sábado, 27 de agosto de 2011

A velha casa

por Orlando Brunetti Jr


Reformar sozinho
a sua velha casa
é como mergulhar
nas entranhas mais profundas
do seu passado e de suas vivências.
Cada cor que surge na parede raspada
é uma fase de sua vida que passou.
Ali estão as cores da sua vida,
um roxo, um rosa, um verde.
Todas ainda sobrevivem lá no fundo,
mas há de vir uma nova cor,
um novo tom,
uma nova esperança.

Orlando Brunetti Junior é formado em Letras, mestrado em Literatura Portuguesa, Professor, Marchand, Crítico de Arte e …Poeta.   site http://www.yessy.com/brunetti

sábado, 20 de agosto de 2011

O Outro Lado

por Rodolfo Coelho


Rua Augusta das
minhas depressões
das minhas fugas
dos meus tropeços
das minhas quedas
dos meus enganos
dos meus destinos
e desatinos
das noites perdidas
em lugares lúgubres
dos desejos insatisfeitos
dos drinks de pólvora
das madrugadas insones
dos sonhos desfalecidos
das fantasias crescidas.

Rodolfo Coelho, poeta urbano, é autor de seis livros:
RuAugusta com Creme – O Lobo Mau da Rua Augusta  -
Táxi e Outros Poemas Inéditos – Salada Paulista - ]gnição – Poesia 100 Filtro

sábado, 6 de agosto de 2011

Le Hérisson - O Ouriço

por Carmen Heldt D’Almeida
filme adaptado do livro "A elegância do ouriço"


A história acontece em um prédio em Sainte Germain, bairro em Paris, e duas moradoras constroem a trama: a zeladora intelectual que esconde grande lucidez, fã de literatura russa e cinema japonês, e a garota sagaz de 12 anos que, também apaixonada pela cultura japonesa, transita entre os versos de Bashô e os mangás de Taniguchi e angustia-se por não encontrar um sentido para a vida: “as pessoas crêem perseguir as estrelas e acabam como peixe-vermelho no aquário (…)”. Atemorizada com esta perspectiva ela resolve se matar, antes de perder sua sensibilidade.

Entre idas e vindas entrelaçadas com a beleza do wabi, hokkos e tankas que se traduzem em poemas, sutilezas e apreciação de imperfeições… onde o que conta é o que escapa, é o que está nas entrelinhas do cotidiano de cada um… A história vai se desnudando com “pensamentos profundos” e “movimentos do mundo" apontando para um sempre no nunca.

Qual o lugar da psicanálise num contexto onde a procura dos sentidos se faz presente? Abrir-se a outros gozos não sofredores nem parasitários? Gozo da vida? Do saber produzir? Gozo de ser? Tarefa analisante! Para isso trabalha sem magia e sem religião a psicanálise. De um a um e uma entre outras, sem se ter soluções gerais, e por isso há que se retirar de toda a presunção de generalizações.

Vamos oferecer o gozo que acredita perdido? Fácil, breve e com alegria? “Antidepressivo, champanhe e análise(…)” Estão no mesmo lugar? Como diria Chico Buarque “ O que será, que será que me queima por dentro sera que me dá?” … A questão é por que se anestesiar?

O horizonte terapêutico aponta diretamente para o saber (que deveria saber a maneira de resolver o gozo perdido!). Lacan vai nos dizer: necessitamos de mais uma volta “sei que sabe que sei que sabe”. Esse é o truque! Sem definir alvos. Fale! Escutamos os pontos em que se quebra, nas vacilações, nos erros… Fale! De maneira à crítica.
A fenomenologia me escapa e isso é insuportável,” diz a zeladora.

Renée autodidata, começa a duvidar de seu próprio saber “como toda a autodidata, não tenho a certeza de que aprendi e por isso fico parecendo uma velha louca que acredita que está de barriga cheia só porque leu atentamente o cardápio”.

Análise, lugar da confrontação com nossos limites? Lei da castração! A função não é de aconselhamento ou avaliações e sim o encontro desse sujeito com o real, o acolhimento e a compreensão da imperfeição, já que as visões opostas do mundo, como o bem e o mal, o bonito e o feio, o sagrado e o profano são uma constante afirmação da vida.

