enquanto órgão e engajar o sujeito no mundo quanto ao seu ser sexuado, oferecendo-lhe um lugar no campo feminino referenciado a um homem ou no masculino referenciado a uma mulher. Um saber mínimo que permite ao sujeito posicionar-se minimamente na partilha simbólica entre os sexos e no mundo, ou seja, no laço social. Assim, o título deste texto – “a” ssexualidade se justifica, pois nossa hipótese é que “Joe” não chega a significar seu ser sexual.
Para Lacan
se digo que o inconsciente é o discurso do Outro com maiúscula, foi para apontar o para-além em que se ata o reconhecimento do desejo ao desejo de reconhecimento. Em outras palavras, esse outro é o Outro invocado até mesmo por minha mentira como garante da verdade em que ela subsiste. Nisso se observa que é com o aparecimento da linguagem que emerge a dimensão da verdade”. (LACAN, 1957, p 529).
Lacan aqui se refere ao inconsciente enquanto um saber, à pulsão e ao gozo, ou seja, como a articulação desses termos aparece na fala do sujeito, indicando assim o lugar desse sujeito na busca de sua verdade.
A nossa hipótese é que a tal repetição infinita de “Joe” apresentada por sua ninf()mania refere-se à inexistência de uma letra que faça limite entre o saber inconsciente, a pulsão e o gozo. Apontada no próprio nome do filme, podemos supor também a falta de uma operação metafórica, fazendo com que o caminho pulsão seja redirecionada contra seu próprio eu sempre, nos termos Freudianos, por não haver separação entre ela e o outro ou o objeto. Em termos da organização narcísica de “Joe” consideramos a hipótese de Melancolia. Uma categoria que se enquadra dentro da estrutura clínica da Psicose.
Freud em seu texto “Luto e Melancolia” (1915/2006) se ocupa dessa afecção para entender a “constituição do Eu humano” (p107). Neste texto ele demonstra que no caso de um melancólico algum estremecimento ocorreu na relação desse sujeito com a primeira pessoa escolhida como objeto de amor. Como se trata de uma primeira relação, Freud sugere uma forte fixação da libido nesse primeiro objeto.
Podemos pensar que esta primeira pessoa seria a mãe, geralmente, a primeira pessoa com a qual a criança estabelece uma ligação. Esse “estremecimento da relação” (p 108) entre a criança e a mãe aconteceria em uma fase bem precoce da constituição do Eu. Fase em que algo começaria a se dar em termos de separação entre a criança, a mãe e o objeto que seria extraído dessa relação primeira. No caso da melancolia, no momento em que cai um objeto do Outro, segundo Freud (1915/2006), “o próprio Eu do sujeito é que sofre uma perda” (p 105). Dito de outro modo, o Eu se identifica com o objeto abandonado, como se fosse o próprio objeto.
Outro aspecto dessa fase de constituição do Eu, segundo Freud (1915/2006), é que já existe uma parte do Eu que se separou e se contrapôs a outra. Essa parte que se contrapõe Freud a reconhece como uma instância crítica que trata a outra como se fosse um objeto (p 107). Mais tarde Freud a denominará de Supereu. Daí a forte caraterística de autodepreciação que esses sujeitos apresentam. No relato de “Joe” podemos reconhecer claramente essa autodepreciação - “insensibilidade”, “sou um ser humano ruim”, “eu... nada” dentre outros.
Diante disso, pensamos a ninfomania de Joe como uma amarração em resposta a sua estrutura melancólica. Apesar de ser uma amarração frágil por lançar lhe sempre a um gozo mortífero - uma repetição infinita de procura por sexo o que podemos inferir à mania, tendência da melancolia de se transformar em seu oposto. Pois, o contrário disso seria justamente o que aparece no início e fim do filme “Ninf()maníaca”: A escuridão... O buraco... O vazio... O nada à semelhança de uma experiência de “fim do mundo” como, curiosamente, Lars Von Trier trabalhou em um filme anterior chamado “Melancholia”.
Para finalizar compartilhamos a opinião de Charlotte Gainbourg, atriz que interpreta a personagem “Joe”, de uma entrevista sobre o filme:

"Joe não tem uma visão muito otimista da humanidade. Sendo assim, sim. Não concordo com ela, mas eu a amo muito. Acho que ela se torna comovente. É estranho ver a si mesma em um filme, é estranho falar dessa forma, mas é fácil defendê-la."
Trailer do filme

EMELINE COSTA. Psicanalista. Membro dos Seminários Retorno a Lacan, Seminários de Leitura e Café com Freud. Consultório em Macaé (RJ)

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

Ninfomaníaca: Práticas do Infinito

de Christian Ingo Lenz Dunker
Há uma longa tradição no ocidente cristão que associa inovações estéticas na forma de falar da sexualidade com transformações políticas em nossas formas de vida. E entre tais políticas há as que privilegiam a vida como finitude, com seus afetos fundamentais de medo e desamparo, e as que pensam a vida incluindo o problema do infinito, seja ele o infinito do desejo, seja ele o infinito do tempo, ou ainda o infinito indeterminado do diálogo entre vivos e os mortos. Assim é o Marques de Sade, e sua Filosofia na Alcova, e a aurora da revolução francesa de 1789; os românticos de segunda geração, como Byron e Mary Sheley e seus seres góticos adoecidos no sexo, bem como maio de 1968, a revolução sexual de Reich a Bukowsky e principalmente o feminismo. Cada um destes momentos tiveram também seus teóricos: os libertinos e suas controvérsias em torno da existência ou não de uma moral natural, no século XVIII, a sexologia de Kraft-Ebbing a Havelock Elllis, no século XIX e a psicanálise de Freud a Robert Stoller no século XX. Cada um destes momentos esta marcado por uma problemática relativa ao infinito: o divino marquês investigava o infinito no corpo-natural, os ultrarromânticos queriam saber do infinito da vida (vampiros, Frankensteins, fantasmas e zumbis), enquanto a psicanálise nasce como uma investigação sobre o infinito do desejo (sem tempo, sem negação, sem contradição).
Foucault queria que a análise crítica desta sucessão servisse para que parássemos de localizar a verdade do sujeito neste campo heteróclito, de desidentidade do sujeito, que é a sexualidade. Eventualmente sua crítica contém algo mais importante do que ele mesmo teorizou. Não só a saga da dominação do homem pelo homem, a partir de sua subserviência ao sexo rei. Não apenas a dominação por discursos impróprios, nem mesmo a neutralização a sexualidade na medida em que somos incitados a falar mais e mais dele. Foucault chamou de hipótese repressiva, certas condições históricas de emergência da psicanálise, como a naturalização da maternidade, a perversão dos adolescentes e a sexualização da infância. Uma característica forte desta “estrutura de ficção” é o horror ao infinito. A sexualidade é perigosa, principalmente para os desprevenidos, por que ela sempre pede mais, se damos a mão ela quer o braço, e se damos o braço ... não sabemos onde vamos parar. É este temor ao infinito que Lacan pensou por meio de uma crítica da gramática da necessidade (nécessaire = ne – cesse: o que “não cessa”). Ora, o que não cessa de se escrever (necessidade), presume o que cessa de não se escrever (contingência), assim como o que não cessa de não se escrever (impossível) presume o que cessa de escrever (possível). A crítica de Lacan tenta reduz o potencial de periculosidade da coisa sexual, mostrando que o infinito não está apenas na necessidade, mas desdobra-se em várias incidências do infinito, inclusive este infinito negativo e impossível que não para de não acontecer.
Ninfomaníaca, o filme de Lars Von Triers é também um exercício estético sobre as modalidades do infinito. Ele caminha entre as três narrativas fundamentais sobre a sexualidade, do naturalismo descritivo que nos lembra as enciclopédicas 120 Jornadas de Sodoma e Gomorra de Sade, à investigação científica de Joe (Charlotte Gainsbourg) em torno de seu próprio corpo, que nos lembra os anatomistas do prazer, além do tratamento espontâneo e experimental de um sintoma sexual, qual seja sua súbita perda da capacidade de sentir prazer, o que nos faz pensar na experiência psicanalítica. Ela conta suas aventuras para Seligman (Stellan Skarsgard) mistura de psicanalista, estudioso da sexualidade e religioso assexuado. Assim como em Melancolia, Von Triers aborda a experiência do fim, do fim do mundo, do fim do desejo, agora em Ninfomaníaca ele estuda o que seria uma vida em estado de infinitude. Podemos dizer que Melancolia é um estudo em torno da substituição da hipótese repressiva pela hipótese depressiva.
Esta tematização do infinito não se restringe a trama entre os personagens e à estrutura da narrativa. Ela aparece como consequência direta da forma como Von Triers pensa os problemas da produção cinematográfica e da linguagem fílmica. Daí a relevância do filme para pensar uma sexualidade por vir. Daí a relevância de seu cinema para pensar nossa época que se vê às voltas com a produção de limitações que não podem depender apenas de restrições normativas, higienistas ou jurídicas. Basta pensar em questões análogas: que princípio nos fará parar diante da posse dos meios para destruir o planeta ou de recuar diante de uma catástrofe ecológica? Ou seja, por que parar se nada me impede? Lembremos os dez pontos que Von Triers e Thomas Vintenberg formularam, em 1996, como fundamento de seu programa estético-político conhecido como Dogma 96:
  1. As filmagens devem ser feitas no local.
  2. O som não deve jamais ser produzido separadamente da imagem ou vice-versa.
  3. A câmera deve ser usada na mão.
  4. O filme deve ser em cores. Não se aceita nenhuma iluminação especial.
  5. São proibidos os truques fotográficos e filtros.
