quarta-feira, 28 de setembro de 2016

JULIETA, de Almodóvar - Silêncio!

de Olivan Liger

Um tecido vermelho pulsante, volátil que enche a tela, suave em seu movimento, que sugere a intimidade do feminino desejante, a sensualidade e as entranhas da dor marcada pelo sangue, pela paixão e pelos afetos. Assim começa o filme.
Julieta é uma história de dor crônica, a dor que se põe como entrave à existência, dor de uma ausência sempre presente...  uma história sustentada pela ausência de trilha sonora que induz o telespectador a entrar em contato com o vazio de Julieta, com a presença constante da ausência de Antía (Blanca Parés), sua filha. Um silêncio incapaz de passar despercebido, que vai mostrando ao longo do filme, uma sucessão de objetos e elementos que se fazem captar num segundo plano e na expressão corporal dos personagens o que já é conhecido e pensado. Cores como vermelho, azul e preto que aparecem em distintos objetos constroem um outro tipo de comunicação sem palavras.
Uma trama de personagens que interagem de forma complexa criando vínculos que além de necessários para a sobrevivência física e emocional, tem o governo soberano do desejo, ainda que este apareça sempre em falta.
Julieta (Adriana Ugarte e Emma Suárez) carrega o peso de suas perdas, culpas e luto durante todo o filme. A culpa pela falta de atenção dada à um estranho em um vagão de trem, que se suicida durante uma viagem; a perda inesperada de Xoan (Daniel Grao), o marido e a partida voluntária e não avisada da filha. Segundo Nasio: “Se a pessoa do amado não está mais aqui, então falta a excitação que escandia o ritmo do meu desejo”. Vive uma vida sem entusiasmo, cheia de lembranças da filha e esperanças do seu retorno, uma vida que se consome entre afastar-se e aproximar-se da dor, estagnando-lhe a vida e estabelecendo seu gozo.
A dor pela ausência de Antía valida e ressignifica todas as dores e perdas anteriores. 
Para Freud, “O luto leva o eu a renunciar o objeto (desaparecido), declarando o objeto morto”, entretanto a falta de Antía é permanentemente sustentada pela incerteza de sua volta, um luto que não pode avançar na sua elaboração pela esperança que se faz de um possível retorno.
A devastação de Julieta aparece de forma ritualistica ao comprar bolos de aniversário para a filha, ano após ano e atirá-los no lixo. A cada ano, a esperança do retorno e a fúria pela expectativa contrariada dão significado à cena do bolo de aniversário e refaz o ciclo de dor do personagem central. A dor de Julieta é uma condição de vida, é a forma que experimenta o mundo.
No começo do filme, Julieta escolhe o livro “O amor” de Marguerite Duras para levar na sua mudança para outro país. As mudanças e deslocamentos no espaço físico são constantes no filme como tentativas de se livrar de sua dor, a dor do amor que leva consigo simbolizada no livro de Duras.
O encontro com Bea (Michelle Jenner), amiga de infância de Antía, faz emergir aquilo que deveria estar esquecido, a partida de Antía, provocando uma decisão radical de permanecer em Madrid. Convictamente afirma, na esperança de que o vento leve suas palavras até a filha: -Aqui estoy e aqui estaré!
Após decidir permanecer em Madrid, na esperança de um reencontro, Julieta tenta estabelecer um diálogo imaginário com a filha, escrevendo-lhe uma carta na qual vai desvelando toda a sua história e consequentemente, a de Antía, tentando dar continuidade ao seu trabalho de luto que nunca se concluiu.
Curiosamente, o título inicial para esse filme era “Silêncio”. Nada mais justo para uma trama onde os personagens são encarcerados pelo silêncio, a ele são submetidos, nada perguntam e pouco dizem. O silêncio que se faz na escrita da carta para a filha contando-lhe sua vida, o que só pode ser dito fazendo letra.
“Cada silêncio é um indicador  em negativo da existência de uma palavra possível” cita Anna Aromi. O silêncio e a espera são o gozo de Julieta. Escrever para Antía é a forma de aproximação do seu gozo.  Para Julieta, falar da perda é entrar em contato com a dor, com a morte em vida, é perder algo que a constitui, assim o silêncio é a manutenção do gozo, uma vez que “A palavra mata a coisa”.
O primeiro contato com Xoan acontece na viagem de trem, numa experiência de dor, culpa e incerteza frente ao testemunho de um suicídio. A partir dai, Julieta e Xoan já estarão conectados pela concepção de Antía.
Após conhecer Xoan e ameaçada de perder seu emprego, Julieta decide buscá-lo para falar de sua gravidêz. Chega no dia da morte de Ana, a esposa em coma. Para algo nascer, é preciso que algo  morra... e é confrontada por um feminino amargo, de caráter territorial, invejoso e hiperrealista de Marian (Rossy de Palma). Um feminino que faz uma oposição ao feminino de Julieta. Uma das características dos filmes de Almodóvar é justamente fazer emergir os aspectos mais profundos da alma feminina.