“No xadrez tem que se matar para ganhar. No go tem que se construir para viver”, diz a garota.

Paloma ao esperar pela morte, tenta capturar instantes de beleza e aproxima-se cada vez mais de Renée. Com olhos para ver e ouvidos para ouvir, as duas vão re-viver com um misterioso japonês um incrível e inesperado wabi (uma forma apagada do belo com suas imperfeições).

A função do analista? Um Outro consistente? Que não tem buracos, que está num nível aparentemente da perfeição? A aposta aqui é outra: alvo do analista é ser esburacado por seu analisante. Isto é, o Outro descompletado, não é perfeito e nem tem todos os poderes!

A chegada do japonês Ozu vai modificar a existência das duas moradoras. Embora Renée desde o início, estivesse apontando dicas que poderiam levar à descobertas outras… Ozu “escuta” o que ela diz e reconhece a citação da frase inicial de Ana Karenina ( Tolstoi): “Todas as famílias felizes são iguais. As infelizes, são infelizes cada uma a sua maneira (…)” Escutá-la foi a chave para desnudar o ouriço em que Renée se disfarçava…

Paloma faz essa imagem da zeladora sem saber que está descrevendo a si mesma: “A Sra Michel tem a elegância de um ouriço: por fora é crivada de espinhos, uma verdadeira fortaleza, mas tenho a intuição de que dentro é tão simplismente requintada quanto os ouriços que são uns bichinhos falsamente indolentes, felozmente solitátios e terrívelmente elegantes”.
O que ganhamos? Passar de uma miséria neurótica para a infelicidade comum… Lacan vai dizer: “confrontamo-nos com a dor de existir e saber-fazer-ali-com”, ou seja, com os elementos com os quais construiu os sintomas fazer outra coisa. Cai um ideal, no sentido de que não está mais o ou faço tudo, coisas grandiosas, gozo absoluto ou faço coisa nenhuma.

“Perseguem as estrelas
No aquário de peixes-vermelho
Acabar” (Paloma).

“É preciso amar a vida mais que o sentido da vida!” (Renée citando Dostoiésvski)

“ Precisamos desesperadamente da arte. Aspiramos ardentemente retomar nossa ilusão espiritual. Desejamos apaixonadamente que algo nos salve dos destinos biológicos para que toda a poesia e toda grandeza não sejam excluídas deste mundo” (Renée).

Não é a toa que Freud valeu-se inúmeras vezes dos recursos da Arte, da literatura, da mitologia, da filosofia e de muitos outras campos da Criação para explicar suas hipóteses. É como se encontrasse neles recursos para mostrar a dimensão do indizível, do que escapa, do que escapa à possibilidade de ser abordado pelo universo da lógica da consciência.
Ozu, com sua elegância e requinte wabi aproxima os dois ouriços que começam a perder seus espinhos…

Paloma, confrontada com a morte, consegue apreender um sentido possível para a vida. Há esperança na Criação, há que descobrir um sempre no nunca.

“O importante não é morrer nem em que idade se morre. É o que se está fazendo no momento em que se morre (…) por você Renée, perseguirei os sempre no nunca”. Algo de novo surge a partir daí, o que não é pouca coisa. Afinal, o peixe vermelho não se acaba. Será este movimento uma transmissão, e aí uma transmissão inventada, uma Criação?

“Que fazer
Diante do nunca
Senão procurar
Sempre
Em algumas notas frutivas” (Paloma).

The Hedgehog / Le Hérisson (2005 ) - Trailer

Carmen Heldt D'Almeida é Psicanalista e membro de umLugar - Rede Clínica de Psicanálise

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Metrópolis

de Rodolfo Coelho



Entrei no Metrópolis sem boné,
É o preço do sacrifício.
Onde está meu desejo?
Desejo de quê?
Ele escapuliu,
Não sei aonde...
São tantos desejos,
Tantos quereres,
Tanta afobação
Bagdá em sonho,
Ou pesadelo?
No telão
Eric Clapton
O que fazer?
Noites, noitares,
Metrópolis,
Uma tarde perdida numa quitenete.
O dia era sábado,
O desejo opaco
As ações incendiáveis,
O querer duvidoso,
Eu quero é uma Belle Femme peituda,
Para matar o tédio.