  6. O filme não deve conter nenhuma ação "superficial".
  7. São vetados os deslocamentos temporais ou geográficos.
  8. São inaceitáveis os filmes de gênero.
  9. O filme final deve ser transferido para cópia em 35 mm.
  10. O nome do diretor não deve figurar nos créditos.
Os dez pontos do manifesto são restrições, limitações auto-impostas, suspensões do uso de recursos tecnológicos, de produção e de filmagem que estão disponíveis, mas que não serão usados. É uma forma de criar liberdade escolhendo seus limites. Muitos leram neste manifesto uma espécie de recuo regressivo a um naturalismo moral. Uma tentativa de associar novamente produção e linguagem fílmica. Uma crítica à excessiva divisão de tarefas, com autonomização das funções (fotografia, som, direção, direção de atores, etc). Uma indisposição antipática contra a ingerência genérica da força dos meios de produção (recursos tecnológicos, mobilidade de set, etc) no resultado produzido para o público. A ideia de que um filme deva colocar o montante do valor de sua produção como um “índice” de sua qualidade ou como parte de seu apelo ao consumo soava de forma brutalmente estranha aos partidários do Dogma-96. Por outro lado eles não queriam se contentar com uma espécie de retorno ao cinema de autor, que colocava o nome do diretor como ponto de convergência e unidade, que produziria, com o tempo, um traço de “vendabilidade” do filme.
O ponto de amarração da verdade não está nem no excesso da produção, duplamente representado dentro do filme e em seus meios de produção, nem na garantia oferecida pelo nome do diretor e sua suposta confiabilidade induzida pelo efeito obra. O problema que surge daí é muito mais interessante do que sua solução empírica. A ideia enfrenta o desfio que é o desafio ao capitalismo de nossa época: como não usar tudo de que dispomos? Como recuar diante de uma enunciação que não é bem um imperativo, do tipo “isto sim” ou “isto não”, mas uma espécie de falso silogismo irresistível: “se não há nada que proíba ... então se torna obrigatório”. Ou “se eu posso” então “eu devo”?
O filme de Von Triers segue de perto o esquema narrativo proposto pelo Marquês de Sade. Variação repetitiva de modalidades de prazer, com especial ênfase no sadismo e no masoquismo. Cena confessional com a figura do professor benevolente, mas assexuado, que lentamente vai sendo convencido e convertido libidinalmente. Evolução naturalística das formas de prazer, descritas como um processo de descobertas sucessivas, em torno de uma experiência enigmática ou a-sexuada, no caso, o gosto paterno por folhas e árvores. Indiferença, frieza e contratualismo institucional na abordagem discursiva da sexualidade, tratada com distanciamento memorialístico, científico ou moral. Pares de opostos são hierarquizados na construção de uma moral experimental: o natural e o artificial, o universal e particular, o necessário e o possível. É assim que chegamos, no segundo volume, ao discurso de que a Igreja Católica do Ocidente está para o sofrimento assim como a Igreja Ortodoxa do Oriente está para a felicidade. Lembremos que no concílio de Constantinopla, em 1054, decretou-se esta divisão, estabelecendo-se a partir de então dogmas. Lembremos ainda que o chamado cisma do oriente baseava-se na interpretação diferencial da origem a trindade. A querela “filoque” opunha os que achavam que o espírito santo provinha do pai (o um vem do um) e os que pensavam que o espírito santo vinha do pai e do filho (o um vem do dois). Estamos de novo diante de duas concepções sobre o infinito: o infinito entre dois, ou o infinito dado de uma vez.
De fato este é também o silogismo que se dissemina em nossa moral sexual pós-civilizada. Tudo o que não é proibido é permitido. E tudo o que é permitido pode ser levado ao obrigatório, até o abuso. O que nos leva a proliferação de interdições regulativas, de ordem médica, higienista ou educativa. Esta ideia de que a lei é nosso único limite é uma ideia muito limitada para nosso tempo. Basta lembrar o trabalho de Picketti, sobre a inanidade da ampliação da distribuição de renda, dentro da lei, nos últimos séculos, na maioria dos países do ocidente. Basta lembrar que a crise ecológica simplesmente não será enfrentada apenas com novas leis punitivas e restrições diretas ao uso dos meios. Basta lembrar a pobreza em que se expressa nosso debate sobre a liberdade de expressão. A liberdade de tudo dizer, sem consideração pelos meios de ampliação, de transmissão, de dominação do espaço público, é contraposta de forma brutal e massiva contra as restrições de censura, controle e manipulação de consciências. Tudo se passa como se deduzíssemos nossa liberdade apenas a partir do que não é proibido e como se localizássemos o proibido no Outro. Resultado, uma forma de vida que só consegue sofrer, e portanto, pensar sua liberdade encarcerada entre o possível e o não-possível (hipótese depressiva) ou acossada pela lei do necessário (hipótese repressiva). Nenhum lugar resta para a contingência. Como se a única liberdade fosse aquela deduzida da lei, mesmo que em escala invertida da lei do desejo, como argumentava Lacan até 1960. E aqui estaria a novidade da reflexão contida em Ninfomaníaca.
Quando Freud fala da sexualidade perverso polimorfa da criança ele não está se referindo apenas a sua dialética com a lei, nem à alternância entre possível e impossível, mas ao fato de que a relação primária com o prazer é contingente. Esta é a regra de formação da sexualidade. A perversão é o negativo da neurose porque a neurose é experiência determinada do prazer. Na perversão infantil é o prazer contingente, e sua experiência produtiva de indeterminação, que possui valor formativo.
