segunda-feira, 20 de junho de 2016

Star Wars, a morte e o sexo

de Marcus do Rio Teixeira

Um filme jamais se resume às imagens e sons que o compõem, mas é também a soma das leituras que dele são feitas. No caso de Star Wars, Episódio VII - O despertar da força (2015) o culto fiel dos fãs que sustentam a grande mitologia da saga é apenas a forma explícita do que ocorre em outras obras cinematográficas. Assim, as críticas, resenhas e discussões também fazem parte de Star Wars. Nesse sentido, a opinião dos atores é um componente importante do filme. Carrie Fisher, a atriz que interpreta a princesa Leia, queixou-se dos comentários dos fãs e críticos de cinema sobre o seu envelhecimento, comentários que, segundo ela, feriram os seus sentimentos. Ela exortou ainda os espectadores a reconhecerem a velhice como um processo natural, parte do ciclo da vida. Bem, não há como negar essa obviedade. Porém, creio que a atriz se engana ao considerar exagerada ou não pertinente a preocupação dos espectadores com tal processo. Isso porque na verdade, toda saga diz respeito, justamente, ao envelhecimento.
“A saga é uma sucessão de eventos, aparentemente sempre novos, que se ligam, ao contrário da série, ao processo ‘histórico’ de um personagem, ou melhor, a uma genealogia de personagens. Na saga os personagens envelhecem, a saga é uma história de envelhecimento (de indivíduos, famílias, povos, grupos).”1
Não é surpreendente, portanto, que os fãs de Star Wars, Episódio VII se interessem pelo envelhecimento dos atores, uma vez que a saga trata do envelhecimento dos personagens interpretados por esses atores. Ambientado trinta anos após os acontecimentos do Episódio VI (aproximadamente o mesmo tempo transcorrido entre os dois filmes na realidade), o filme mostra os personagens vivendo as mudanças decorrentes da velhice. Por trás da morte espetacular, dramática, provocada pelos sabres laser e explosões de planetas, espreita a morte mais prosaica, silenciosa, que resulta da passagem do tempo e do envelhecimento dos corpos. Esta, contudo, não é abordada diretamente. Ao contrário, quanto mais é exposta de forma violenta, mais a morte é afastada, denegada. Com exceção de Yoda, que morreu com novecentos anos, os protagonistas de Star Wars não morrem de causas naturais.
Porém, a saga não trata apenas do envelhecimento e da morte, mas também da genealogia. Daí porque um ponto central da trama seja o conflito entre pai e filho (acerca do qual não entraremos em detalhes para não entregar spoilers). Se esse conflito não parece inverossímil a nós espectadores, tão tolerantes na suspensão da descrença, é porque ele nos evoca o conflito entre Luke Skywalker e Darth Vader presente na trilogia original. Como nos lembra Umberto Eco, o novo na saga é apenas aparente; na verdade, ela acompanha a morte dos velhos personagens para repetir as mesmas tramas, as mesmas situações narrativas com novos personagens, indefinidamente. A autocitação também faz parte do mecanismo da saga, e nesse filme ela está presente de forma evidente ou sutil, em toda parte: nos cenários, no figurino, ou no bar repleto de alienígenas.
Quanto ao conflito entre pai e filho, chama a nossa atenção o fato de que esse tema tão caro a Freud, que soube reconhecer a sua presença na literatura ocidental desde a obra de Sófocles, assim como para Lacan, que o redefiniu em tempos lógicos e deu uma nova definição ao conceito de castração, seja situado pelos cineastas como ponto central de várias narrativas ao mesmo tempo em que tem sua importância minimizada hoje em dia por alguns autores lacanianos.
Outro tema se faz presente no filme: trata-se do sexo, que não deixa de se estar relacionado ao tema da morte, conforme Lacan2 teoriza no Seminário Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise: “(...) o vivo, por ser sujeito ao sexo, caiu sob o golpe da morte individual”.