Rodolfo Coelho, poeta urbano, é autor de seis livros:
RuAugusta com Creme – O Lobo Mau da Rua Augusta  -
Táxi e Outros Poemas Inéditos – Salada Paulista - ]gnição – Poesia 100 Filtro

sábado, 23 de julho de 2011

LUZ

por Agenor Maciel Lemos Jr

Doa-me teus olhos
Sensibiliza
Toteifico teu corpo
Reverencio tua existência
cuja essência criei.
Torno-me existencialista
Liberto o animal antropófago
que existe em ti
Alio-me a Perseu
e juntos eliminamos a Medusa
de asas de ouro.
Retiro Narciso do lago cristalino
Devolvo palavras à Eco
que hoje declara poesias de amor
no jardim de Hespérides.
Condeno Procusto à prisão perpétua
Liberto Sísifo do seu trabalho braçal
Tatuo no braço Lemniscata
o símbolo do infinito
Brindo a vida com Bacco.
Transcendo.
Ectoplasmando luz!

Agenor Maciel de Lemos Jr é psicólogo clínico, acupunturista e poeta.

domingo, 10 de julho de 2011

Cisne Negro

um olhar de
Henrique Senhorini


O filme do diretor Darren Aronofsky – o mesmo de outras películas não menos provocantes como Réquiem de Um Sonho e O Lutador vem ao encontro a uma das variantes da proposta deste blog na sua apresentação pessoal: tentar compreender o que a priori se mostra como contrário, mas, no caminhar, apresenta-se como complemento.

Este inquietante thriller psicológico, logo de início, mostra o sonho de Nina dançando o prólogo - quando há o feitiço - do Lago dos Cisnes e, em seguida, revela sua expressão de prazer ao acordar. Estaria esse diretor nos provocando mais uma vez, apontando - de imediato - um índice de desejo da protagonista?
Nina é a garotinha de 28 anos da mamãe Erica. Virgem, pura, doce, meiga, inocente, reprimida e obediente (para não dizer submissa), cuja a vida parece estar direcionada a satisfazer o desejo da mãe.
Afinal de contas, esta sacrificou seu desejo em seguir a carreira de bailarina profissional em prol da filha. Portanto, nada mais justo em recalcar, reprimir sua sexualidade, suas vontades, sonhos e desejos, para agradar a dedicada mãe. Nina nem se permite pensar em ser ela mesma. Seria uma ingratidão. E ingratidão não faz parte do repertório de uma boa moça, muito menos reivindicar algo para si que seja contrário a vontade da mãe. Que egoísta. Onde já se viu?
Acontece que isso tem um preço e Nina começa a pagar a conta através do próprio corpo. Está nas costas dela a marca da dívida por aceitar ser a suposta completude do Outro. Mas, este pagamento efetuado é somente o mínimo da fatura do cartão de crédito de Nina, que já dá sinais que está estourando o limite.
No balé, ela segue sua rotina obsessiva em chegar a perfeição - e ser reconhecida - pois há uma competição em andamento para ocupar o lugar de primeira bailarina que logo ficará vago.
Quem será escolhida para ser a número 1, a Rainha dos Cisnes ?
Todos fazem os exercício rotineiros, quando – olhando lá de cima – aparece a figura do “poderoso” diretor artístico observando a todos, o que provoca um certo desconforto, uma inquietação em Nina.
Leroy - diretor onipotente - é aquele que decide quem morrerá e quem viverá no Ballet da Cidade de Nova York, sem dúvida.

Seria ele um dos Nomes-do-Pai ???

Aqui, abro um parêntese
Em Lacan, a noção de Pai vai além. Não necessariamente coincide com o pai biológico e sim com aquele que exerce uma função, a Função Paterna. Como Nome-do-Pai (no singular) é o que dá sustentação da ordem simbólica, o representante da Lei Simbólica e o portador da interdição. É o que quebra a relação dual mãe-bebê 'situando-se' como terceiro. Também, o Nome-do-Pai se desdobra em tantos nomes quantos forem os que fazem suplência à sua função.
Fecho parêntese

É, através de seu convite – de Leroy – que entra em cena Lilly, a bailarina que vem de fora, a estranha, a “estrangeira” de São Francisco - California.
Sua presença, sua aparência, seu jeito de ser e de se mostrar causa, em Nina, uma “sensação de familiaridade e estranheza” (Freud), algo que lhe é ao mesmo tempo estranho e familiar. Trata-se do encontro de Nina com seu duplo?