Quem já atendeu pacientes em mania talvez concordará que existem três sinais inconfundíveis: a aceleração da velocidade da fala (ou da escrita), a impulsividade para o sexo e a propensão para o consumo. São casos muito difíceis, senão quase inabordáveis, porque justamente o tempo do para ouvir o outro é suprimido. O que se diz ao paciente é quase indiferente diante de sua marcha solitária e heroica rumo à exaustão. Mas o perigo nestes casos não está apenas nas situações embaraçosas ou na “conta” que pode aparecer depois, mas no ponto de inversão, no ponto em que o fósforo queima tão completamente que se apaga. O ponto em que passamos da Ninfomanía para a Ninfo-melancolia. Desta última poucos se queixam, tal a maneira como se dissemina em nossa cultura fabril e febril, o excesso de trabalho e de entretenimento. Esta vida sem sexo resolveu o problema foucaultiano da exegese infinita de si mesmo, da narrativa da carne e da culpa. Estaríamos assim curados de nossa compulsão a encontrar nossa verdade nos excessos e faltas da sexualidade. Desconfio que muitas das curas atribuídas a anti-depressivos devem ser realmente creditadas a certos efeitos ninfo-melancolizantes, induzidos de forma “colateral” pelos anti-depressivos. Não seria a primeira vez na história da medicina em que o colateral é o essencial. Pode ser estranho pensar assim, mas uma vida sem sexo pode ser uma vida muito mais eficaz, com muito menos conflito, maior desempenho narcísico e com muito maior adaptação social.
Mas o ponto crucial, e realmente novo no experimento de Von Triers não é obviamente a narrativa da recuperação da potência de prazer, por meio de giros masoquistas, nem mesmo a dependência crucial entre sexo e discurso, mas este enigmático ponto de inversão entre a Ninfomanía e a Ninfo-melancolia. Ponto a partir do qual se poderia entender o fim da história, como um ato inesperado que é e que intrigou mitos espectadores. Sem spoiler, posso dizer que se trata da aparição inesperada da contingência, e da superação da lógica, antes consagrada pelo experimento ninfomaníaco, que oscila do possível ao necessário.
Lacan abordou este problema da disparidade entre infinitos, no interior da sexualidade, recorrendo a duas teorias diferentes. O gozo fálico, comum a homens e mulheres, estaria organizado ao modo de uma série, no interior da qual procura-se um elemento comum. Uma série quer dizer que conhecemos sua regra de formação, e pensamos o infinito pela indeterminação de seu último termo, por exemplo, a série dos números naturais N= {1,2,3 ... n}. O gozo feminino, ou gozo Outro, não se organiza desta maneira, mas ao modo de uma “lista” com elementos que podem ser escolhidos aqui e ali, mas cuja regra de formação deverá ser estabelecida depois, se é que ele pode ser descrita. Isso pode ser ilustrado pelo conjunto dos números Reais, que englobam não só os números inteiros e os fracionários, positivos e negativos, mas também todos os números irracionais, por exemplo, R {0, 0.333.., 0.7, 1, Pi... n}. Os números Reais não possuem uma regra de formação, mas intercalam elementos cujas propriedades não se reduzem às de outros conjuntos. Tipicamente o problema do gozo fálico é que ele é formado por uma intersecção, por exemplo, entre conjuntos abertos, produzindo o que se chama de infinito contável ou infinito enumerável, desde que se introduza no próprio conjunto os seus pontos limites (teorema de Bolzano-Weierstrass).O gozo feminino não se faz por interseção, mas pela reunião de famílias de conjuntos abertos, com o qual se aborda finitamente a infinitude. Neste caso não se incluem os pontos limites na série. Com uma lista finita pode recobrir o infinito. Esta reunião de abertos em estrutura de lista corresponde a um segundo tipo de infinito (teorema de Heine-Borel-Lesbegue).
Ocorre que as mulheres possuiriam, de modo contingente, dois gozos: o fálico (como o dos homens) e o especificamente feminino (gozo Outro). O inconveniente, segundo Lacan, é que este segundo infinito só pode ser exprimir, em termos de linguagem, constrangendo-se às regras impostas pela lógica da série. Isso levou Geneviève Morel, uma estudiosa da teoria lacaniana da sexuação, a afirmar que os homens dependem de uma fantasia para gozar, ao passo que na sexualidade feminina a fantasia é sempre um tanto incompleta, inacabada ou manca. As mulheres, que não podem formar um conjunto unitário, pelos motivos antes examinados, encontram sua modalidade preferencial de inscrição discursiva da sexualidade no mito. Narrativas como a de Don Juan, são compreensíveis como um mito, ou seja, uma articulação lógica entre inúmeras fantasias. Entre gozo fálico (enumerável) e gozo feminino (não enumerável) não há continuidade, mas ausência de relação previsível. Por exemplo, se encontramos o número “3” podemos tomá-lo como elemento da série dos Números Naturais ou elemento da lista dos Reais. É apenas uma contingência que ele pertença a ambos.
Ninfomaníaca é um ensaio sobre a liberdade infinita, sobre os modos de uso do corpo para além das restrições de segurança, da exaustão dos corpos (velho tema sadeano) e da hermenêutica da proibição. Entre o infinito representado pela relação entre liberdade e lei, infiltra-se o infinito do infinito, representado pelo registro da potência e da impotência. E é exatamente com relação a este segundo infinito-ruim que se articula a narrativa de sofrimento que articula o filme: o momento em que Joe se questiona o que há de errado com a sua “boceta”. Momento que sucede a maternidade e no interior do qual ela percebe que este é um órgão sem corpo.

