sexta-feira, 13 de maio de 2016

A Erotomania em “À la folie... pas du tout”

de Laureci Nunes
 
A mudança do título do filme francês “À la folie... pas du tout” para “Bem me quer, mal me quer” em português, afastou-o do tema abordado: a loucura, mais especificamente a erotomania; outro problema é que ele é apresentado ao público brasileiro como “uma história de amor cheia de surpresas”. É verdade que o amor é o tema central do filme, mas trata-se do amor louco da psicose, e “surpresas” não é o que caracteriza o filme que é de suspense e terror.

O filme, dirigido por Laetita Colombani, encenado por Audrey Tautou, como Agélique e por Samuel Le Bihan, como Loïc, é montado de forma genial, e pode ser dividido em três partes bastante distintas.

Na primeira parte, a personagem principal – Angélique apresenta uma história de amor correspondido e com apenas um obstáculo: o fato de seu amado, Loïc, ser casado. Obstáculo, no entanto, superável em breve, pois, segundo Angélique, seu amado está decidido a separar-se. Somos levados a acreditar na efetiva participação de Loïc na formação do sonho da jovem, pois tomamos como dado da realidade o que advém da certeza delirante de Angélique, isto é, de sua realidade subjetiva, o que o torna, à primeira vista, num cafajeste.

Com o desenrolar da película, já na segunda parte do filme, quando aparece o entrecruzamento dos fatos, é que nos damos conta tratar-se de uma história de amor unilateral.

Verificamos então que o delírio erotomaníaco passou a ter um papel preponderante na vida de Angélique. Que ele atravessou seus laços sociais e sua arte, que é desde dele que ela armou seu mundo, e é de onde sua vida e seu próprio ser adquirem sentido.

O desencadeamento do delírio amoroso ocorreu a partir de um encontro contingente da jovem com o cardiologista; o médico, feliz ao saber da gravidez da esposa, entrega-lhe uma rosa, retirada do buque que levaria à sua mulher. Ato banal que Angélique levou à serio demais.

Desde a psicanálise podemos dizer que nesse momento ela experimentou um gozo próprio da posição feminina, que desencadeou o fenômeno chamado de empuxo-à-Mulher: ela se converteu em A mulher a quem Loïc amava. Ao interpretar o gesto do médico como uma prova de amor, a jovem expressa o fundamento da erotomania: “o Outro me ama”. Todo o real é tratado pelo imaginário (desde onde ela se sustenta), conferindo  sentido amoroso a tudo. A cena em que envia um coração de presente ao cardiologista evidencia sua particular forma de tratar o simbólico: sem metáforas. No limite vemos o que prenunciava a romântica frase que a jovem escrevera: “meu coração é para sempre seu”. O coração, órgão que encarna a metáfora do amor, fora tratado no real do órgão, sem véu.

Foi através do estudo da paranoia que Lacan fez sua entrada na psicanálise. Sua tese de doutorado: “Da psicose paranoica e sua relação com a personalidade”, centra-se sobre a erotomania e nela Lacan reafirma, tal qual seu mestre Clérambault, a existência de três fases clássicas: esperança, despeito e rancor.

A erotomania não se restringe à psicose, ao contrário, é um componente delirante comum às mulheres. Pela falta de um significante que as defina, as mulheres tornam-se muito mais propensas e dependentes do amor, amam visando ser amadas[1]. É por essa via que tentam significar e fazer consistir seu ser. Por isso, é comum nas neuróticas a Interpretação de pequenos gestos ou palavras como signos de amor; só que por necessitarem das provas correspondentes, demandam insistentemente palavras de amor; mas, como não há a última palavra que encerre uma mulher na certeza do amor do outro, a demanda de palavras de amor se estende ao infinito, porque no limite, como nos diz Lacan, o que uma mulher demanda é a garantia de ser a única para o objeto amado.

Na psicose, porém, uma vez instalado o delírio, a consequência é a certeza do amor, por isso as palavras de amor não são necessárias. No filme fica claro que Angélique não demanda à Loïc que fale, ao contrário, manobra com o silêncio dele produzindo ela mesma o sentindo sempre na direção dada por sua loucura. Lacan considera que o amor que se apresenta nas psicoses é um amor morto, porque não está vivificado pelo desejo, o que nele encontramos é o gozo mortífero: a pulsão de morte. Ainda que eventualmente nessa estrutura a suplência amorosa possa efetuar uma estabilização (mesmo que temporária), em Angélique tal encontro a conduziu ao pior.

As consequências trágicas da paixão de Angélique vão se apresentando em um crescendo: desde horas de espera por encontros que não acontecem, dois assassinatos, da tentativa de suicídio até a tentativa de homicídio do próprio amado.

A tentativa de suicídio se dá após escutar Loïc declarar seu amor à esposa. É na medida em que ela vê dirigida à outra o que ela tinha certeza ser a destinatária que sua vida perde o sentido e a loucura chega ao seu ápice. Nesse momento ela se encontra como um objeto caído do Outro, sem esperanças. Literalmente tomada pela pulsão de morte, fez valer a frase que dissera ao amigo: “se eu não acreditar nisso [no amor de Loïc], o que me resta?”. Ela tornara-se o próprio objeto nada.

Encontramos também a evidência do poder de sedução, persuasão, além  da inteligência  de Angélique para fazer valer sua verdade delirante, quando a sua loucura arrasta outros sujeitos, levando-os a cometer atos surpreendentes: furtos, agressões, omissões de crimes. Aqui vale a pena destacar a passagem ao ato do próprio Loïc, quando agrediu a paciente. Ela é ilustrativa para situar porque, em psicanálise, não fazemos diagnóstico da estrutura clínica a partir do comportamento, da pura evidência, e sim a partir do discurso e sob transferência, quando podemos localizar as coordenadas de como o sujeito se situa no campo do Outro e como responde ao gozo do Outro. Caso contrário, a loucura circunstancialmente manifesta de Loïc, recortado do contexto, poderia facilmente ser tomada como indicativo da estrutura psicótica.

A tentativa de assassinato à Loïc, após o médico salvar-lhe a vida, é a expressão da terceira fase da erotomania: o rancor: ela o golpeia após ouvir dele a frase “tudo acabou”.

A terceira parte do filme dá conta dos efeitos do tratamento, a partir de sua internação. Para além dos eletrochoques, das pílulas que não engoliu e das conversas com o psiquiatra, que concedeu-lhe alta após alguns anos, vimos manter-se intacta tanto sua capacidade artística quanto sua paixão por Loïc, o que nos remete a localizar o lugar radical, nesta mulher, do amor e  da arte, que a ligam, paradoxalmente, tanto à vida quanto à morte.


[1] LACAN, J. O seminário, livro 8, A transferência, Rio de Janeiro, Jorge Zahar editor,  1992.

Publicado originalmente em PSICANÁLISE VAI AO CINEMA / Soraya Valerim (Org.) - Florianópolis: EBP-SC, SC, 2012, p.45.

Trailer

Laureci Nunes é Analista praticante, membro da Escola Brasileira de Psicanálise e da Associação Mundial de Psicanálise.

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