Aqui, abro mais um parêntese
Otto Rank - em 1914 - foi o primeiro a desenvolver a noção do duplo no campo da psicanálise, mas, essa questão já aparece nas artes cênicas e literárias desde a Grécia antiga, passando por Shakespeare, Molière e vários outros. Provavelmente, a mais conhecida seja “O médico e o monstro”. Em 1919, Freud retoma esse tema integrado na noção de “inquietante estranheza”, essa “variedade particular do pavoroso que remonta para além que é desde há muito tempo conhecido, desde há muito tempo familiar”, mas que se tornou pavoroso porque corresponde a algo recalcado por normas sociais moralistas e puritanas que retornou. Portanto, é tudo o que deveria permanecer secreto, escondido, recalcado no inconsciente e que vem à tona se manifestar, até mesmo contra nossa vontade consciente.
Mora em nós um outro que não se esquece da nossa verdade.” Rubem Alves
Fecho parêntese

Nina é perfeita no papel do cisne branco, mas, um fiasco no e do cisne negro.
O diretor insiste para ela se soltar, se libertar da rigidez para que a emoção e o tesão apareça. Com voz imperativa diz: vá se masturbar !
Ela tem ciência que caso não consiga fazer o cisne negro do jeito esperado, Lilly – sua reserva imediata – estará pronta para tomar seu lugar. Para isso não acontecer, resolve experimentar o que diretor mandou fazer. Mal sabia Leroy que, com sua ordem, estaria abrindo a caixa de Pandora. No mínimo, ajudando.
A partir disso, assistimos o que estava represado em Nina romper de forma abrupta as leis morais impostas e internalizadas. Sua sexualidade, suas posições frente a vida, suas verdades e seus demônios, seu lado obscuro, sombrio e sinistro, seus desejos inconscientes emergem avassaladoramente.
Tudo que mamãe adoraria reprovar.
Mas, durante um ensaio, num exercício solo frente ao espelho, ela desdobra-se especularmente. Ela se enxerga duplicada, porém diferente.
Algo está acontecendo em Nina, ou melhor, já aconteceu. Alucinações, delírios persecutórios, despedaçamento do corpo, mimetismo morfológico (penas e membranas de aves surgem nela)...um verdadeiro “pout-pourri” de manifestações psicóticas.
Ah, esses espelhos....protótipos do registro do imaginário.

outro parênteses
A hipótese ligando a paranoia de autopunição e a imagem especular foi introduzido por Lacan com o caso Aimée em 1932, seguido das irmãs Papin em 1933. O paranoico pode se desdobrar especularmente e até falar com seu duplo. Não rara, nesses casos, há uma tendência do paranoico de quebrar espelhos e vidraças quando esses lhe mostram seu duplo, ou melhor, o duplo do seu eu. Esta tese de 1932 antecede o famoso “O Estádio do Espelho”.

É chegado o grande dia da estréia e nada deteria Nina de subir naquele palco.... Muito menos sua mãe Erica, que nunca saiu do lago. Com essas palavras, direcionadas a mãe, Nina mostra toda sua determinação em realizar seu desejo de ser a mais perfeita Rainha dos Cisnes. Quanto vai lhe custar isso?
Veremos a seguir.

Um aparte
Há um provérbio judaico que diz: “Cuidado com o que desejas, pois poderá ser atendido.”

Abrem as cortinas e inicia-se o fim.
O cisne branco se apresenta para o público. Todos tinham a certeza que fazer o cisne branco não seria um problema para Nina...não seria, mas foi. Ela tropeça na fala (na dança) deixando escapar o que estaria advir em si.... o cisne negro.
No intervalo que precede o terceiro ato, Nina vai ao camarim para se transformar em cisne negro, no caso o personagem. Porém, chegando lá ela se depara com seu duplo - no imaginário – e trava uma batalha feroz...Nina vence e pensando que feriu (com a ponta do espelho despedaçado) de morte sua rival Lilly, retorna ao palco vitoriosa como Odine, o negro cisne. Seus olhos cor de sangue, penas brotando em seus braços florindo suas asas negras, dançando como se fizesse sexo selvagem mirando os olhos materno e, por fim, o gozo estampado em sua face. O público enlouquecido (?) com a “performance” bate palmas com vontade. Intervalo...
Nina se dá conta que está ferida e – pior que isso – que foi ela mesma que se feriu, feriu de morte.