Novamente é Carrie Fisher quem dá a deixa. “Não seja uma escrava como eu fui. Lute pelo seu figurino. Continue lutando contra o traje de escrava”, disse ela numa entrevista, dirigindo-se a Daisy Ridley, a atriz que interpreta Rey, a personagem feminina do novo filme. Ela se referia ao biquíni que usou quando a princesa Leia foi escravizada pelo monstruoso gangster Jabba. Na verdade, o figurino da princesa é uma referência evidente aos trajes sensuais de Dale Arden, a noiva de Flash Gordon, na HQ desenhada por Alex Raymond nos anos 30, à qual Lucas sem dúvida presta homenagem. Ao que parece, esse biquíni causou tanta controvérsia que a Disney, responsável pela comercialização dos brinquedos da franquia Star Wars, decidiu retirar das lojas a boneca da princesa Leia. O que causou outra controvérsia, pois agora as pessoas se queixam de que só há bonecos de personagens masculinos da série...
Mas ela prossegue nos seus conselhos à jovem atriz: “As pessoas vão ter fantasias com você! Isso vai fazer você se sentir desconfortável, eu imagino.” Não vou discutir aqui a contradição explícita entre ser uma atriz, alguém que interpreta personagens, e não querer que os espectadores tenham fantasias. É claro que sabemos que Carrie Fisher não se refere a fantasias em geral, mas a um tipo específico, as fantasias sexuais. São essas fantasias que ela considera que fariam a atriz se sentir “desconfortável” e que deveriam ser evitadas.
Ora, para um psicanalista soa extremamente estranha a ideia de evitar que os sujeitos tenham fantasias. Mesmo se tomarmos o termo “fantasia” no sentido proposto por Fisher, de roteiro de um devaneio sexual, e não segundo Lacan, como uma articulação entre o sujeito e o objeto perdido que causa o seu desejo. Ainda assim não há como imaginar a possibilidade de por em prática o conselho da atriz e suprimir as fantasias ou devaneios sexuais, uma vez que esse roteiro sexual é a forma imaginária da fantasia que organiza o desejo, a qual é sempre inconsciente e não pode ser suprimida.
Semelhante ascetismo pode parecer anacrônico em uma época que superou o moralismo tradicional e ampliou a liberdade sexual. Mas alguns fatos recentes mostram que a censura ao sexo e o moralismo parecem ter voltado à moda, agora sob nova inspiração ideológica. Leiam, por exemplo, o ótimo artigo de Tati Bernardi3, “Respeite as mulheres, sua vaca!”:
“Meu ex-analista me contou que um paciente seu de 17 anos vomita toda vez que bate punheta pra namorada. As feministas da sua classe disseram a ele que ‘punheta é nojento, é tratar a mulher como objeto, como carne barata’. Um colega escritor premiado e respeitado se desesperou ao saber que, após um texto seu falando sobre admirar uma mulher bonita, sua filha sofreu bullying das coleguinhas: ‘seu pai é misógino’.”
É importante observar que a ideia subjacente a essas críticas é a mesma do conselho de Fisher: o desejo masculino constitui uma depreciação da mulher. Não um determinado tipo de desejo, mas o desejo em si. Segundo essa visão, ele é uma forma de depreciação da mulher porque o homem a toma como um objeto. Diríamos, mais precisamente, que o sujeito a toma como a encarnação desse objeto perdido que é sempre imaterial, ao qual ele tenta dar uma forma imaginária. É esse lugar de objeto que seria desconfortável para uma mulher. A psicanálise não ignora esse desconforto, muito pelo contrário. Ela está atenta para o que concerne aos efeitos imaginários das escolhas simbólicas. Porém ela não compartilha da ingenuidade de supor que o desejo possa ser causado por uma “pessoa” em vez de um objeto. Acerca dessa questão, Lacan4 observa:
“Que eu saiba, depois de ter dado uma conotação tão pejorativa ao fato de considerar o outro como um objeto, ninguém jamais observou que considerá-lo um sujeito não é melhor. Vamos admitir que um objeto valha por um outro, sob a condição de darmos ao termo objeto seu sentido original, que visa aos objetos na medida em que os distinguimos e podemos comunicá-los. Se é, pois, deplorável que o amado jamais venha a se tornar um objeto, será melhor que ele seja um sujeito? Para responder a isto, basta observar que, se um objeto vale um outro, para o sujeito isso ainda é pior. Pois não é simplesmente um outro sujeito que ele vale - um sujeito, estritamente, é um outro.”