Após o nascimento de Antía, Julieta se aproxima dos pais e se depara com a enfermidade de Sara (Susi Sánchez), sua mãe, enclausurada no quarto acometida de Alzheimer, tráz no olhar a tristeza, o desamor, o esquecimento e a melancolia. O pai, envolvido com uma serviçal vive sua vida independente e afastado emocionalmente da esposa. Julieta passa a funcionar como um ego auxiliar para a mãe durante os dias que permanece com os pais. A mãe vive antecipadamente o que Julieta viverá no futuro, a dor do abandono traduzida no sintoma do esquecimento do Alzheimer. O silêncio devastador e a depressão será o sintoma de Julieta para sua dor.
Uma tempestade estar por vir... é anunciada e conhecida...se faz à mostra pela ravia de Marian ao ser despedida e questionada por Julieta e se concretiza na morte de Xoan, de forma inesperada, em alto mar. Julieta e Antía são inundadas pela tristeza e pela culpa.
Um relógio quebrado junto ao corpo de Xoan nos sugere a suspensão da tempo cronológico. A partir da sua morte, o tempo pára... vai e volta numa tentativa de dar conta de uma dor sem fim, instalando o gozo do silêncio e da expectativa, mesclando passado e presente num só registro que parece excluir o futuro, a cessação da dor e do conflito psíquico.
- Por qué Papá salió a pescar si había estallado la tormenta? - indaga Antía ao tomar conhecimento da morte do pai. De que tormenta fala Antía? Do que queria o pai livrar-se buscando a morte no mar?
E assim, quando completa dezoito anos, diante da partida da amiga Bea, Antía perde o sentido da vida. Ao lado da mãe, está em contato direto com a dor que assola a ambas e a morte que não conseguem superar. Parte para um retiro espiritual em busca do sentido perdido e não mais retorna.
Entre idas e vindas, a história de Julieta vai se construindo e tem como eixo central as perdas, especialmente a perda da Antía que a mantém num estado de suspensão, do qual não pode voltar  e nem tampouco seguir adiante, a ausência da filha preenche sua vida e a destrói por completo.
Antía não quer contato com Julieta, mas lhe impõe o conhecimento de que está presente na sua ausência através dos envelopes vazios que manda para a mãe, como se quisesse apenas pontuar que ainda existe, que ainda está viva.
E Ava? Um personagem secundário, mas não menos importante. Funciona como um receptáculo de afetos, os quais canaliza em suas esculturas. Tem em Xoan, com quem mantém encontros esporádicos, a inspiração para sua arte, esculturas vermelhas por fora e de sólido metal por dentro.  É à Ava que Julieta conta em primeira mão sobre sua gravidêz. Sempre presente em momentos importantes, acompanha Julieta para derramar as cinzas de Xoan sobre o mar. É também quem preenche as lacunas de informações para Julieta sobre a profunda mágoa de Antía acerca do conflito do casal que precedeu a morte do pai. Ava é um catalizador, um elo de ligação entre Xoan, Julieta e Antía. Mais uma faceta feminina que Almodóvar tráz em cena, um feminino dócil, aparentemente frágil, porém forte como o metal interno de suas esculturas.
Mas o que separa pode também unir. Diante da perda do filho mais velho, Antía recorre à Julieta que vai ao seu encontro. A morte do pai e marido as separou e ficou a cargo da morte de um filho e neto uní-las.
Poderíamos pensar num final feliz, mas a vida não é felicidade... uma mescla de momentos de prazer, os quais chamamos felicidade, contrastado com momentos de angústia... assim vivemos, assim ratificamos nosso gozo. O gozo de Julieta é ratificado quando diz à Lorenzo (Dario Grandinetti), a caminho do encontro com a filha: -”No voy a preguntarle nada”. - segue o ciclo do silêncio, daquilo que não tem nome, que não pode ser compreendido e nem representado, do Real da vida que opera fora da nossa consciência e desejo e que pode levar-nos a construir ou destruir nossas vidas.

Assim, eu assisti “Julieta”, saí da sala de exibição em silêncio e com muitas perguntas sem respostas, embalado pela voz de Isabel Vargas na canção “Si no te vas”, que permeia a última cena.
Referências bibliográficas:
 - Aromi, A. Palabra y silêncio em Psicoanálisis. 1ª CONVERSACION DE LA ELP. NOVIEMBRE 2000. BARCELONA. "ENTRE PALABRA Y SILENCIO"
 - Freud, S. Luto e melancolia, in Edições Standarts das obras completas de Sigmund Freud, vol. 12. São Paulo: Cia. Das Letras, 2010
 - Nasio, J.-D.  A dor de amar. Rio de Janeiro: Zahar, 2005

Olivan Liger é psicanalista, presidente do ILPC - Instituto Latino americano de Psicanálise Contemporânea, analista e supervisor institucional. Autor da obra: "Um olhar psicanalítico sobre a contemporaneidade e suas emergências" - Ed. Livre Expressão, RJ. 

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2 comentários:

Nancy Nuyen disse...

Obrigada pela leitura sensível e atenta. Muito boa!

NOEMI disse...

Só gratidão a sua sensibilidade