Último parenteses
O que houve? Uma colisão das pulsões de Vida e Morte, de Eros e Thanatos? E ou uma auto-punição exigido por um superego cruel e tirânico? Teria sido ela enganada por seu  desejo?

Quarto e último ato: O cisne branco, Odette, com a dor que sente em perder o amado, morre. Uma trágica morte de amor.
Mas, Nina está feliz, reluzente e - mesmo experimentando a aproximação da morte - diz com voz embargada:
- Eu me sinto perfeita. Foi perfeito.
Afinal, ela realizou o seu desejo?

domingo, 12 de junho de 2011

Solução é a solidão de nós *

Obra de
Reginaldo Lima



  A simbolização da ausência é o que nos permite
suportar a angústia de solidão.  Françoise Dolto

Reginaldo Lima é artista fotográfico formado em Comunicação para Internet pela Universidade Paulista - UNIP e em fotografia pela Escola Panamericana de Arte e Desing. Site: http://www.reginaldolima.com.br
da música "Samba de Ir Embora Só" do Fernando Anitelli

CÉU - INFERNO

de Rodolfo Coelho

Os diferentes degraus do limbo  
bebendo cerveja
folheando revista
gogô dancers
strip-tease
the hell
holidei
os guardiões do marasmo
da ordem
dos bem-comidos
dos saciados
o mendigo
mastiga a
Roosevelt a
sua alface crua
isso é o paraíso
é o melhor que
poderia ser
Ainda bem que
eu aposto baixo
perco pouco.
Deus, neste lugar a
libido morreu
e o resto é literatura



Rodolfo Coelho, poeta urbano, é autor de seis livros:
RuAugusta com Creme – O Lobo Mau da Rua Augusta  -
Táxi e Outros Poemas Inéditos – Salada Paulista - ]gnição – Poesia 100 Filtro

segunda-feira, 16 de maio de 2011

Léolo - de Jean Claude Lauzon

uma leitura psicanalítica sobre o filme
por Karin de Paula

Vou começar citando a última frase do filme: e eu repousei minha cabeça entre duas palavras no ‘l’avalée des avalés’ (assinado:) Léolo
Nesta frase estão condensados todos os elementos que quero trazer para nossa discussão sob    o tema “Psicose e Escrita”...
O filme começa com a narrativa de Léolo sobre o que dizem ser seu nome e sua nacionalidade, sua filiação...ou seja, ele”....diante do que declara: porque eu sonho, eu não o sou”

·   “porque eu sonho, eu não o sou”  é a frase de abertura do livro e “L’avalée des avalésonde, por fim, Léolo repousa entre duas palavras;
·   corpo e palavra: condição para a equação de psicose e escrita;
Poeticamente é possível admitir a idéia de “cabeça” repousada “entre palavras” e é isso que importa aqui...
·   Vamos aproximar:  poesia→Linguagem onírica →
delírio→teorias sexuais infantisteoria científica...
·   Não estaríamos fazendo outra coisa que incluir o pensamento freudiano...

com Freud:
1.   o sonho é uma psicose noturna    [...há os que não acordam...];
2.   o sonho realiza um texto
[de c.latentes→c.manifesto, há  uma escritura];
3.   ao se tornar texto, realiza a encenação de um desejo;

O filme traz também cada uma dessas referências: imagens e linguagens poéticas/oníricas/delirantes/ da sexualidade infantil/ e científica...

...então, ainda com Freud:
1.   os sonhos são fruto de um trabalho, não são plenamente um fato biológico;
2.   os sonhos são compostos por imagens (representações coisa) e por imagens acústicas (representações palavras)→ requerem as palavras;
3.   o motor dos sonhos, assim como de toda manifestação do inconsciente, é a mobilização do corpo (corpo despedaçado → sexualidade infantil→ funcionamento primário → várias ocorrências no filme  (cocô/pedaços de carne/rabo que cresce entre suas pernas/o gato), que se faz representar, que busca se inscrever, se escrever e, portanto, dependem da condição de linguagem;
4.   a palavra dá possibilidade de contorno/delimitação/representação ao corpo, à experiência de corpo.