Façamos a hipótese de que os roteiristas de Star Wars se deixaram influenciar por essa noção do desejo masculino como uma depreciação da mulher. Apesar de se passar em outra galáxia, a história segue a ideologia presente nos países ocidentais do nosso modesto planeta. A questão que se coloca para os roteiristas é a seguinte: como representar a aproximação sexual em um casal de jovens heterossexuais quando as normas de conduta contemporâneas consideram o desejo masculino como algo condenável? Isso nos ajudaria a entender porque a paquera, ou sei lá como chamar, entre essa catadora de lixo espacial (Daisy Ridley) e esse desertor interpretado por um jovem ator negro (John Boyega) é tão insossa, tão sem graça. Sabemos que em praticamente todos os filmes do cinema mainstream assumidamente dirigidos a um público adolescente (penso em séries como Divergente, Jogos Vorazes, Crepúsculo, etc.) o enredo diz respeito ao rito de passagem para o mundo adulto (o qual por sinal, como muitos notaram, assume um caráter cada vez mais ameaçador nos exemplares mais recentes).
Porém, ao lado dos desafios fálicos também se faz presente a temática do amor. Trata-se aqui de uma forma de elaborar o real do sexo. Os adolescentes são particularmente concernidos pelo sexo, pois eles vivem o momento de reafirmar a identidade sexual definida anteriormente na escolha da posição de gozo (todo fálico ou não-todo fálico). Porém, a assunção dessa identidade não é sem consequências, pois implica o encontro, sempre traumático, com o sexo. Por isso é comum nos enredos dos filmes de adolescentes o tema do casal que vive uma grande paixão e enfrenta o mundo.
Em Star Wars, Episódio VII essa temática é extremamente tênue, para não dizer que se trata de um filme assexuado, até mais do que a média dos filmes da Disney. O envolvimento do jovem casal se resume a um abraço e um beijinho (na testa). Na maior parte do tempo o relacionamento dos dois pode ser descrito como uma camaradagem assexuada, uma parceria de companheiros de brincadeiras, em que ambos fogem de bandidos, se escondem, explodem naves espaciais, etc. Essa menina é na verdade um bom amigo (sic): ela sabe se virar, gosta de consertar motores e pilotar carros, digo, naves espaciais, e se precisar entrar numa briga pode dar umas porradas. Além disso, não veste um biquíni de escrava, mas um traje de mendiga espacial que cobre o seu corpo de modo a não despertar fantasias.
Já se falou muito que os filmes contemporâneos de Hollywood possuem personagens e se dirigem a um público constituído por púberes (não importa qual seja a sua idade cronológica). Faltou dizer que esses personagens e esse público, na terminologia freudiana, permanecem na fase de latência. Só para lembrar, essa fase se situa entre a saída do Édipo e o início da adolescência e, ao contrário do que reza a vulgarização da teoria freudiana, não se caracterizaria pela ausência de sexualidade, mas pelo fato de que os sujeitos ainda não se acharem inscritos enquanto seres sexuados, mas aguardarem o momento de reafirmação da sua posição de gozo. Assim, a atividade sexual que pode ocorrer não teria ainda o sentido de um encontro com a alteridade do sexo (nesse sentido, a expressão “jogos sexuais”, comumente empregada pelos psicólogos, é bastante feliz).
Charles Melman5 lembra que a neurose visa suprimir o sexo, fonte de transtorno e mal-estar para o falasser.
“Tudo que a psicanálise pôde mostrar quanto à organização das neuroses ilustra, seguramente, de que maneira esse estranho animal humano trata de se defender contra esse encargo ligado à identificação sexual, de todas as maneiras possíveis. Não sei se é necessário aqui, imediatamente, não sei se é necessário desenvolvê-las, seria abrir o capítulo das neuroses, sejam elas obsessivas, sejam histéricas, sejam fóbicas, todas se caracterizando como sendo defesas contra a identidade sexual e o encargo, eu diria, a cumprir.”
Ele lembra também que o apelo à igualdade de gênero se faz sempre no mesmo sentido, ou seja, no sentido masculino.