Podemos agora lançar nossa hipótese. Não seria possível que este ponto de exaustão, o limite da prática sexual, o momento de conversão da Ninfomania em Ninfo-Melancolia, o acontecimento de um ponto de liberdade, entre o possível-necessário e o contingente? Não seria esta a mais trágica experiência que poderíamos supor em matéria sexual? A ninfomania pára de se escrever. Joe, apesar de ter se dedicado de forma análoga ao mito de Sade, este sim um mito masculino, a uma série infinita de encontros, talvez não estivesse procurando apenas a razão de formação desta série, o traço unário que reuniria todos os homens. Sua saga não teria a estrutura da corrida de Aquiles contra a tartaruga, que tenta nomear os pontos infinitos e infinitesimais que separam o Um do Outro, mas a estrutura de uma perda infinita do objeto. Se isso é verdade ao contar sua história para Seligman ela passa do infinito masculino ao feminino, ainda que depois se veja obrigada a desfazer a totalidade assim constituída. Neste caso sua aventura pode ser o prenúncio de uma sexualidade além do possível e do necessário. Outro tipo de verdade para a coisa sexual.
Trailer do filme
Christian Dunker é Psicanalista, Professor Livre Docente do Depto de Psicologia Clínica-IPUSP, Analista Membro de Escola da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano, Membro da Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental, Doutorado (IPUSP) e Pós-Doutorado pela Manchester Metropolitan University (UK). Autor de vários livros, entre eles o vencedor do Prêmio Jabuti 2012: “Estrutura e constituição da clínica psicanalítica: uma arqueologia das práticas de cura, psicoterapia e tratamento” (ed. Annablume, 2011).