·   Léolo tem um sonho/delírio sobre sua origem:
·   um esperma, estrangeiro sem face, fecunda sua mãe por via de um tomate “contaminado”.(teoria sexual infantil/ sonho/delírio)
·   diz ele: “DEPOIS DESTE SONHO, LÉOLO LOZONE”
·   a tentativa de inscrição de um nome próprio, que lhe renda um lugar / contorno/ delimitação;
·   Lauzon, Leo Lozon, Léolo Lozon, Léolo Lozone;
·   homofonicamente o que sobra é o “ne”;
·   estamos no/em francês: ne é nascido (corpo), ne é a partíula para a negação (nada);
·   palavra e corpo, mais uma vez.
·   onde Léolo buscou as palavras para dar-lhe contorno, possibilidade de representação de sua condição sexuada e mortal: o livro
·   onde Léolo tentou viver: nas palavras
·   onde Léolo capitulou: já sabemos. entre duas palavras de “l’avalée des avalés”...
·   o catador de versos: personagem emblemático, que catava-dor-de-versos mais emblemático se pensarmos em Ducharme, autor do livro, da frase “porque eu sonho, eu não o sou (parce que je suis, mois, je ne le suis pas...);
·   Decharme foi um personagem importante em Montreal, Quebec - Canadá - durante a “revolução tranquila”(1960-66); a figura do dompteur des vers: símile do pseudônimo de Ducharme, roch plante, artista da bricolagem,  do “assemblage”.
·   roch plante (semeador de pedras?), é aquele que procura inscrever um ethos outsider ; bricoleur, colhe materiais descartados nas cidades para realizar sua obra de assemblage, cata-dor;
·   Léolo é um autor da assemblage, Lauzon um artista dompteur de vers...
·   o termo assemblage é incorporado às artes em 1953, para fazer referência a trabalhos que  "vão além das colagens". O princípio que orienta a feitura de assemblages é a "estética da acumulação": todo e qualquer tipo de material pode ser incorporado à obra de arte. O trabalho artístico visa romper definitivamente as fronteiras entre arte e vida cotidiana; ruptura já ensaiada pelo dadaísmo. A idéia forte que ancora a assemblages diz respeito à concepção de que os objetos díspares reunidos na obra, ainda que produzam um novo conjunto, não perdem o sentido original. menos que síntese, trata-se de justaposição de elementos, em que é possível identificar cada peça no interior do conjunto mais amplo. nas artes visuais, a prática de articulação de materiais diversos numa só obra leva a esse procedimento técnico específico, que se incorpora à arte do século XX com o cubismo de Pablo Picasso (1881 - 1973). ao abrigar no espaço do quadro elementos retirados da realidade - pedaços de jornal, papéis de todo tipo, tecidos, madeiras, objetos etc. -, a colagem liberta o artista de certas limitações da superfície.
·   da mesma forma, o cata-dor de versos/vermes do filme de lauzon, passa recolhendo a dor de todos que tentam a descartar...
·   interlocutor ou duplo de Léolo/Lauzon?
·   Léolo descartava sua escrita. nunca tinha visto alguém ler ou escrever em sua casa;
·   o livro de Ducharme é o único livro;
·   o texto de Ducharme se mistura ao da narrativa de diário de Léolo/Lauzon no melhor estilo de assemblage;
·  o livro de DUCHARME, artista plástico e escritor conterrâneo de Jean Claude Lauzon, “L’avalée des avalés”/ “Os devorados pelos devoradores”, levado pelo DOMA-DOR DE VERSOS à casa de Léolo, imiscuído lá como calço de mesa da cozinha DA MÃE de Léolo, era lido e relido por Léolo, citado repetidamente no filme, com muita insistência,.
·   Vou indicar quatro passagens do filme onde podemos reconhecer o texto de DUCHARME e que me parecem bem significativas:
·  O primeiro já mencionado, é quase elemento central na construção do ritmo do filme, é a frase: Porque eu sonho, eu não o sou/estou”.
Já disse, esta frase se encontra na ABERTURA do livro de Ducharme.
·  O segundo trecho citado no filme que vou sublinhar é aquele colocado como declaração de Léolo sobre sua relação com os livros. Diz: “Não tento lembrar as coisas que ocorrem nos livros. O único que peço a um livro é que me inspire energia e valor. Que me diga que há mais vida da que posso abarcar. Que me recorde a urgência de atuar”. 
No livro de Ducharme, esta é uma fala de Berenice Einberg, personagem do L’ avalée des avalés... É interessante notar que a proposição citada indica a expectativa de que o livro o lembre –LHE FALE- de algo e não ele do livro. QUEM SERIA O SUJEITO DESTA PROPOSIÇÃO?