“Mas, em todo caso, isso não impede de modo algum que essa palavra de ordem tenha vindo se inscrever, esse campo político com essa consequência que não é uma qualquer, é que essa igualdade parece obrigatoriamente vir se inscrever como a repartição geral de um traço masculino. Afinal de contas, não vejo por que é que, ...bem..., seria forçosamente esse traço que deveria ser escolhido como índice da igualdade que se deveria generalizar... Por que é que não seria um traço feminino? Seria fácil mostrar que, do ponto de vista da qualidade, ele certamente não é inferior e menor que o traço masculino!”
O que Melman comenta com ironia é que a igualdade dos sexos tão preconizada nos dias de hoje (e que confunde igualdade de direitos civis, isonomia salarial, etc., com igualdade sexual) elimina a dimensão da alteridade do sexo, colocando todos os falasseres do lado todo-fálico. Ora, a psicanálise não vê nenhum problema no fato de que a identidade sexual imaginária de um sujeito não corresponda à sua anatomia. Aliás, foi graças à teoria freudiana que se pôde encontrar argumentos consistentes para pensar a sexualidade como independente de uma determinação “natural”. A alteridade de que se trata aqui não diz respeito estritamente ao casal heterossexual. Como lembra Melman, ela também está presente enquanto diferença de posições de gozo no casal homossexual, no qual os parceiros possuem anatomia idêntica.
A questão está na indiferenciação das posições de gozo, gerando o que chamei de forma aproximativa de prolongamento da fase de latência. Dulce Duque-Estrada6 analisa as consequências da ausência da diferença fálica em adolescentes e jovens contemporâneas. Para a autora, porém, essas jovens se situariam numa fase pré-edípica e não na latência. Feita esta ressalva, é importante destacar entre os efeitos dessa indiferenciação o estabelecimento de uma relação que pode ser descrita, como o faz Melman, como uma espécie de companheirismo, onde a impossibilidade da relação sexual é substituída pela possibilidade de um laço entre companheiros. Laço que, como na latência, se não elimina a sexualidade, exclui a alteridade do sexo.
O escopo deste texto não permite abordar o voto de castidade dos guerreiros Jedi. Mas devemos lembrar que esse voto não impediu Anakin Skywalker de ter dois filhos com a princesa/senadora Padmé Amidala (alguém poderia argumentar que isso é compreensível, porque ela era Natalie Portman, mas poderia ser acusado de misoginia). Alerta de spoiler: circula atualmente entre os fãs o boato de que Rey seria filha de Obi-Wan Kenobi, o que revelaria que os Jedi descumprem seu voto de castidade mais do que poderíamos imaginar...      
    Referências:
1. ECO, Umberto. A inovação no seriado, In: Sobre os espelhos e outros ensaios. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989, p. 125.
2. LACAN, Jacques. O Seminário, Livro 11, Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise [1964]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008 (2ª Ed.). p. 201.
3.BERNARDI, Tati. Respeite as mulheres, sua vaca. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2015/11/1711635-respeite-as-mulheres-sua-vaca.shtml Acesso em 29/11/2015.
4. LACAN, J. O Seminário, Livro 8, A Transferência [1960-1961]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2010 (2ª Ed.). p. 186.
5. MELMAN, Charles. Uma calça para dois: o ideal da paridade no mundo industrial. Tradutor: Sérgio Rezende. 14 maio 2008. Disponível em: <www.tempofreudiano.com.br>. Acesso em: 12 maio 2013.
6. DUQUE-ESTRADA, Dulce. Função e campo do gozo ou a falta que o falo faz. In:______. O umbigo do sonho...e o nosso. Porto Alegre: CMC, 2011. p. 57-62.


Marcus do Rio Teixeira – Psicanalista, diretor da editora Ágalma. Autor de O espectador ingênuo – Psicanálise, cinema, literatura e música (2012) e Vestígios do gozo (2014), entre outros


TRAILER

Um comentário:

Carlos disse...

Eu acompanho todos os posts desse blog. Eu quero elogiar a escrita desse texto. Quero lhe dizer que está de parabéns. Uma bela análise.