domingo, 9 de junho de 2013

Anti Cristo de Lars Von Trier

por Francina Sousa

Em tempos de capitalismo apressado, escrever sobre um filme “antigo” como Anti Cristo de Lars Von Trier pode parecer antiquado. Ressalva sem sentido para o inconsciente, já que ali o tempo não caminha ano após ano, dia após dia, hora após hora... Confesso que demorei certo tempo para ter coragem de ver o filme. O pano de fundo, um casal que perde seu filho pequeno, e que se isola em uma cabana no meio da mata, parecia assustador e familiar demais pro meu gosto. Só que esqueceram de me avisar que a cena em que o garotinho parece saltar alegremente para a morte era o que havia de menos perturbador no filme.
Entendo que buscar um sentido pleno ao filme seria incorrer no mesmo erro do terapeuta que, ao lado da mulher, protagoniza o filme. Faço apenas algumas observações. Frente ao real da perda de um filho, o "arrogante" terapeuta considera-se apto a tratar o luto prolongado de sua mulher, e para isso recorre a uma "técnica" cognitivo-comportamental: confrontá-la com aquilo que lhe causa medo, no caso, uma cabana horrorosa no meio da mata, Éden. Mas não é de Éden, como ele a forçou a concluir, que ela tem medo, e sim da selvageria e obscenidade abafados nos porões do eu. Não à toa ela lhe adverte: “Você é tão arrogante. Mas isso pode não durar, sabia?”
Ao quebrar uma lei (a mulher o lembra de que não é prudente tratar alguém tão próxima, porém ele argumenta que ninguém a conhece mais do que ele, numa patética onipotência narcísica da qual a queda será inevitável), ele abre caminho para que a Lei simbólica seja ultrapassada. E paga caro por isso: a mulher literalmente atravessa a arrogância do marido e, em uma das cenas mais fortes, imprime no real a falta que ele luta tanto para escamotear. Em Éden, o caos reina.