O sonho é uma psicose noturna/ao acordar, o sonhador se serve das palavras (recalque) para organizar, tomar distância, daquela experiência de corpo...

O NEURÓTICO ENCONTRA MEIOS PARA HABITAR NA LINGUAGEM;
O PSICÓTICO É HABITADO PELA LINGUAGEM, ELA LHE FALA! 

· Léolo declara ter decidido “tomar o caminho mais curto”,
      “que voltar dos sonhos ao cotidiano era brutal” para ele;
· Léolo tentava fazer valer a dica do CATA-DOR DE VERSOS de que que havia um segredo nas palavras colocadas juntas... mas colocou seu próprio corpo neste espaço, “repousou a cabeça entre duas palavras do L´avalée des avalés...;

Outro exemplo da pena de Ducharme no filme de Lauzon, é o trecho grifado no exemplar do livro em poder de Léolo, que é mostrado em close no filme. Este trecho é indicado por Léolo/Lauzon como o caminho do início de sua leitura, por  onde ele começará a ler este livro. É a partir da narrativa deste trecho de Ducharme que, declarando sua decisão de ler repetidamente o que fora sublinhado por outro,  mesmo não  entendendo o que quer dizer, que Léolo começa a escrever sobre sua vida/história.

Posteriormente, o mesmo trecho é incluído como narrativa do próprio Léolo, como parte de seu diário: “Só encontro momentos felizes na solidão. Minha solidão é meu palácio. Aí tenho minha cadeira, minha cama, meu vento e meu sol. Quando estou sentado fora de minha solidão, sentado no exílio, estou sentado num país enganoso”.

Se a relação de Léolo com o livro se deu, segundo ele próprio, apesar de não haver figuras, mas apenas letras sobre letras... havia um outro objeto colocado em cena de assemblage, retirado do lixo,um outro tipo de registro de sons, quebrado e guardado embora não pudesse se escutado, e justamente pela imagem que exibia: o disco/LP de Jacques Briel;
·   momento antes de léolo capitular/se render ao “ porque eu não sonho, eu sou” , a “descansar sua cabeça entre duas palavras de ‘ l´avalée des avalés’ ” , juntar-se a linhagem da loucura familiar, segundo ele fundada por seu avô, cai do livro  o pedaço de vinil que completaria a circunferência do LP. Léolo o cola, o completa.
·   não tendo como fazer frente à convocação para apresentar-se potente, corajosamente ao seu amor por uma mulher, repousa a cabeça entre duas palavras no “l´avalée des avalés”...
·   as três palavras colocadas juntas (bianca, mon amour/curiosamente as mesmas colocadas na boca do personagem da mãe quando o apertou “contra suas banhas com cheiro de suor de cheiro reconfortante”) que trazia sua amada em condição de dessideração/desejo frente à luz, se tornou sideração/ silêncio.
·   a primeira vez que viu a luz→o tesouro→ “talvez soubesse que já estava morto”.

Karin de Paula é Psicanalista, Mestre e Doutora pela PUC-SP,  Pós-doutoranda na Paris 7, professora na universidade e em curso de formação de psicanalistas. Membro fundadora do umLugar – Psicanálise e Transmissão. Autora dos livros $em – sobre a inclusão e o manejo do dinheiro numa psicanálise”, Ed. Casa do Psicólogo e Do espírito da coisa - um cálculo de graça”, Ed. Escuta.