O filme faz pensar naquilo que está além do princípio de prazer, o gozo em seu limite, no limite da aniquilação... Nos lembra de que aquilo que foi recalcado permanece indestrutível no inconsciente ou, nas palavras do poeta: E o que desapareceu,/ converte-se para mim em/ realidade (Goethe).
Trier coloca em cena o erotismo e a agressividade da qual o humano não cessa de abrir mão em nome da segurança, da sobrevivência, da civilização. Mas aquilo que é banido não se conforma: insiste em retornar e algumas vezes de forma nefasta, o dia-a-dia nos prova isso.
Já foi dito que nunca houve um monumento da cultura que também não fosse um monumento da barbárie, foi cantado que o homem criava e também destruia...
Quando se trata do humano, o buraco, esse vazio ao qual tentamos insistentemente preencher de sentido, é mais embaixo. E é passível de explodir em non sense. Dostoiévski já nos alertara, com seu homem do subsolo, de que dois e dois nem sempre são quatro, e Éden parece trazer à tona o “Real em sua violência extrema como o preço a ser pago pela retirada das camadas enganadoras da realidade” (Zizek).

No filme tive a impressão de que justamente quando o homem começa a desconfiar de que não tem o controle sobre si e muito menos da situação e diz para sua mulher que anda tendo uns sonhos estranhos, esta ironicamente age como ele até então: fecha a questão afirmando que “os sonhos não significam mais nada para a psicologia moderna, afinal, Freud está morto, não?” Assim ela obstrui o caminho que poderia levá-lo a abandonar a posição iludida de senhor de si mesmo.
Lembrei-me de algo que li: “O desejo rejeitado pelas instâncias psíquicas superiores (o desejo recalcado do sonho) agita o submundo psíquico (o inconsciente) para se fazer escutar. O que pode você ver de ‘prometeico’ nisso?” Encontrei esta frase logo no início da Interpretação dos Sonhos e não pude deixar de pensar no quanto esta assertiva sobre os sonhos condensa uma série de noções em psicanálise. É fantástico que Freud tenha, em plena modernidade cartesiana, se valido dos momentos em que o homem era onde não se pensava, percebido nas cotidianas formações do inconsciente (sonhos, chistes e atos falhos) aquilo que aparece quando o Eu cochila. E o que podemos ver de prometeico nisso?
Penso que, assim como Prometeu, que acorrentado e agonizante não deixa de gritar o seu destino, o que é recalcado (condenado, banido) não deixa de se agitar e procura de toda forma fazer-se ouvir. Por menos que o Eu queira saber d’Isso! Por outro lado, o ato de roubar o fogo dos deuses e entregá-lo aos homens marca um antes e um depois: depois do ato, um saber inédito que muda o destino da humanidade. E o que pode você ver de "freudiano" nisso?
Freud pode estar morto, mas suas ideias "acorrentadas" (pelo apagamento do sujeito do inconsciente por aquele tal discurso do capitalista, pelas neurociências ou pela tal "psicologia moderna"...), agitam o submundo humano e até hoje, por menos que se queira, o eco de sua descoberta faz-se presente, e tanto nosso cotidiano quanto a tempestade pulsional que o personagem enfrentará em sua mulher no filme não nega isso. 
Anticristo - trailer oficial

Francina Sousa é Psicanalista, membro do Fórum do Campo Lacaniano de Mato Grosso do Sul e do Ágora Instituto Lacaniano, psicóloga da Universidade Federal da Grande Dourados / UFGD.

domingo, 12 de agosto de 2012

MELANCHOLIA – LARS VON TRIER:

O 19º BURACO - Karin de Paula


- Muito foi dito e escrito sobre os sentidos que este filme teria para cinematografia de Von Trier, ou até mesmo como expressão de sua história pessoal, as polêmicas e etc., mas vou “tirar a sardinha com a mão do gato” e abordá-lo a partir da enigmática menção feita sobre a existência de um 19º buraco no campo de golfe.
- Dito de outra maneira, é do ponto de vista daqueles que sofreram o impacto do apocalipse e que ainda estavam ali quando as luzes da sala escura de projeção se acenderam e que, numa experiência estética, notaram serem sobreviventes, ou seja, nós os expectadores.
- Afinal, estamos aqui dispostos a falar algo sobre e sob o impacto DISSO, de uma visada de fim de mundo.
- Curiosamente, de um fim de mundo anunciado desde o início do filme e que nem por isso nos deixou suficientemente avisados... Nenhum segredo ou suspense é feito sobre este desfecho da trama, que já na abertura da película está decidido.
- E isso não se parece bem com a vida? Parafraseando João Cabral de Melo Neto, em Morte vida Severina, não “nascemos, eu e minha morte”?
- Como Justine e Claire -e das formas mais particulares-, não queremos saber nada disso...
- Vou, então, puxar a sardinha para o meu lado e situar nesta seara aquilo que, ao meu ver, se conecta de forma bastante significativa ao que está colocado em perspectiva na parte mais radical de uma experiência de análise.
- Podemos pensar que o percurso de uma análise implica a admissão e confecção dos efeitos do inconsciente em nossa experiência, e que neste contexto, o inconsciente há de ser admitido em sua face simbolizável (automatom), mas também em sua radicalidade de inominável(Tiquê) e inapreemsível, sem tomar o impossível “como se” se tratasse de impotência.
- Há um filme do Godard chamado “Nossa música”, que, curiosamente, também é apresentado em 3 partes e tendo com começo uma versão de fim de mundo como Melancholia.
- No caso de “ Nossa música” trata-se de “Inferno, Purgatório e Paraíso” , sendo o Inferno a primeira parte apresentada, como uma sucessão de imagens de destruição, o Paraíso a última, encenando uma espécie de paz pós- morten e, entre estas, o Purgatório, onde tudo transcorre como em nosso cotidiano terráqueo e em que se propõe a seguinte questão:
É preciso deliberar entre ficar com o impossível do possível ou com o possível do impossível”
- Contar o possível da vida não se faz sem incluir o impossível, inclusive no que diz respeito ao inconsciente e, portanto, à empreitada de uma análise.
- Seja enfrentando a questão da castração, que com Freud nos levou até a formulação do “trabalhar e amar” , seja com Lacan, levando tal projeto, digo, o da análise, mais adiante, ao “fazer com a pulsão”. Talvez esta seja uma concepção de 19º buraco no campo de golfe, de Von Trier... Talvez, também a pergunta sobre o “Amor depois do amor” de Fito Paez...
- Lacan certa vez disse: “o analista tem horror de seu ato” e, também, que “ a angústia não faz chiste”. Isso não teria a ver com a condição advertida que o ato do analista comporta sobre a radicalidade de um certo fim de mundo concernente à existência que se deflagra necessariamente na análise de cada um, se levada a termo? Além das resoluções edipianas ou como dito, depois da conquista da condição do “trabalhar e amar”?
- No cartaz original do filme de Von Trier está escrito sobre a foto de Justine disposta como Ofélia de Hamlet: “O fim será belo”... Mas, Isso será possível? O que podemos fazer com Isso? Ou Dizer disso?
- Estas são perguntas de uma análise...
- Mas, não sem passar pelo inexorável fim admitido, quando terá sido fundamental ter lançado mão, como em Melancholia de Von Trier, da “caverna mágica” por um puro designo nominativo, pode ser factível ficar com o possível do impossível...
O que não será pouca coisa!
Karin de Paula
SP, agosto de 2012

Karin de Paula é Psicanalista, Mestre e Doutora pela PUC-SP,  Pós-doutoranda na Sorbonne Paris Diderot (Paris 7), professora na universidade e em curso de formação de psicanalistas. Membro fundadora do umLugar – Psicanálise e Transmissão. Autora dos livros “$em – sobre a inclusão e o manejo do dinheiro numa psicanálise”, Ed. Casa do Psicólogo Do espírito da coisa - um cálculo de graça”, Ed. Escuta.